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O fenômeno kawaii

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Kawaaaiii neee

"Nunca acredite em alguém acima dos trinta."

No Japão, a atração pelo kawaii é uma força onipresente e poderosa. Os japoneses nascem e crescem respirando uma atmosfera saturada de algodão doce. Publicidade, mascotes, displays digitais...até a capa do celular de um executivo em seu terno plúmbeo. Tudo está inundado pela cultura kawaii. Mas, que diabos é kawaii?

Traduzir termos do japonês é sempre uma tarefa ingrata. O inglês tem uma que se aproxima um pouco: Cute. Já vi brasileiro traduzindo até como "filé" na intenção de tornar o termo mais familiar do público leigo. Não poderia ter errado mais, pois certamente alguém que leu pensou que a Cléo Pires é kawaii. Preciso de parágrafos pra explicar o significado desse termo na cultura japonesa, com o certo risco de não esgotá-lo.

O kawaii é algo que permeia o bonitinho, pequenininho, simples, mesmo tolo. É algo pueril, que remete à infância. O kawaii celebra comportamentos sociais e aparência física que tendem à doçura, adorabilidade,  genuinidade, inocência, pureza, gentileza, vulnerabilidade, fraqueza e inexperiência. Um estilo infantil e delicado, ao mesmo tempo que atraente e bonito.

imagem: http://miscelanya.wordpress.com/category/uncategorized/

A gíria kawaii é de longe a mais utilizada no Japão moderno. Segundo Sharon Kinsella, pesquisadora da Universidade de Cambridge, o fenômeno kawaii como o conhecemos se iniciou em meados dos anos 70, quando surgiu concomitantemente o crescimento da moda fashion infantilizada com uma moda entre as adolescentes japonesas de escrever cartas e bilhetes com letras arredondadas e pueris. O interessante é que esse comportamento não partiu da mídia, geralmente acusada de criar todos os modismos infanto-juvenis, mas sim de uma escrita underground durante o processo de romanização dos textos japoneses.

O japonês tradicional é escrito verticalmente, com variações na espessura do traço no processo de escrita. As jovens japonesas então passaram a desenvolver a kawaii handwriting, horizontalizada, da esquerda para a direira, feita com lapiseira para manter o traço uniformemente fino, arredondado, infantilizado, além de mesclar o texto com o idioma inglês, com katakana, corações, estrelinhas e emoticons aleatoriamente desenhados. Era um traço muito difícil de ser lido, mas os fins justificavam os meios. As escolas proibiram, professores não corrigiam provas com essa caligrafia, mas o modismo evoluiu de modo orgânico até virar um fenômeno nacional nos anos 80. Alguns exemplos de infantilização: Sexo virou Nyan Nyan Suru (miau, miau; miar ou algo semelhante) ou Kakkoii, que passou a ser pronunciado propositalmente errado como katchoii, pronúncia de um bebê incapaz de dizer a palavra corretamente.

O uso liberal dos traços sugere uma rebelião dos jovens contra o tradicionalismo do idioma e a cultura milenar japonesa, abraçando a cultura ocidental, vista como algo mais despojado e interessante na época (sobretudo a americana e a francesa). O estilo mais livre permitia uma relação mais íntima com a linguagem e facilitava a expressão dos sentimentos. Tanto que muitos slogans e refrãos são escritos em inglês ou francês. Quando o hábito começou a ser assimilado por estudantes mais velhos, percebeu-se que o ato estava menos ligado à uma inabilidade em escrever do que a uma expressão juvenil, contida no contexto onde os japoneses, influenciados pela mass-media e pelo universo publicitário, passaram a jogar a cultura tradicional para escanteio entre os anos 60 e 70.

Tuxedo Sam (imagem: http://www.nycupcake.com/?attachment_id=5000)

Quem conhece o fenômeno kawaii deve estar estranhando o foco em caligrafia juvenil quando a situação é muito mais ampla. Com razão, a caligrafia é a gênese do monstro. A situação tampouco se limita ao modo de se vestir, com roupas infantis, tons pastéis e chuquinhas no cabelo. Kawaii é um modo de falar, um estilo de vida,  um comportamento jovem. Exato, o kawaii não se expressa apenas na aparência, mas no comportamento das meninas (e em menor escala, também dos meninos).

Meninas com comportamento kawaii aparentam a maioria dessas características: passividade, vulnerabilidade, carência, desamparo, impotência. São doces, GENUÍNAS (essa palavra é importante) e simples. Entortam os joelhos, fazem biquinho, olham de baixo para cima desnorteadas, batem o pé e falam com voz doce, beirando a tolice. Mesmo no colégio, onde são forçadas ao processo de padronização com os uniformes de marinheira, dão um toque infantilizado numa presilha, num modo de amarrotar a meia. Essas jovens que se vestem com roupas virginais, agem e falam como criança são chamadas de burikko (fake-children).

Hello Kitty Kawaii Paradise (imagem: http://www.ant-network.com/4030/hello-kitty-theme-park-in-odaiba-called-hello-kitty-kawaii-paradise/)

Apesar da cultura kawaii não ter sido criada pelo universo business, foi por ele logo descoberta e rapidamente assimilada no início do boom consumista dos anos 70. Propagandas, embalagens, mangás, games, softwares de design incorporaram-na e deu-se início à era dos Fanshi Guzzu (Fancy Goods), os produtos kawaii. Seus ingredientes fundamentais: tinha que ser pequeno, arredondado, macio, tons pastéis, traço não-japonês (no sentido tradicional), aspecto sonhador e estiloso. Claro, geralmente estampando algum personagem igualmente arredondado e infantil, derivado de um mamífero, sem orifícios, sem extremidades, sem sexo, confuso, inseguro e desamparado.

O minimalismo é importante na criação de um personagem kawaii. Deve-se excluir tudo o que é descartável na transmissão da amabilidade do personagem. Braços, boca, pescoço, qualquer coisa que dilua aspectos kawaii. Reduz o desnecessário para estourar aquele traço simples e redondinho que faz os japoneses suspirarem "kawaaaaaiiii", naquele misto de derretimento e desejo de posse. Pensando por uma ótica de mercado, menos é mais. A Hello Kitty tem que caber até na presilha de cabelo. Os caras entendem de design...

As empresas japonesas, com dificuldades de criar diferenciação na oferta do produto/serviço pela forte concorrência, sempre recorrem à estética kawaii. As companhias aéreas ANA e JAL não conseguem diferenciar a oferta, o que fazem? A primeira pinta a fuselagem do 747 com Pokémons, a segunda com o Mickey. Taxas bancárias são controladas pelo governo, como tentar de destacar? Usando o Snoopy como garoto propaganda (Só a Sanrio, criadora da Hello Kitty, já fez negócios com 23 instituições bancárias). A coisa se universalizou tanto que muitos dos produtos e orgãos do governo são representados por esses bichinhos. Alguns exemplos:

Camisinha kawaii (imagem: http://www.sampsonstore.com/neovision/condom/product/details.is?cat_id=160&product_id=378)

Escavadeira kawaii (imagem: http://www.flickr.com/photos/littlegirllost1/favorites/page70/)

Prefeitura de Chiba kawaii
Tanque de gás kawaii

747 kawaii (imagem: http://pt.wikipedia.org/wiki/Kawaii)

Acho que agora deu para ter uma dimensão melhor da situação. Mas o que dá sustentação para isso? Essa infantilização da aparência que causa espanto no ocidente é justamente o que atrai o japonês. O que dá suporte à cultura kawaii é a noção romântica da infância como período puro, intocável, sem maldade.Yuuko Yamaguchi, gerente geral do departamento de character-design da Sanrio, diz que a estética kawaii cristaliza a vontade do japonês de nunca querer crescer, de permanecer no estágio infantil, de não abrir mão da candura, uma vez que a vida de adulto no Japão, mais do que em qualquer outra cultura, é um tempo extremamente penoso, de muitas responsabilidades e pressões.

A sociedade e a família japonesa, tendo consciência do espinhoso cotidiano dos adultos japoneses, consideram a infância um momento da vida absolutamente idealizado, portanto permitem aos seu rebentos momentos de felicidade idílica antes que eles cresçam e encarem o quase desumano estilo de vida japonês. Cria-se um ciclo vicioso, onde a criança, após uma infância artificialmente açucarada, sucumbe quando encara a dura realidade da vida adulta, e, sofrendo sindrome de Peter Pan, considera que ser adulto é intolerável, criando para seus próprios filhos a mesma tenda idílica para que eles aproveitem os únicos anos da vida que supostamente valem a pena.

"Eu não aguento mais!!" (imagem: http://blogs.asiantown.net/)

Jovens japoneses prestes a entrar na vida adulta, em sua maioria classificam essa nova fase da vida como um período desanimador, árido demais. Temem mais que tudo o peso das responsabilidades (com a família, sociedade, espaço público, política), do poder, da solidão, da perda dos sonhos e da resignação. Possuem uma visão muito nebulosa tanto do futuro quanto da sociedade japonesa. A vida adulta, diferente do ocidente, não é vista como um período de liberdade e emancipação pessoal, muito pelo contrário, a fase é vista como décadas de claustro que limita as potências individuais, apaga os sonhos e força o indivíduo a aceitar seu destino miserável.

A cultura kawaii é uma rebelião juvenil, uma recusa de cooperação com os valores sociais vigentes e com a realidade japonesa. Diferente da juventude ocidental que usa a insinuação sexual como meio de afirmação de maturidade e independência, os jovens japoneses caminham no sentido oposto, enfatizando sua imaturidade e incapacidade de lidar com as responsabilidades da vida adulta.

É ÓBVIO que a situação não se restringe a um mundo de confete e se espraia por campos sexuais. O padrão kawaii é o padrão de beleza dos japoneses, inclusive dos pais de família. Nada mais natural que o cidadão adorar a beleza infantilesca daquela cantora pop poucos anos mais velha que sua filha. Cantoras pop, aliás, que tentam enquanto podem simular menos idade do que realmente possuem (até não conseguirem mais e serem forçadas ao ostracismo). Beeem diferente do ocidente, onde as mulheres forçam a barra na tentativa de mostrar mais maturidade e sensualidade do que realmente possuem (Miley Cyrus, Britney Spears e outras adolescentes que bancavam o mulherão). O fenômeno Lolicon (Lolita Complex) é um problema social no Japão, e práticas inusitadas são frequentes, como o Enjo Kosai ou a venda de roupas íntimas usadas de adolescentes por correio.

Harajuku Fashion (imagem: virtualjapan.com)

Nota-se uma preferência masculina por esse padrão, mas as mulheres abraçam-no apenas para agradar o olhar dos homens? Não. Há uma intensa vontade de permanecer livre e fresca. As jovens japonesas tem paura só de pensar no papel social da mulher japonesa, madura e casada. Elas olham para o casamento de seus pais e desenvolvem uma única certeza: aquilo é tudo o que elas não querem para o futuro. Tanto que há dados sobre uma intensificação do interesse pela estética kawaii entre as mulheres prestes a casar. Falarei sobre isso de modo mais aprofundado quando explorar o tema yaoi.

Não é por acaso que o uniforme colegial de marinheira é o item nacional de fetichização sexual. Recorda-se que eu frisei a palavra 'genuína' lá em cima? O uniforme colegial simboliza para o japonês a verdade de sentimentos, uma fase da vida onde a mulher ainda não perdeu seus aspectos individuais para se moldar nos papéis sociais que lhe cabem, para passar o resto da vida esbanjando cinismo e dissimulação como preço do conformismo que tatuaram na testa. (esse é um fator, há outros que não cabem no assunto)

Fuku (imagem: http://joolyone.blogspot.com/2011/03/school-uniforms.html)

Japonesas feministas afirmam que a cultura kawaii é nociva por remeter ao histórico papel de submissão da mulher no país, encorajando o comportamento passivo em detrimento do assertivo e independente, condições ardua e recentemente conquistadas no arquipélago pelas mulheres.

A resistência ao kawaii não para por aí. Jovens que não se identificam com isso, como punks e roqueiros consideram-na uma estupidez boçal. Intelectuais criticavam não apenas a passividade da geração oitentista que fugia de qualquer responsabilidade, como o hedonismo individualista e consumista no qual se refugiavam, esses herdeiros da geração de 68 que fez Tóquio tremer nos protestos estudantis. Curioso que foram justamente esses estudantes que primeiro deram sinais de regressão, quando se rebelaram contra os métodos universitários e passaram a ler mangás em detrimento dos velhos clássicos. O movimento artístico Superflat vai atacar justamente a massificação da cultura sob a estrela da cultura pop japonesa, e nomes como Takashi Murakami e Yoshitomo Nara vão apontar seus dedos diretamente para a obsessão pelo kawaii que impregnou por toda a cultura japonesa.

A estética kawaii que antes era importada (Pingu, Snoopy); via globalização, ecommerce e subculturas na internet, passa a produto de exportação e encontra forte eco na Coréia do Sul, Taiwan e outros países asiáticos. Enquanto a juventude japonesa fugia do futuro que não projetava, bem como do presente que deixava de viver.

FONTES:
Cute Inc. - Mary Roach
Cuties in Japan - Sharon Kinsella
In Japan, cute conquers all - Brian Bremmer
Otaku - Étienne Barral

Ero-guro e o cenário underground dos mangás

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imagem: http://dreamers.com/autores/17/suehiro%20maruo


  "O poeta francês Jean Genet escreveu: Sujeira abomina sujeira. Genial." Suehiro Maruo

Cabelos pontudos, olhos grandes e expressivos, cenas de ação e fantasia recheadas de superação, companheirismo e pitadas de amor. Jogue tudo isso fora, dispa-se dos estereótipos e entre no esgoto, mergulhe nu pelo lodaçal da cultura pop japonesa e chafurde na merda. Entregue-se ao escatológico e ache certo prazer nisso, como o protagonista do Cheiro do Ralo (de Lourenço Mutarelli) ao perceber que o aroma do simbólico ralo fedorento tornara-se sua atmosfera, finalmente sem dele fugir, aspirando cada baforada enviada diretamente do inferno. Isso é o que deve ser feito para compreender um nicho do cenário underground dos quadrinhos japoneses: o ero-guro.

O Japão é reconhecido pelo gigantismo editorial a serviço de uma população ávida por leitura que, como os americanos, tem nos quadrinhos uma manifestação nacional típica e muito apreciada. Os grandes geradores de caixa são os tradicionais títulos de Shonen e Shojo publicados nas grandes revistas semanais, caso da Shonen Jump, Young Jump e semelhantes. Seus grandes clássicos, historicamente, possuem a capacidade de cristalizar o espírito de uma época, dialogando diretamente com a juventude japonesa, e também por isso com capacidade de se tornar inesquecível. É nítido como a personalidade da Serena (Sailor Moon) é um retrato das meninas japonesas dos anos 80, despreocupadas, desmioladas, adoráveis, com uma crença cega e otimista no futuro, ainda que pouco dedicadas em construí-lo.

Se Naoko Takeuchi ficou milionária por traduzir a realidade aparente do seu período em nanquim, coube aos artistas enfiar a mão na merda e dar uma misturada para que as pessoas se lembrassem das fétidas  fossas que correm embaixo de cada quarto cor-de-rosa da pujante sociedade japonesa, cobrindo com sangue e dejetos os espectros até então invisíveis daquele povo.

A tolice adorável de Serena, um retrato da juventude oitentista (imagem: http://members.fortunecity.com/elbereth1/Sailormoonp2.htm)

É o caso do mangaká Suehiro Maruo (nascido em 1956), que abraçou o Ero Guro Nansensu (Erotic Grotesque Nonsense) como forma de tangibilizar sua visão de mundo. O Ero Guro Nansensu descreve um movimento artístico japonês dos anos 20 e 30 que perspassou principalmente pela literatura e arte pictórica. O Ero-guro focava seus esforços justamente na exposição do erotismo, corrupção sexual e decadência como um todo, servindo de abrigo para as expressões mais grotescas da sexualidade humana, abrindo as portas para o sadismo, masoquismo e toda uma série de parafilias. A influência maior vem do decadentismo europeu do século XIX. (É valido lembrar que guro não é gore!)

O Ero Guro Nansensu foi um fenômeno cultural burguês do período entreguerras que se propôs a explorar o bizarro, o ridículo, os desvios, encontrando eco na cultura popular do Período Taisho (1912-26), onde a atmosfera cultural japonesa remetia ao hedonismo e niilismo da Berlim no período Weimar (1919-33). A região de Ginza em Tóquio era o reflexo do caleidoscópio de influências européias no arquipélago, onde coexistiam cafés com estilo parisiense, cervejarias no padrão da Baviera e óperas italianas em meio aos traços da arquitetura japonesa típica.

Sapporo Beer Hall - cerveja já é mais consumida que sakê no Japão (imagem: http://www.photographersdirect.com/buyers/stockphoto.asp?imageid=2395284)
"A celebração do erotic (ero) em grandes proporções constitui uma rejeição a opinião do Período Meiji de que sexualidade é inadequada para exibição ou representação pública, a menos que esteja de acordo com os estreitos critérios da 'moral civilizada'. A ascenção do grotesque (Guro) anuncia um descontentamento semelhante pelos padrões estéticos predominantes, com seu foco em padrões tradicionais de beleza e encobrimento dos lados mais obscuros da existência. Finalmente, a valorização do absurdo (nansensu) assinalou um descontentamento com a repressão causada pelo acolhimento da moral e das convicções epistemológicas." Tradução livre de G. Pflugfelder

É nesse movimento artístico que alguns japoneses do ciclo underground buscaram inspiração. A exploração do Ero-guro nos mangás não tem apelo popular, pois seu conteúdo é obsceno; grotesco como o nome já adverte. Suas histórias com frequência (mas não obrigatoriamente!) abraçam temas como o canibalismo, coprofilia, pedofilia, zoofilia, vouyerismo, incesto e todas aquelas outras palavras terminadas em filia que nós nem imaginávamos existir. Seu conteúdo, extremamente visual e de roteiro geralmente simples, é apreciado apenas por aqueles aptos a se enfiar no submundo da humanidade, sem tapar o nariz ou fechar os olhos. Ou para aqueles que não querem cimentar o ralo, traduzindo para o underground tupiniquim.

Midori por Suehiro Maruo (imagem: http://vasta.blogsome.com/)

Se engana quem pensa que o Ero-guro visa o choque pelo choque ou a mera satisfação sexual de pessoas com distúrbios sexuais (pelo menos não nas mãos de seus principais representantes). A vida profissional do grande mestre desse estilo, Suehiro Maruo, deixa isso claro.

Maruo, o Marquês de Sade dos mangás, teve uma infância pobre e nunca foi adepto do estudo, aproveitando seu tempo na escola para desenhar, onde ficou maravilhado com a estética japonesa e alemã dos anos 20 e 30. Passou um tempo na cadeia nos anos 70 por roubar discos (Pink Floyd e Santana), período este aproveitado para aprimorar sua técnica e consolidar sua visão de mundo. Foi recusado pela Shonen Jump (de Dragon Ball, Yu Yu Hakusho e outros tantos) por enviar para análise uma história erótica e sanguinolenta. Foi também recusado no submundo da pornografia, pois realmente pouca gente estava disposta a, digamos, se animar com seu festival de sadismo doentio. Sua genialidade consiste em encontrar para si um lugar ao Sol, longe da mass-media e do universo pornô: a vanguarda artística.

Cabe aqui uma breve explicação para sua fascinação pela estética germânica. As autoridades japonesas do Período Meiji tinham um apreço grande pela dinânica prussiana (e consequentemente alemã) de conduzir as instituições públicas. Tomaram deles as bases para produzir a Constituição, o exército, o sistema educacional (sobretudo o superior) e até a arquitetura do Parlamento. Além disso a Alemanha fervilhava culturalmente nessa época, e nomes como George Grosz (telas, influenciador dos nascentes quadrinhos japoneses)  e Gerhart Hauptmann (dramaturgia), além dos óbvios filósofos (Schopenhauer, Nietzsche) serviam de inspiração e base de debates para as elites japonesas da época. A cultura japonesa estava muito alinhada com a alemã nesse período pré-guerra. Gostar de uma indica, quase que necessariamente, gostar da outra.

O Sade japonês (imagem: http://quadrinhosartesequencial.blogspot.com/2010/05/dos-quadrinhos-de-frank-miller-para-os.html)

A obra de Maruo - quase 30 livros em 20 anos, 3 deles publicados no Brasil  pela Conrad - muito apreciada pelas mulheres, em geral se passa no período Showa (1926-89). Seu impacto é visual, mas é possível notar uma forte profundidade em sua obra, que exclui qualquer chance de catalogar sua produção como meros hentais. Com algumas passagens reflexivas, e muitas referências filosóficas visuais, a obra de Maruo não é para qualquer um. Sade, Allan Poe, Freud, Bataille, Ernst e Salvador Dalí são só alguns nomes à quem ele faz referências indiretas para quem é capaz de percebê-las.

Ele possui um conjunto de características e fixações que o diferenciam. Talvez a mais óbvia seja a presença dos extremos. Suas histórias sempre flertam com a tênue (inexistente?) linha que divide prazer e dor, o horror do erótico. De maneira gráfica, o extremo está sempre batendo cartão com a relação entre as cores clássicas do mangá: o branco (inocência) e o preto (perversão), onde sempre o homem em tons pretos submetem as fêmeas animalizadas, de pele alva, aos seus caprichos psicopatas. Uma visão bastante curiosa sobre os papéis dos gêneros na esfera sexual.

Capa de DDT: Seria David Bowie, o camaleão, na posição em que morreu São Sebastião? Uma referência à sexualidade do escritor Yukio Mishima que teve sua primeira experiência sexual com o quadro de São Sebastião de Guido Reni e até se fotografou na mesma pose?

Suehiro denuncia, via exploração da juventude, uma sociedade que celebra as aparências enquanto esconde suas imoralidades embaixo do tapete. Para isso usa um conteúdo virulento que contrasta com a suavidade do seu traço.

Outras fixações que não podem ser ignoradas são os animais e o olhos. Em suas histórias são corriqueiros os personagens usando tapa-olhos, perdendo seus globos oculares, obtendo prazer estimulando os olhos alheios ou mesmo usando olhos de animais em seus atos doentios (em clara referência ao História do Olho de Georges Bataille). Confesso não ter entendido essa referência quando primeiro tive contato com uma hstória do Maruo, mas uma breve pesquisa logo elucidou a situação:

"Antes de História do Olho de Bataille e Sopa de Merda de Maruo, outro personagem também se desorbitou, perdeu os olhos: O Édipo de Sófocles, punido com a cegueira por haver feito sexo com a mãe. Freud, ao interpretar esse mito, associou a perda da vista à punição da criança que foi olhar seus pais a fazerem sexo. Bataille e Maruo adotam esse mito e o desdobram: simbolicamente, gozar com os olhos e penetrar pupilas desorbitadas é romper o tabu do incesto; portanto, voltar a origem, à estaca zero. Isso, admitindo-se, como postulam Freud e Lévi-Strauss, que o tabu do incesto, a interdição do sexo entre parentes sanguíneos, constituem a sociedade e a cultura." Claudio Willer

imagem: http://flying-teapot.blogspot.com/2008/12/suehiro-maruo-maruo-graph-exibition-i.html

Suehiro é apenas o principal nome de um circo repleto de artistas consagrados. Alguns deles são Shintaro Kago ("aquele que transforma merda em ouro"), Jun Hayami (aquele que nos mostra as perversões - estranhas e frequentes - daqueles que nós vemos e convivemos diariamente), Waita Uziga (adepto do humor negro e da exploração de temas como, distopias, corrupção e abuso de autoridade), Toshio Maeda (autor de Urotsukidoji, famoso no Brasil) e Henmaru Machino (O Magritte do Ero-guro, participante do movimento Superflat - certa fixação com animais).

Nomes como o de Horihone Saizou não repercutem fora do Japão pela ampla exploração de gêneros tolerados pelas leis japonesas mas proibidos na maioria dos países, como o lolicon e o shotacon.

Junko Mizuno é uma japonesa que ganhou notoriedade pelo estilo Gothic Kawaii, a mistura de bases kawaii com elementos de horror, violência e cunho sensual, tudo dentro de uma atmosfera psicodélica cheia de cores. Devido a internet, já virou fenômeno global e sua arte ilustra toda uma gama de produtos:

Junko Mizuno (imagem: http://ajani.ca/blog/?p=235)

Mizuno's T-shirt (imagem: www.nerdssomosnozes.com)

Particularmente não sou fã do gênero, tendo pesquisado mais pela curiosidade de saber o que acontece nos esgotos da cultura popular que me alimenta desde a infância. Reconheço que a obra de alguns nomes podem sim serem chamadas de arte, e que certos títulos extrapolam o junk para virar cult. Tenho interesse pela obra de Maruo e Mizuno, mas ele morre por aí. Já entendi o contexto que alimenta tanta bizarrice, e isso é o suficiente. Além do mais, o interesse nos dois é intelectual e artístico, pois a exposição da sexualidade na verdade me causa o efeito contrário...não é legal ou estimulante ver pessoas decepadas ou sem os olhos copulando...(se duvida, ou se é curioso, joga alguns desses nomes citados acima no Google imagens com filtro desativado e veja por si só).

Dentro do assunto, me agrada mais a abordagem do Marquês de Sade ou do cineasta Pier Paolo Pasolini. O italiano, em seu chocante Salò ou 120 dias de Sodoma, adapta a história de Sade ao período Fascista, onde jovens italianos conhecem o inferno nas mãos de alguns figurões poderosos e fazem um passeio nada agradável pelos três círculos: Das taras, da merda e do sangue. Segue um show de humilhações, violência e submissão criado com a intenção clara de chocar a audiência. Creio que no estômago o efeito foi o mesmo, mas Saló me fez pensar por um pouco mais de tempo que Maruo.

120 dias de Sodoma (Pasolini) - (imagem: http://exileonmoanstreet.blogspot.com/2010/04/pasolinis-salo-unbanned-in-australia.html)

Resumindo: Não recomendo o ero-guro para ninguém e só recomendo Maruo para quem tem real interesse em cultura japonesa ou na temática de Sade.

"Dizem que meu modo de pensar não pode ser admitido. E o que tem demais? Bem louco é aquele que deseja prescrever aos outros um modo de pensar. Não foi meu modo de pensar que provocou minha desgraça, e sim o modo de pensar dos outros." Marquês de Sade

Enjo Kosai, os anjos caídos

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"While you're nacked like this, someone somewhere is feeling so heartbroken" Love & Pop
 Por décadas o mundo dos negócios definiu claramente as diretrizes da sociedade japonesa - trabalho duro, entrega, resistência, resignação e fidelidade - características que valoravam positivamente o espírito do homem japonês moderno, ávido por reconhecimento e aceitação no grupo social. A exuberante economia nipônica no decorrer dos anos 80, fonte de insônia dos economistas americanos da época, converteu a ala feminina da sociedade em devoradoras de grifes européias. Um mercado tremendo para Cartier, Bvlgari, Dior, Gucci, Channel, Prada, Louis Vuitton e toda aquela infinidade de marcas que oferecem projeção social em uma nação altamente nivelada. A década de 90, enfim, alfinetou a frágil bolha que sustentou a festa e sangrou a economia japonesa de modo irreparável, mas não conseguiu frear os hábitos recém adquiridos.

Ao atingir, até superar, os limites de modernização possíveis para o pequeno Japão, os homens de negócios perderam seu prestígio, sendo inclusive culpados pelas novas gerações devido a situação deprimente na qual o país se encontra no aspecto social. Esses homens não fazem a menor ideia de como reagir a isso, pois o estudo e o trabalho eram os únicos pilares que sustentavam sua existência, sem eles, não sobra nada. Nunca foram cobrados ou estimulados a desenvolver outras competências, não precisavam disso antes, bastava planejar a vida, estudar numa boa universidade e obter um bom emprego para ter uma vida próspera e reconhecida pelos seus próximos. Renegados pelo individualismo e materialismo que alimentaram (ou melhor, foram instigados a alimentar), muitos deles passaram a se encontrar num estado de solidão insuportável.

Empresas do mercado de luxo buscaram compensar a queda no padrão de consumo japonês oferecendo status e poder às adolescentes, explorando as inseguranças da idade, fazendo com que acreditem na necessidade de se posicionar socialmente com grandesmarcas, o que no Japão ganha a força de um furacão devido a influência do grupo na existência social maior que em qualquer outro país. Ao mesmo tempo em que parte das mulheres faziam questão de manter a obtenção de bem estar e riqueza dos tempos áureos, mesmo que precisassem atropelar (ou ignorar) considerações éticas. Estava plantada a semente para uma das mais questionáveis práticas típicas do Japão: o enjo kosai.

Abordagem - Enjo Kosai

Enjo Kosai (traduzido livremente como encontro compensado) é uma situação que ocorre menos do que a mídia especula, mas mais do que se supõe. Significa a prática de garotas, geralmente colegiais (a idade média varia de 12 a 20 anos, com extremos para cima e para baixo), que são muito bem pagas ou presenteadas com artigos de luxo por homens mais velhos para os acompanhar em saídas e, às vezes, lhes prestar favores sexuais. Exato, homens ou grupos deles que pagam pequenas fortunas apenas para que meninas em seus uniformes de marinheira (detalhe quase sempre imprescindível) os acompanhem em restaurantes, cafés ou karaokês. Alguns deles também fazem questão que elas os acompanhem até os hotéis do amor, uma face mais nebulosa do fenômeno.

Nos anos 90, período inicial e auge da prática, os homens interessados pagavam uma taxa e se alojavam em instalações físicas, comumente administrada por yakuzas, onde recebiam, por telefone dentro de uma cabine, as propostas das meninas interessadas. Hoje eles pagam uma taxa para receber diretamente listas com números de celular das garotas voluntariamente cadastradas. Nesse método, os homens deixam pequenas mensagens de voz explicando o que eles querem e quanto desejam pagar, bem como as meninas mencionam como elas são, até onde estão dispostas a ir (nas entrelinhas, claro) e quanto almejam receber. Algo como "Sou um cara de 35 anos e estou procurando alguém para jantar comigo por 20.000 ienes. Se estiver usando seu uniforme colegial, 30.000." Há claro outros modos de 'aliciamento', como a abordagem pessoal nas ruas e a internet (os merekura, sistema similar ao telefone, mas por e-mail). As regras do encontro são previamente estabelecidas e geralmente respeitadas.

Um pouco de estatística para dar dimensões ao fato. Pesquisas indicam que no final dos anos 90, algo em torno de 5-10% das alunas colegiais já tinham feito enjo kosai. Dessas, segundo pesquisa do psicólogo Mamoru Fukutomi, 23% admitem terem se prostituido, outros 23% alegaram terem mantido uma relação sexual legal (falarei da legislação mais adiante, adianto que é algo que não envolve o coito genital), enquanto 48% afirmaram apenas oferecer companhia. Por outro lado, cerca de 75% das colegiais japonesas já receberam alguma oferta de um homem. Apesar disso, a coisa acontece atrás das cortinas e 70% da população japonesa desaprova o ato, não é algo aberto e generalizado.

uniforme japonês estilizado

As tentativas de racionalizar o problema partem de sociólogos, psicólogos e especialistas de diversas áreas, dentro e fora do Japão. Os pensadores estrangeiros tendem a generalizar os encontros como prostituição infantil, mesmo quando eles não implicam em alguma relação erotizada. Os japoneses já preferem, de modo geral, não reduzir o enjo kosai  a prostituição pura e simples, preferindo chamar o ato de "compra da companhia da garota", quando os clientes apenas querem um rosto fresco para acompanhá-los no karaokê ou alguém para conversar (ou monologar) durante o jantar.

Mesmo dentro do Japão há uma gama de tentativas de explicação no meio acadêmico e talvez a verdade se encontre ou esteja sugerida na intersecção delas. O enjo kosai está ligado a subcultura feminina dos anos 80 chamada Kogal, uma tribo urbana de garotas que se vestiam como estudantes (mesmo após finalizar os estudos), com saias encurtadas, meias amarrotadas, cabelos loiros e pele bronzeada. Não quero me aprofundar nisso, mas essas meninas eram reconhecidas pelo ímpeto consumista e muitos atribuem o início do fenômeno a isso. Uma forma das garotas sustentarem o padrão de vida de outrora quando seus pais não conseguiram manter a saúde financeira no estouro da bolha. A aparência externa tem importância histórica na sociedade japonesa, e carregar certos símbolos aufere o devido prestígio social. Gucci funciona para essas garotas como as duas espadas e o corte típico dos cabelos funcionavam para os samurais, um meio de se afirmar no grupo e marcar território a partir da distinção sobre os demais. E não dá para comprar Gucci com os bicos de meio período, convenhamos...

Uma explicação que compartilha um pouco dessa visão é aquela que condena a materialização da sociedade japonesa e as consequências sociais do ato. Como esperar que garotas adeptas do enjo kosai possam se tornar boas mães e boas esposas num casamento virtuoso se estão dispostas a se curvar diante de terceiros desconhecidos em troca de benefícios materiais? O adultério é frequente no país devido ao ranço medieval dos casamentos por conveniência, onde o homem buscava cortesãs e a mulher tinha amantes sem maiores problemas caso a situação não se tornasse pública. Essa visão crítica da posição da mulher no enjo kosai pode ser, paradoxalmente, vista tanto como machista (afinal, elas podem questionar o mesmo sobre homens que pagam por sexo com frequência enquanto cobram uma posição romantizada da mulher) como moderna, já que a negação do materialismo e a cobrança pela amabilidade e fidelidade da mulher são valores românticos importados do ocidente (e de sua ficção) nas últimas décadas. (de como ele é cobrado, que fique claro. A mulher japonesa sempre foi cobrada pelo seu comportamento)

"Tenho 35 anos e quero ir ao parque com alguém. De preferência magra e com uniforme. Que tal...30.000?" Foto OBVIAMENTE não relacionada.)

Outros enxergam a prática como um rito de passagem para a fase adulta, desenvolvido de modo orgânico na sociedade capitalista. Nele, a prática seria uma forma da menina atingir um maior grau de maturidade nos relacionamentos, interagir com homens mais velhos, aprender a lidar com o sexo oposto e a se comportar num encontro. A juventude japonesa, pela exaustiva cobrança que sofrem com os estudos, não tem muito tempo e disposição para desenvolver a expressão sexual entre seus pares. Isso se reflete tanto pelo lado da menina quanto pelo lado do marmanjão que é gerente de empresas enquanto segue verde nos relacionamentos sociais e amorosos (da menina apenas quando possível, pois muitas vezes o contratante é um babão com habilidade social nula). O lado oposto desse ponto de vista é a perspectiva de que o enjo kosai na verdade é apenas mais uma expressão da superficialidade das relações no mundo atual, onde as pessoas estariam aplacando o tédio e afogando solidão em relações contínuas e em doses unitárias, que estimulam o corpo mas não tocam a alma. Alguns críticos e feministas defendem que o ato é um modo de minar os mecanismos de controle dos modelos patriarcais sobre a mulher. Se a sociedade espera da tradicional mulher japonesa características como ser recatada, educada, respeitável....é justamente isso o que elas não farão, numa rejeição aos valores vigentes.

Um ponto interessante que percebi nas pesquisas é que as explicações tem a tendência de mirar suas lentes no comportamento juvenil das garotas, deixando de lado o outro lado da relação, o exército de solitários que pagam pela companhia e/ou relação íntima com meninas de 13 ou 14 anos, muitas vezes tendo filhas na mesma idade. Só há oferta porque há demanda, e pelos valores envolvidos, imagino que a demanda supera em muito a oferta. As meninas enxergam seus uniformes como marcas fortes no Japão, a marca da estudante, que só pode ser adquirida mediante salgados investimentos por parte do lado desejante. Vendem sua marca para ter acesso as marcas que gostam. Nesse sentido, uma visão interessante é a que culpa também a desestruturação familiar dos tempos atuais bem como a superproteção que as crianças japonesas recebem em alguns casos (para saber mais, ler o artigo sobre o kawaii). Os extremos são sempre perigosos.

Creio ser ingenuidade tomar uma dessas explicações como uma verdade absoluta e capaz de, sozinha, dar conta do recado. A questão é tão complexa que, como os estudos sobre comportamento do consumidor, uma tentativa de racionalizar o objeto de estudo deve abranger uma série de fatores muitas vezes contraditórios, pois a realidade é contraditória.

Bolsa da Louis Vuitton com design de Takashi Murakami, o idealizador do movimento Superflat. A crítica inserida e contida na lógica do mercado

Garotas que entram no enjo kosai muitas vezes são influenciadas pelas amigas já envolvidas, não se preocupam com o futuro e não desejam envelhecer. As motivações alegadas são várias, segundo a pesquisa realizada por Iwao em 1997 com cinco mil japonesas que fazem o enjo kosai. 34% alegaram se envolver por dinheiro e 37% por curiosidade. Além disso há justificativas como tédio, solidão, necessidade de se sentir viva, diversão, "deixar-se levar" etc. Essas meninas, muitas vezes superprotegidas ou negligenciadas pela família.

Deixam-se levar também pelo fato de morar no Japão, não na Tailândia. Não se dão conta do perigo, acham que podem largar o enjo kosai quando quizer e tudo voltará a normalidade. Não é bem assim. Ok, de fato elas são "freelance" e não estão nas mãos de nenhum cafetão, mas ignoram o fato que dentre os adeptos, sempre há o maníaco disposto a abusar, torturar e matar a contratada (e os casos registrados beiram o abominável). Se esquecem que na era digital qualquer infeliz tem uma câmera e que no dia seguinte o rosto dela pode estar na internet masturbando um deslocado social. Também parecem não tomar parte que muitos dos homens que pagam por sexo com elas fazem o mesmo com as prostitutas da yakuza (a maioria 'importadas' do leste asiático e da Rússia para prestrar favores sexuais ilegalmente no Japão), com suas altas taxas de DSTs, como aids e gonorréia, um perigo não só para elas como para seus namorados ou eventuais parceiros. Algumas delas, entretanto, também são perigosas. Aceita ir para o motel, exige que ele tome banho antes e, durante a chuveirada do pobre ingênuo, ela esvazia a carteira dele e foge. A vítima nada pode fazer, pois se denunciar é preso por levar uma menor para o templo de Eros mediante pagamento.
"Ela sabe que alguns não querem usar camisinha. Mas nenhuma de suas amigas nunca ficou sabendo de alguém que tinha pegado aids, então tudo bem."

Habu Hoteru (Hotel do amor) em Osaka

 A prostituição se tornou ilegal no Japão em 1958 devido a pressão da comunidade internacional (quando o Japão ainda lutava para ser reconhecido como país civilizado e progressista), mas sua definição é estritamente específica. Prostituição é apenas aquilo que envolve o coito genital, e geralmente pune as prostitutas e os cafetões, não os clientes. Sexo oral ou masturbação, por exemplo, não se enquadram como prostituição. Além disso, a idade de consentimento no Japão na maioria das jurisdições é entre 13 e 14 anos, logo, um cinquentão pode manter relações com uma menina de 13 caso ela deseje e caso o sexo não seja pago.

As autoridades japonesas sabendo das dificuldades de executar prisões, tanto pelo formato fluído e anônimo das negociações (que dificultam o flagrante e a prova do envolvimento financeiro no acordo) quanto pelo anonimato dos rabu hoteru (que por questões de privacidade, não tem contato visual com seus clientes), estão buscando focar seus esforços na educação de pais e crianças, - caso da Accepting Adult Responsability - Give Youth a Future. Aiko Fujita da câmara de Tóquio afirma que "adultos deveriam ensinar a juventude corretamente no sentido de julgar por si só se eles concordam ou não com a comercialização do sexo antes de criar regulamentações". Em 1999 as autoridades sentiram a necessidade de rédeas para controlar as investidas dos homens frustrados e aprovaram novas leis, certamente uma medida inócua, pois provar que houve pagamento é quase impossível e o sexo com menores acima da idade de consentimento segue aceito judicial e socialmente. Ações que serviram mais para tranquilizar as mães enquanto seus irmãos estão na caça por uma pequena Lilith disposta a vender sua companhia, e quem sabe , seu corpo liso, afinal, em sua casa a Eva não quer ver a "cor da coisa" faz um bom tempo...

O simples detectar do enjo kosai já é tarefa ingrata. Os casais no Japão não manifestam sinais físicos de afeto em público. Como saber se o quarentão engravatado está comendo uma pizza com sua filha colegial ou está pagando para comer com a (ou simplesmente a) filha de outrem? Além disso, mesmo quando as famílias descobrem, não costumam comunicar as autoridades. Ser vítima de abuso sexual é uma vergonha que se projeta na família, pior ainda se envolver uma menor. As meninas acabam vítimas do abuso e do silêncio.

Enjo Kosai

Apesar da opinião pública ser contrária a esse comportamento, não é raro ver professores, homens de negócio, policiais, representantes religiosos, funcionários do governo e até juiz ser detido pela prática. O que mais intriga a mídia japonesa é a ausência de remorso da maioria das garotas envolvidas. Várias delas não sentem nojo, repulsa, sensação de estar fazendo algo errado mesmo quando o encontro envolve prostituição.  Ao contrário, enxergam a situação de modo positivo. Elas ganham dinheiro e oferecem um sopro de vida aos pobres homens sozinhos, lógica de mercado total. Talvez porque o sexo não é um tabu na sociedade japonesa como é nas sociedades ocidentais cristãs (ou nas judaicas e islâmicas). Mais que isso, as possibilidades financeiras da sociedade japonesa desvalorizaram ainda mais o valor da virgindade, antigo artefato de barganha para arranjar um bom casamento.

Certamente uma hipocrisia sem tamanho por parte dessa mesma mídia que perpetua o culto ao kawaii, fazendo com que homens caiam de quatro por uma saia plisada de uma estudante menor de idade. Estas, nascidas numa sociedade materialista que passou décadas só falando em progresso e enriquecimento, não enxergam problema em rentabilizar sobre sua valiosa e volátil aparência pueril. Decadência é a palavra da vez que os adultos e a mídia escolheram para definir a juventude japonesa. Professores, políticos, homens de negócio e representantes da mídia acabam esquecendo que foram eles os responsáveis pela criação do monstro de colocar o lucro acima das proposições éticas. Quando não são eles próprios que pagam para cantar com uma bela kogal ou compram revistas de crianças de 10 anos posando de bikini em poses sensuais ou jogando vôlei. Para mais informações, clique aqui.

O enjo kosai ultrapassou fronteiras e ganhou popularidade em algumas regiões do leste asiático. Em Taiwan, diferente do Japão, os encontros são marcados apenas pela internet e o governo local acaba generalizando prostituição e pornografia infantil como enjo kosai. Na Coréia do Sul, país que no aspecto sexual é muito mais conservador que o Japão, a prática foi introduzida por um dorama; considerado crime  pelo governo de Seul, e a menina envolvida está sujeita às punições da lei. Em Hong Kong, onde o enjo kosai também é crime, o assunto ganhou notoriedade com a morte brutal de Wong Ka-mui aos 16 anos de idade.

Karaokê, muito apreciado no Japão, um dos locais favoritos para o enjo kosai

O mais engraçado é que inclusive o enjo kosai está sendo acossado pela atual deflação da economia japonesa. Segundo o jornalista Yukio Murakami:
"Talvez devido à prolongada recessão, a prostituição está sendo atingida pela deflação. Até alguns anos, o preço de mercado para uma garota do ensino médio era cerca de 25.000 ienes. Mas depois do choque da Lehman em 2008, caiu para 20.000 e agora cerca de 15.000. As estudantes universitárias são ainda mais baratas do que estudantes do ensino médio - talvez em torno de 10.000 ienes. E para donar da casa que passaram dos 35 anos, o preço gira em torno de 9.800 ienes, incluindo o custo do quarto do hotel, um negócio incrível."
É válido também citar que, apesar de bem menos comum, também existe o enjo kosai masculino, chamado gyaku-enjo kosai, o encontro reverso, onde mulheres ou homossexuais pagam para sair com garotos nos mesmos moldes.

Love & Pop - Hideaki Anno

Finalizo esse grande post falando um pouco sobre a exploração do tema nas manifestações da cultura pop no país. O tema é quase sempre tratado sob uma luz negativa. Animes como Great Teacher Onizuka, Bokurano, Initial D, Super Gals! e Puni Puni Poemi trazem referências diretas ou veladas ao enjo kosai. No cinema temos All About Lily Chou-Chou, de onde Tarantino inclusive tirou uma música para o seu Kill Bill, e a expressão mais significativa: Love & Pop.

Hideaki Anno é um diretor japonês consagrado pela criação do que talvez seja o anime mais importante dos últimos 25 ou 30 anos, e certamente um dos mais cultuados de todas a história da animação mundial: Neon Genesis Evangelion (homenageado até pelos animadores no filme dos Simpsons. Acho que poucos entenderam as árvores aplaudindo o Homer após sua "iluminação pessoal"). Love & Pop, de 1998, foi a primeira experiência de Anno fora das animações.

A fera que gritou "EU" no coração do mundo

Hiromi aceitou acompanhar o cidadão que queria exibir uma garota para o atendente de uma locadora que o desprezava, mas acabou masturbando o contratante entre as prateleiras

Usando tecnologia digital (recente na época, o que justifica a baixa qualidade das imagens) para baratear os custos e aumentar as possibilidades, Anno usou e abusou do experimentalismo. Sua tomadas são esquizofrênicas, seus ângulos incomuns, sua decupagem frenética. ele nos coloca em pontos de vista diversos, como dentro do microondas, das câmeras de segurança dos ambientes públicos ou entre as pernas das meninas. Fica difícil mesmo definir se sua abordagem é genial ou amadora. Dentro da proposta, eu gostei muito.

Seu jogo de câmeras (muito vouyeristico) tem um propósito. Ele não abre possibilidade de escolhermos o nosso ponto de vista, ele determina por qual perspectiva assistiremos cada cena. Diferente de planos que trabalham com a terceira pessoa, como o plano americano, onde nós podemos escolher onde concentrar a atenção e temos a possibilidade de fugir das cenas mais pesadas, nos planos de Anno nós somos obrigados a ver o que ele quer que vejamos. É um ataque feroz a jovens que se vendem sem a necessidade disso, dentro da até então segunda maior economia do mundo.

Assim como Anno cuspiu na cara dos otaku com seu Evangelion, agora ele cospe na cara de quem entra voluntariamente nesse lamentável mundo da prostituição. Algo como: Quer se vender, sua puta? Então vai lá! Você vai comprar sua câmera, seu anel rapidinho, com uma velocidade impossível em qualquer emprego de meio período, mas antes veja o preço que você tem que pagar por isso:





Ao nos colocar nos olhos da menina vendo a mão imunda após o serviço sujo ou deitada no banheiro com um maníaco sádico por cima dando lições de moral com uma arma (que eu acho ser de choque) no bolso, Hideaki não busca o choque pelo choque, apenas tenta ser claro o bastante para abrir os olhos das jovens japonesas. Estimular a pensar no que realmente é valioso, se vale a pena se vender tão barato. Hiromi se sentia vazia, passada para trás pelas amigas que progrediam enquanto ela ficava parada, num país de muitas crianças presas em corpo de adulto. Acabou preenchendo isso com posses materiais, e claro, Anno a jogou no fundo do poço.

Pensando em significação, gostei bastante das cenas onde nós ouvimos as mensagens dos telekuras, as propostas financeiras dos homens em busca de meninas, enquanto as cenas mostram as multidões de Tóquio. Massas atravessando ruas, enchendo metrôs, e a solidão dessas pessoas em meio a tantos outros humanos, que precisam rastejar ao nível de pagar para ter companhia no jantar. Aonde todo esse progresso os levou?

Anno também mostra uma obsessão por trilhos. Seja no 'Ferrorama' do pai de Hiromi, no trem de Tóquio ou no brinquedo infantil numa espécie de parquinho; uma bela metáfora para a percepção dos japoneses de que suas vidas estão predeterminadas, traçada pelos outros, onde eles devem seguir seu caminho sabendo quais serão as próximas estações, no máximo, aproveitando a vista ao redor...entendo como uma denúncia ao tédio generalizado que assola esses jovens.

Antes dos casos mais extremos ilustrados acima, o filme mostra também os casos soft, honestos, se é que é possível usar essa palavra. Um homem paga para duas meninas comerem a refeição que ele cozinha. Durante a cena, ele vai monologando sobre isso, como festejar é bom, como ele se sente só quando precisar comer sozinho, que ele de tempos em tempos cozinha para conhecidos e é por isso elogiado...não tem como não se sensibilizar com a figura de um cara que não deu certo mas mantém um bom coração. Os assuntos são frívolos, o importante é alguém ouvindo. Em outro caso as meninas se espantam quando descobrem que há homens dispostos a pagar verdadeiras fortunas por uvas semi-mastigadas por jovens estudantes, mesmo sem saber quem fez o serviço...

Infelizmente um bom filme que, pelo assunto tratado, fica restrito ao público japonês ou interessados no assunto.

Hideaki Anno

FONTES:
Name Brand Beauties for Sale - Jennifer Liddy
ENJO KOSAI - FERNANDO FERREIRA
She's only a little school girl - Kate Drake
Enjo Kosai em ascensão - Kyaa Schneider
Those Naughty Teenage Girls: Japanese Kogals, Slang and Media Assessments - Laura Miller
Enjo Kosai: Teen Prostitution, a Reflection of Society's Ills - Jamie Smyth

Homo Virtuens, o surgimento do fenômeno otaku

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Após um período de descontinuação, trago o Otakismo de volta com o tema que pauta a maioria dos posts já feitos e a maior parte dos que ainda estão por vir. O entendimento da questão: Que cazzo é um otaku? Por que demônios o criador do blog assumiu esse termo repleto de significações diversas para nomear sua página? Como todo termo japonês, uma breve descrição nos moldes do dicionário se mostraria um fracasso completo. Isso se apenas nos limitarmos a entender seu sentido no seu território de origem. A questão se torna mais confusa quando o termo é abraçado de modo distorcido mundo afora.

Vamos deixar a complicação para depois e pincelar o que está próximo de nós através de uma generalização horrível e simplist. Otaku no Brasil é um termo adotado pelos fãs da cultura pop japonesa do pós-guerra, quase sempre de modo restrito aos fãs de animes, mangás e/ou tokusatsus. Por extensão, a maioria deles acaba se interessando pela cultura japonesa geral, mas não é comum o aprofundamento, isto é, eles até sabem o que é um ikebana, comer com hashi ou que se retira os sapatos antes de entrar numa residência japonesa; mas não fazem ideia de quem seja Hideki Tojo, Bashõ ou mesmo Yasujiro Ozu. Dominam, no entanto, sua paixão específica. Assistiram incontáveis animes de todos os gêneros existentes, sendo capazes de decorar uma lista telefônica de nomes asiáticos. Me sinto um  legítimo amador lendo redes sociais do gênero.

O termo não costuma gerar vergonha em seus adeptos (o que pode ser facilmente verificado nas comunidades do Orkut como: "Sou otaku, com orgulho!"), ao contrário, se gera alguma emoção em alguns é orgulho. Até porque o termo é desconhecido das pessoas menos antenadas e dos adultos como um todo, e, mesmo quando conhecido, não gera estigmas sociais significativas. Se carrega algum pesar, o rótulo compensa quando é usado para gerar pertencimento no grupo social. Existem eventos de cultura pop japonesa, todos sob a estrela do Anime Friends em São Paulo, que ano a ano parece se converter em uma convenção otaku. Um lugar para o otaku encontrar gente como ele, que compartilham gostos e percepções, usam bandanas do Naruto ou plaquinhas com avisos patéticos sem  sofrerem humilhações públicas, partilham o prazer de usar ou apreciar Cosplays e sorver litros de Mupy, a bebida oficial dos otaku brasileiros. (os eventos também servem para alguns olharem em volta e pensar "cacete, eu gosto das mesmas coisas que esses caras?" kkkk).

Anime Friends

Chovi no molhado e ainda estereotipei um grupo social apaixonado. Foi proposital. A caricatura fará sentido quando eu comentar sobre o que é ser um otaku NO JAPÃO, qual o peso desse rótulo por lá e como as pessoas mundo afora que se pretendem como otaku ignoram completamente o peso e a realidade sociológica da cultura e do povo que tanto admiram. Como já me expus o suficiente falando do brasileiro, agora é hora de citar autores; a questão é complexa demais para que eu meta minha humilde colher sozinho, passo o pepino para quem conhece e vive a realidade: Étienne Barral (@ebarajp), um japanologista (como dizem nossos irmãos lusos) francês que vive há muitos anos no Japão e entende bastante das subculturas do arquipélago milenar. 

Sua obra "Otaku - os filhos do virtual" foi lançada no Brasil e procura explicar o fenômeno à luz dos "relatos de caso, suas interpretações como produto de uma sociedade fundada na informação e no consumo e o aprofundamento da projeção imaginária que deriva desse grupo". De tudo que eu li sobre o assunto, foi sem dúvidas o texto mais esclarecedor.

Ainda estou esperando chegar dos EUA minha versão de "Otaku - Japan's Database Animals" do crítico cultural Hiroki Azuma (Ph.D em Cultura e Representação pela Universidade de Tóquio) que buscou entender o fenômeno através dos pensamentos de Lacan e Kojève (pensador francês de origem russa que descreveu como os americanos do pós-guerra se tornaram animalizados com o progresso material, buscando apenas satisfações imediatas para suas necessidades, sem buscar maiores significados ou objetivos). Caso alguém discorde de algo do que está por vir, questione Barral e engrandeça a discussão com suas percepções. Não descreverei verdades, apenas pontos de vista bem embasados. Isso não é matemática. Minha contribuição será na forma de exemplos e analogias e óbvia construção do texto.

Otaku - Étienne Barral

O Homo Sapiens progrediu imensamente através do empirismo, da transformação do mundo real, da modelação do tangível. O mundo de Newton e Descartes, das experiências, das paradigmáticas ciências duras de Thomas Khun, do Positivismo de Auguste Comte. A psicanálise de Freud, a relatividade de Einstein e o Surrealismo de Dali apontaram suas armas no início do século passado. Eis que surge, no início do nosso século, o Homo Virtuens, sem nada o que fazer na realidade angustiante e redundante que o cerca, reivindicando o direito de sonhar acordado!

Os otaku seriam a primeira geração de Homo Virtuens, seres gerados no fim dos anos 70 e início dos anos 80 no Japão, em pleno auge da prosperidade econômica, embalados pela asfixiante atmosfera de consumo, educação e informação em demasia. Refugiaram-se na fantasia, "superalimentados por imagens propostas pela mídia". Uma descrição precisa existe no prefácio do livro: "Rebelde desertor, o otaku utiliza nosso mundo sem dele fazer parte.". Vivendo em sua bolha pessoal, o otaku ignora as relações interpessoais, retarda sua entrada na vida adulta e no mercado de trabalho e se relaciona com fantasias do universo bidimensial, sejam as graciosas meninas de nanquim, seja a inatingível cantora pop pixelada na televisão.

Gameficação

Antes que meu caro leitor ocidental afie sua faca e destile seu veneno contra os japoneses, quero trazer a tona um dos assuntos da moda no meio acadêmico na área de comunicação, a Gameficação (gamification). Trata-se de um fenômeno GLOBAL e atualíssimo onde as pessoas estão gameficando suas vidas, isto é, transformando as tarefas diárias, das mais simples às mais complexas, em jogos. Jane McGonigal em seu Reality is Broken defende que nós precisamos urgentemente compreender o fato das pessoas estarem gastando seu tempo em universos gameficados, defendendo a tese que a humanidade está saindo da vida para entrar no jogo. A única forma de impedir o esvaziamento do real em favor dos universos virtuais seria desenharmos a realidade pelas mesmas regras que articulam os games. De escolher o filme de amanhã pelo telefone ao Toylet da Sega. Dos ARG's nas ações de marketing a eliminar o participante do Big Brother, o futuro é interativo. Se vemos isso em sociedades como a brasileira, como recriminar algo semelhante no ultra-desenvolvido Japão dos anos 80, uma das casas do Cyberpunk?
"A realidade, comparada com os games, está quebrada. Nós precisamos começar a fazer games para consertá-la. (...) Na sociedade atual, computadores e videogames estão suprindo necessidades do ser humano que o mundo real atualmente é incapaz de satisfazer." Jane McGonigal

otaku

Voltemos ao Japão. Longe de ser um fenômeno marginal, a existência dos otaku é um grave sintoma do mal-estar generalizado da juventude japonesa, transeuntes em um país excessivamente materializado e bem sucedido que não deixa espaço para os sonhos, para o ousado. Presos em suas realidades pré-planejadas por outrem, os jovens japoneses não conseguem exprimir suas insatisfações, seus desejos, sua ânsia existencial. Nem questionar os rumos que colocaram o país com a mais desgraçada geografia do globo na condição de segunda (agora terceira) maior economia do mundo, na frente de qualquer potência européia, ao custo de muito suor e lágrimas de seus antepassados.

Como expressão artística disso, cito a obsessão de Hideaki Anno com os trilhos (de trem, metrô, ferrorama, parque de diversões etc) no filme Love & Pop, mencionado no post sobre enjo kosai, uma metáfora para essa vidas pré-programadas e uma denúncia ao tédio do japonês assistindo sua vida correr sob trilhos que são tudo menos seus. Outra referência está no anime NHK ni Youkoso!, quando Yamazaki se lamenta e vai dizendo ano a ano como será sua vida...infelizmente meu leitor de CD's está dando adeus ao mundo e não consigo transcrever a referência.

Vamos falar um pouco do termo. Como moe e kawaii, otaku é uma palavra que gera controvérsias, esse até mesmo no Japão. Fato que ele foi cunhado em 1983 pelo ensaísta Nakamori Akio. É intraduzível, mas a beleza do idioma japonês permite que compreendamos as ideias embutidas. Remete tanto ao termo habitação (isolamento) quanto a um tratamento impessoal de distanciamento ds  japoneses (falta de conectividade social). O termo ficou jogado para escanteio até 1989, quando o psicopata, pedófilo e necrófilo Tsutomu Miyazaki (o Drácula, o Assassino de ninfetas etc, executado recentemente pela Polícia japonesa) cometeu barbaridades contra quatro pequenas meninas. Em seu quarto, foram encontrados quase seis mil fitas VHS com animes, mangás e artigos colecionáveis do gênero. Apesar das denúncias que provas foram plantadas pela polícia para justificar o caso, ou por um fotógrafo, o caso serviu para a completa crucificação de quem tivesse o mesmo hábito que Miyazaki e vivia em seu canto sem fazer mal algum. Todo otaku passou a ser um serial killer em potencial.

Tsutomu Miyazaki

Hoje o termo é aceito publicamente no Japão para definir qualquer pessoa que tenha uma mania qualquer, usualmente associado com coleções. Alguém que colecione selos compulsivamente é um otaku. Mas geralmente quem faz isso são aqueles que conhecemos como otaku. Colecionam milhares de mangás, animes gravados em formatos de mídia diversos, artigos colecionáveis dos seus personagens favoritos, jogos etc.  Mais que isso, colecionam compulsivamente dados inúteis sobre seus objetos de adoração.  Contam quantas vezes a "talento sem talento X" piscou com o olho esquerdo ou quantos episódios tem determinado anime Y. (o que veremos um dia, é reflexo do sistema educacional asiático. Milagre coreano é o c#*&@#*).

Diferente do otaku brasileiro, não conseguem se relacionar com aqueles que não partilham do mesmo hábito e gostos. Sim, eles dominam excessivamente um assunto e ignoram todos os demais (aqui vejo LEVE sinergia com alguns otaku brasileiros).  Se isolam ao mesmo tempo em que são isolados pelos demais, que vêem nos otaku um bando de gente perdida, uma vergonha nacional (enquanto aqui o cidadão entra na comunidade "sou otaku, com orgulho!"). Não costumam trabalhar, vivem de bicos (quando não são sustentado pelos pais para sempre, caso de hikkikomori), seu relacionamentos amorosos são com acompanhantes virtuais ou com 30cm de resina (e não é um 'consolo', é uma boneca!). Deixaram de tentar ser atraentes há muito tempo, não gastam em roupas como os demais, toda a verba é canalizada para seu único hobby: entendem agora porque a indústria, presa na crise financeira, faz essas porcarias de animes focados nos otaku? Garantia de retorno financeiro. Além de só gastarem dinheiro com isso, é a única coisa que lhes faz sonhar, não há concorrência! $$$

Vergonha de fotografar garage kits nuas? Nenhuma.

Etienne Barral já enxerga essa banalização do termo otaku com olhos mais críticos, e aqui a coisa se torna mais gostosa. A sociedade japonesa ao pulverizar e amenizar o significado do termo otaku, banalizando-o, acaba se livrando da necessidade de questionar as causas que engendraram essas gerações embaraçosas e perdidas (sim, são homens perdidos, a maioria não tem volta, infelizmente). Privilegiando seu aspecto simplório, a sociedade nipônica abre mão da culpa e deixa de refletir sobre seu funcionamento. E só quem conhece sabe como os japoneses fogem de conflitos e auto-análises. Amenizar a definição ajuda a tornar o caso mais aceitável, elimina a necessidade de conflito e faz reinar a harmonia. Os otaku se proliferaram tanto que já não dava mais para ignorar ou ocultar o caso, logo, é melhor acreditar que eles são apenas sonhadores ingênuos que em breve tomarão jeito, amadurecerão e se integrarão nos moldes sociais japoneses que assumir a culpa ou ao menos refletir sobre o problema.

Fato é que a existência dos otaku questiona tradicionais mecanismos de funcionamento da nação japonesa. Etienne mostra em seu livro como o Japão se tornou o país que mais acentuou o tripé educação, informação e consumo, e como os otaku se tornaram a expressão dos excessos japoneses nos três domínios. Os doentes não seriam eles, mas a sociedade que os forjou a marteladas por uma voracidade consumista que sustentava o crescimento econômico, por um sistema educacional de ritmo desumano que não prioriza a reflexão mas o acúmulo de conhecimentos (ou fatos) mastigados, e a posse da informação como fator de inclusão social (e da-lhe gigantismo editorial). Não estariam esses pilares intimamente ligados com a estranheza do comportamento otaku?

otaku

Apesar disso os otaku não são párias humanos como certas castas hindus. Diferente do individualismo ocidental, o que rege a sociedade japonesa é o coletivo, o grupo. NÃO EXISTE VIDA fora do grupo no Japão. Estar absolutamente apartado de um grupo é estar apartado de si mesmo. O otaku segue ainda minimamente ligado à sociedade. Ele frequenta escola, faculdade (muitas vezes a escolhida pela mãe, não por ele), algum trabalho (se for Hikkikomori, está ligado minimamente à família). Portanto, como a sociedade japonesa pode rejeitá-los tão firmemente, sendo ela que os gerou com seus excessos?

Etienne mostra como situação semelhante existe no ocidente, mas descamba na toxicomania, no consumo de drogas. Aqui há um ponto interessante. Por que os japoneses fogem no mundo dos jogos ou dos animes e não nas drogas ou algo semelhante? Segue uma explicação japonesa, corroborada por um escritor americano, o grande velho safado. (a ordem cronológica deve ser inversa):

"As telas de televisão substituiram as drogas no Japão. A rigidez das autoridades sempre impediu o desenvolvimento de uma drug culture no Japão; então as pessoas voltam-se para a televisão para sonhar. Não há muita diferença entre o LSD e o vídeo. O importante é evadir-se, esquecer a banalidade do cotidiano - eis porque os otaku são tão sensíveis a isso. Em uma sociedade ocidental, eles se drogariam com outros jovens que se sentam mal na própria pele; no Japão, eles se perdem no oceano de imagens, no espelho midiático." Akada Yuli (editor e especialista em subculturas)
"Você já notou que o LSD e a televisão a cores chegaram pro nosso consumo praticamente juntos?" Charles Bukowski


No Japão a representação imaginária toma o lugar do real que não é conforme deveria ser, ela trai a pureza ideal. A juventude japonesa nasce imersa num oásis de imagens que mistificam os papéis sociais e reafirmam estereótipos. Jovens que são induzidos a se excitar com moe ou se apaixonar nos moldes do shojo simplesmente se frustram quando encaram a realidade do sexo oposto imperfeito. Abre mão do afeto e da carne quente por um 2D idealizado, puro, essencial. Pro inferno com o inexplicável gênero feminino e suas idiossincrasias, posso dormir abraçado com um travesseiro da Rei Ayanami e meus sonhos, isto basta!

 "Não é que eu não diferencio a ficção e a realidade, é que eu prefiro, de longe, a ficção à realidade. Dai a perda do sentido da realidade social e o desinteresse pelo vestuário, pela aparência e, finalmente, por tudo o que interessa aos jovens da minha idade. Qual a vantagem de respeitar as convenções de um mundo no qual não se é reconhecido? Estou melhor em minha bolha imaginária." Kiritoshi Risaku (autor do livro "O menino e os domadores de monstros")



Atentem para essa sequência do excelente anime NHK ni Youkoso!, Yamazaki (de azul), otaku assumido (vejam a decoração do quarto e as coleções no armário) pragueja contra as mulheres, e as renega imediatamente após vestir uma máscara otaku, simbolizada pelo personagem tokusatsu. Uma mensagem de que ele não precisa delas enquanto tiver moe e 2D (o que nós veremos imediatamente depois que é uma bela de uma fachada). Uma cena cômica, inteligente e repleta de significado.

Agora, por que apenas no final dos anos 70 e final dos anos 80 que esse fenômeno ganhou corpo? Para entender isso é essencial ler o post sobre a Era do Jazz japonesa, onde expliquei detalhadamente o contexto histórico que pariu essa situação e de onde dá para inferir a fixação que essas pessoas têm pela pureza. Numa sociedade que cresce sem olhar pra trás ou para os lados, o que será de sua juventude?
Crescemos com uma paródia de sociedade, uma fachada sem consistência. Como poderíamos investir nela? Crer nela? Então, preenchemos esse vazio ao nosso modo, com o único universo que ainda nos era digno de crédito, o da infância. Nossas primeiras emoções. E o que povoava nosso imaginário nesse período idílico eram os mangás, os heróis dos seriados de TV. Otaku ou não, creio que a maior parte dos jovens de minha geração só confia, no mais íntimo de si, nos raros amigos da primeira infância e nos heróis de desenho animado dessa época. A relação com esses personagens fictícios, ainda que tênue, é mais forte que a relação que um jovem adulto possa ter com a sociedade. Para mim, os otaku, com mais ou menos clareza, são jovens que sentem que os adultos, supostos representantes da autoridade na sociedade, definitivamente não são sinceros: os professores, que se supunha despertariam o saber, só se importam com o nível de aprovação de seus alunos nos exames de ingresso no ciclo superior; os políticos são corruptos, e, depois do final da guerra, os militares são considerados assassinos. Como desejar tornar-se um adulto respeitável e respeitado com tais antimodelos? Um pouco como Peter Pan, não apenas os otaku, mas os jovens japoneses em geral procuram atrasar ao máximo sua passagem para a vida adulta, têm nostalgia da infância e procuram preserva-la. Os otaku são a parte visível do iceberg. Os conhecimentos que adquirem ao longo de sua educação são postos a serviço da porção criança que permanece neles. A tecnologia, os computadores, não são máquinas, mas jogos nos quais eles se perdem para melhor preservar sua parte da infância" Akai Takami (co-fundador da Gainax, otaku da primeira geração)

otaku

Agora me sinto mais confortável para explicar o nome do blog, Otakismo, que inclusive serve como anti-propaganda em alguns casos. Muita gente acha que é o blog de um semi-analfabeto fã do Bleach (nada contra) e nem se dá ao trabalho de conferir os textos (sim, já me disseram isso). Digamos que além da óbvia relação com o Japão, sobretudo sua cultura pop, o blog é um amontoado de informações super-específicas de assuntos específicos, uma forma primordialmente otaku de lidar com  a informação (apesar de eu achar que os textos são mais amplos que a obtusa visão desses pobres coitados.) Também me insiro na significação nacional do termo, ao me destacar como um fã dessa cultura. Sem ignorar o conveniente nome reduzido  e fácil de memorizar que facilita os acessos.
"Creio que não se deve confundir os sintomas com as causas. É porque são abafados pelo meio social que os jovens escapam para a dimensão virtual. Nossa geração cresceu sem razão real para se orgulhar de si mesma. De fato, não há nada que nos valorize, que nos diga que somos indispensáveis. Para mim, os otaku especializam-se em domínios que lhes são próximos, como os mangás, os desenhos animados, os ídolos ou os computadores, para afirmar sua personalidade. Eles querem, assim, ser reconhecidos, ter o sentimento de existir aos olhos de seus pares e reforçar seu próprio ego. É difícil viver sem ter alguma razão para se orgulhar de si próprio.” Akai Takami
Encerro esse post deixando claro novamente que ele teve como base o livro Otaku de Etienne Barral, inclusive com passagens literais ou adaptadas. Recomendo demais o livro aos interessados, que isso tenha servido como aperitivo

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Ferve o sangue japonês: Nekketsu

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Ashita no Joe
"O lobo feroz que vaga sozinho
hoje luta e sangra furiosamente!
Levante-se e lute pelo futuro!
Levante-se! Vamos, levante-se!
Levanta, Joe!
Não há espaço no ringue para melodias
Se você não lutar, voltará para a estaca zero!"
(encerramento 1 de Ashita no Joe)

Alguns personagens do universo pop japonês exalam paixão! Paixão não no sentido cafonice amorosa (tá certo, outros tantos exalam esse tipo de paixão), me refiro aqui ao envolvimento. Realizam suas tarefas, mesmo as mais banais, com um sentido de entrega fora do normal, buscando seus objetivos de forma cega. Visando-o, são capazes de mergulhar em um vulcão, cair no inferno, estapear o Diabo, e voltar nadando na cara e na coragem, ainda que cegos, mutilados ou paraplégicos. Reativos, não levam desaforo para casa. Estamos falando de uma personalidade que consolidou o molde do gênero shonen nos anos 70, refletindo o espírito japonês da época: Nekketsu.

Não, agora não vou vir com o antigo discurso que traduzir termos japoneses é sempre complicado. Nesse caso é bem simples. Nekketsu pode ser entendido como "sangue quente". Esse traço de personalidade jovem, passional, apaixonado e dramático definiu a maior parte dos protagonistas (bem como vilões, adversários, coadjuvantes e outros) dos mangás e animes no final dos anos 60 até o fim dos anos 80.

Kyojin no Hoshi

Essa apologia ao esforço veio numa época onde o Japão buscava um lugar ao Sol. Já comentei por aqui o absurdo lógico que é um país como o Japão ter uma economia superior à alemã? As gerações pós-guerra japonesas trabalharam duro, duro até demais, em tempos onde o amanhã ainda era uma esperança, não uma certeza. Essas pessoas que cresceram lendo o clássico Ashita no Joe (Joe do amanhã), ou outros mangás que pregavam o mesmo: Esforço e persistência, não desistir mesmo na iminência da morte, o espírito do herói shonen.

Não vou falar especificamente de Ashita no Joe, pois o Maximum Cosmo já o fez melhor do que eu conseguiria (leiam!). Nele fica clara a importância da série não apenas para o futuro dos mangás, mas os efeitos que ela provocou na psique do povo japonês, naquele turbulento período de movimentação estudantil.

O que será do amanhã?!? (leblogcultura.com)

Foco portanto, no clamor explícito pelo amanhã presente na série. Ele não se limita ao nome da história. Na versão animada, Danpei fechava cada episódio questionando, diante das incertezas da trama, o que seria do amanhã de Joe, consequentemente, do seu próprio amanhã. Alguns exemplos:

"Joe finalmente foi transferido para o reformatório e foi recebido com arrogância... Diante de tanta crueldade e brutalidade, o que será do amanhã?"

"Se é pelo seu futuro.. Joe! Livre-se desse isolamento, rumo a um amanhã fascinante! E agora, com essas frias barras de ferro a nos separar... O que será do amanhã?"

"Então, Joe do amanhã... O que será de você?"

É fácil notar não apenas a insegurança do hoje como uma otimista visão do futuro como uma promessa que deve ser atingida, ainda que cobre um preço elevado. Ashita no Joe mostra um Japão que guarda semelhanças com nosso atual Brasil, onde se vê as fábricas e a construção civil como pano de fundo da trama, num país recheado de favelas, esgoto a céu aberto e miseráveis convivendo com outros de imensa prosperidade. Uma visão que assusta quando o olhar está por demais acostumado com os Oreimo da vida, onde o Japão é tão limpo e perfumado que até ataca a alergia.

Singela homenagem ao Joe do amanhã nas ruas de Okinawa (http://www.flickr.com/photos/100rpm/)

Do mesmo criador, um nome que capta a essência da personalidade nekketsu é a série de baseball Kyojin no Hoshi (Star of the Giants). O protagonista é preparado pelo rígido pai para se tornar o melhor pitcher do Japão (qualquer semelhança com tornar Joe o melhor pugilista do Japão não é coincidência, é fórmula de sucesso). Submetido a treinos exaustivos e impiedosos, Hyuma Hoshi se torna pitcher dos Giants, enquanto seu pai se torna treinador da equipe rival. Diante desse dilema freudiano, Hyuma Hoshi arremessa a bola do título, não sem pagar um alto preço pela vitória; com a força do golpe, rompe os tendões do braço, precisando abandonar o esporte para sempre. No pain, no gain. Não há vitória sem sacrifício, esforço, suor, como aponta Cristiane Sato.

(mexat.com)
Esse espírito de sacrifício e competitividade teria justificativas históricas seculares. Viver no Japão antes da modernização provavelmente era uma desgraça. Pela geografia maldita e alta densidade demográfica concentrada em poucas regiões, o país vivia em guerra, o banditismo era frequente. O cultivo do arroz em si já cobrava uma entrega atroz. A avidez dos líderes por impostos colhia boa parte dessa produção. Além disso, tinham que arcar com saques de samurais errantes, bandidos esfomeados, desastres naturais...ter sobrevivido à esse Japão já faz dessas pessoas guerreiras.

Mais recentemente, para se projetar ao time das potências, compensou seu atraso técnico-científico com muito trabalho. Proibido pelos Aliados vitoriosos de competir em setores tradicionais de suas economias, o Japão escolheu uma direção ainda pouco explorada e recente: A tecnologia eletrônica. A competição canina não se dava apenas contra as outras potências, se dava dentro de casa, na luta pelos melhores colégios, universidades e empregos. O homem de negócios japonês é competitivo por natureza. Gambare é a palavra de ordem. Nesse contexto, o nekketsu captou a atmosfera excitada do povo nipônico.

Na eletrônica ninguém tenta competir (imagem: theage.com.au)

Como gênero, o nekketsu se modificou com o tempo. Joe Yabuki, por exemplo, não era flor que se cheire. O cidadão foi até parar na cadeia por causa de um golpe financeiro. Os personagens, no entanto, foram se tornando cada vez mais politicamente corretos conforme a bolha econômica inflava nos anos 70/80.

Surge o nekketsu dicotômico. Goku é a personificação da ingenuidade, incapaz de fazer mal a um inseto, mas fervia o sangue na possibilidade de uma luta prazerosa. Seiya, sem todos os seus sentidos, tirava força sabe lá de onde para interferir possitivamente num conflito divino. Obviamente as exceções sempre existem e Yusuke Urameshi de Yu Yu Hakusho não perdia a chance de passar a perna em alguém, colecionando atos de indisciplina.

Hoje ainda temos o estereótipo do nekketsu nas séries shonen atuais como Naruto, mas já vemos o padrão da bunda-molice invadindo. Personagens bundões como Shinji Ikari (Evangelion), Keitaro Urashima (Love Hina) e Makoto (School Days) já trazem o sentido herbívoro para o anime/mangá.

Shinji - o enfado e a negatividade como regra (imagem: animebowl.blogspot.com)
Válido lembrar como o espírito nekketsu foi trabalhado no episódio "O recorde mundial" de Animatrix. Dirigido por Takeshi Koike, um corredor, obstinado em superar seu próprio recorde mundial, distorce o simulacro criado pela Matrix e sai da caverna platônica virtual por alguns instantes.

De forma mais ampla, saindo um pouco do cenário mangá/anime, parte da cultura japonesa, naquele período dos anos 60/70, seguiu a mesma tendência. Preocupados com a ocidentalização demasiada da cultura japonesa, muitas pessoas se voltaram para o 'passado glorioso' do antigo Japão de forma simpática. Foi nesse período que Yukio Mishima se suicidou, os filmes de samurai da Toei se popularizaram e a Patrulha Estelar recebeu o nome de Yamato. O espírito japonês não podia morrer, e seu sangue é quente!

O Joe do amanhã nunca morrerá, mas anda fazendo uma falta...(imagem: ask-john.cocolog-nifty.com)

"No saco de areia aparece e desaparece
o rosto daquele desgraçado
Tatake! Tatake! Tatake!
O sangue de uma fera ferve em mim
No entanto, algo pode acontecer amanhã!
O que será do amanhã?"
(Opening 1 de Ashita no Joe)

Haruki Murakami e o niilismo pós-industrial japonês

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"Respirando jazz, divertido, melancólico... Murakami é inteiramente um escritor do Japão moderno, nostálgico de um idealismo em extinção, atônito com a súbita riqueza "
The Washington Post


Stephen Armstrong possui uma descrição interessante para a produção literária de Haruki Murakami. Sua literatura seria semelhante à culinária japonesa: delicada, deliberadamente suave e curiosamente exótica. Se engana quem pensa se tratar de uma suavidade primaveril e idílica. O trunfo de Murakami está em cristalizar com palavras o atual espírito da juventude japonesa, empolgadamente perdido.

Muito influenciado pelo movimento estudantil nos anos 60, Murakami em seus romances flerta com o discurso crítico com relação à mercantilização da realidade japonesa ao mesmo tempo em que se opõe ao tradicionalismo das formas. Temos aqui um espírito híbrido, nascido em Kyoto no ano de 1949 que estudou artes cênicas no Departamento de Literatura da Universidade de Waseda. Haruki explodiu no Japão, onde já vendeu milhões de livros, quando Norwegian Wood foi publicado em 1987. Imediatamente após seu rápido sucesso,  fugiu de seu país natal para a Europa e posteriormente para os Estados Unidos (lecionou em Princeton), retornando apenas em 1995.

Haruki Murakami

Vencedor de prêmios como o Junichiro Tanizaki, Yomiui Literary Prize e Franz Kafka, Murakami é um dos mais importantes e influentes escritores da atualidade. Com obra traduzida em mais de 40 idiomas, suas palavras influenciaram até a grande película de Sofia Coppola, Encontros e Desencontros (Lost in Translation).

O estilo de Murakami balanceia realidade mundana com elementos de Realismo Fantástico (apenas para situar, Realismo Fantástico é uma escola literária forte na América Latina que insere elementos mágicos em cenários realistas, sem causar estranhamento nos personagens e sem a necessidade de oferecer explicações lógicas para tais elementos). Quase sempre explorando a primeira pessoa, Murakami costuma lidar com personagens jovens e perdidos, costurando o texto com elementos do universo pop, seja a música dos Bee Gees ou o garoto propaganda da Kentucky Fried Chicken (KFC). Não poderia ser diferente, pois o palco de suas histórias é um Japão mercantilizado e efêmero, regido pela cultura de massa.

Os intelectuais, adeptos dos rótulos, inserem sua obra no conceito de pós-modernidade. O pós-moderno na literatura seria a rejeição da fronteira entre estilos e níveis de arte. Não há mais divisão entre escrita de elite e texto de massa, mas sim um elemento final resultante do processamento entre ambos. O resultado seria a fragmentação das estruturas narrativas. A consequência seria a rejeição das tradições literárias puras, que além de chatas, não dariam mais conta de representar a realidade.

“Não há nada demais em escrever dessa forma, mas nada obriga a que todos os romances sejam escritos assim. Essa atitude apenas sufoca. Porém, ficção é algo vivo, que demanda ar fresco. Encontrei esse ar fresco na literatura estrangeira” (H. Murakami)
Versão cinematográfica de Norwegian Wood

Dentro dessa divisão, os japoneses o inserem no rótulo de escritor do niilismo pós-industrial japonês, uma sensação generalizada de desamparo perante metrópoles excessivamente mercantis, burocráticas e insensíveis, onde o afeto se apresenta com a escassez dos diamantes. O niilismo está presente na denúncia de anomia da sociedade japonesa. Os protagonistas de Murakami, ao contrário de seus discursos, costumam ser passivos vouyeurs de suas próprias vidas vividas a esmo (seu pensamento alinhado com Hideaki Anno).

O ponto é que a obra de Murakami aponta falhas sem ofertar possibilidades ou alternativas. Nas palavras de Wendy Nakanishi, a obra de Haruki "é caracterizada pela passividade, com sua atmosfera alternando entre uma diversão caprichosa e uma tristeza agridoce". Afinal, quem consegue propor opções para esse Japão? O   mérito de Murakami está mais em dar corpo a uma atmosfera histórica (para quem sabe ser do Japão atual o que Mishima foi do Japão imediatamente pós-guerra) que caminhos aos seus leitores.

Murakami acredita que a nação japonesa ainda é um povo em busca de identidade. Fizeram-nos acreditar que o progresso material os fariam felizes; eles chegaram lá e perceberam que não é bem assim... A crise em 1995 foi um golpe muito forte nas esperanças japonesas, e justamente nesse período as vendas de seus livros  conquistaram sensível aumento. Processo semelhante aconteceu nos EUA quando o 11/9 provou de uma vez que o Fim da História proposto pelo infeliz Francis Fukuyama era uma farsa; também lá os livros de Murakami estouraram em decorrência da crise de segurança do povo americano. Haruki enxergou o mesmo fenômeno também na Alemanha e Rússia.

Capa nacional de Minha Querida Sputnik

O legado de Murakami, ainda em construção, é universal apesar de japonês, uma vez que o cotidiano do jovem nipônico, em tempos de globalização, já não é mais tão diferente do dia-a-dia de jovens em outras sociedades pós-industriais como os EUA e o Reino Unido, ou mesmo em certos pontos dentro do Brasil ou Coréia do Sul. A tônica de sua obra é a perda de algo e seu vazio decorrente. Seja na perda de uma pessoa física, de uma ideologia, de uma época, os livros de Murakami sempre retratam jovens solitários em busca de algo para preencher um vazio que as conveniências da onipresente indústria são incapazes de suprir. Sua produção não é apenas japonesa, é atual. Dialoga com uma juventude global que, próspera, precisa de estímulos contínuos, pois se parar por um minuto que seja, desmoronam pela fraqueza dos alicerces. Agora entendo (quando li, alguns anos atrás, não havia compreendido) a abordagem crua da sexualidade em seus livros. Se não há significados ou objetivos a vista, um encontro quente com alguém pode ajudar a conquistar mais uma noite de sono tranquilo. E amanhã a gente vê o que faz...

No Japão Murakami divide opiniões. Quase unanimidade entre os jovens (alguns até decidem estudar em Waseda para viver o clima universitário narrado em Norwegian Wood), Haruki é muito criticado por um ala mais conservadora que o taxa de ocidentalizado demais, pop e até trash, preferindo os caminhos literários de Kawabata, Oe, Mishima e Tanizaki. Quando mencionei que ele fugiu do Japão por alguns anos, ele fugiu mais especificamente da elite literária do país. Ele não fugiu das tradições japonesas, mas de um círculo literário que defende a pureza restritiva da cultura. Murakami é confessor odiador dos livros de Yukio Mishima.
"Se está na plena escuridão, tudo o que pode fazer é sentar e esperar, até que seus olhos de acostumem com o escuro" Murakami

Haruki Murakami

Mesmo tendo seu nome ventilado como um provável ganhador de um prêmio Nobel, Murakami não é bem vindo no universo intelectual japonês. Entretando eu enxergo certa sinergia na visão de mundo entre Haruki e alguns dos que o criticam. Se a forma dele é pop ocidentalizada, sua visão de mundo condena justamente uma cultura que prega o poço do materialismo enquanto esquece propositalmente as atrocidades da guerra.

Suas criações são assumida e abertamente ocidentalizadas. Filho de pais literatos, cresceu lendo Pulp Fictions e escritores americanos como Scott Fitzgerald, ouvindo música ocidental (Norwegian Wood é uma música dos Beatles; Dance, Dance, Dance remete aos Beach Boys), sobretudo Jazz. Antes de começar a viver da pena, foi dono de um bar de jazz em Kokubunji (Peter Cat), o que lhe legou uma coleção com mais de 6 mil discos do estilo, influencia direta em sua escrita.

Murakami não escreve só romances. São de sua autoria também Underground (livro que tenta entender o ataque ao metrô de Tóquio pela seita Aum através do passado japonês - lançado em português só em Portugal) e Do que eu falo quando falo de corrida (lançado no Brasil pela Alfaguara). No mercado nacional, ainda pela Alfaguara temos Após o Anoitecer, Minha Querida Sputnik, Kafka a beira-mar e Norwegian Wood. Pela Estação Liberdade temos Dance, Dance, Dance e Caçando Carneiros. A Editora Objetiva lançou Norwegian Wood e Minha Querida Sputnik (já esgotados na versão da Objetiva mas ainda disponíveis pela Alfaguara). Os livros são bem caros, mas contam com tradução direta do japonês!

Haruki Murakami

Li Kafka a Beira-Mar e o famoso Norwegian Wood uns anos atrás. O primeiro trabalha com o gênero fantástico, o segundo não. Confesso que não gostei do modo como ele trabalhou os elementos mágicos, fiquei com a impressão que em certos momentos eles cumpriram a função de Deus ex machina mais do que seu sugerido papel (acostumado com o padrão Buzzati de fantasia, realmente não achei grande coisa). Kafka surpreende mais pelas pílulas de erudição que oferece durante a jornada. Norwegian Wood é um livro que prefiro reler antes de tecer comentários, principalmente agora que estou mais familiarizado com o universo do qual Murakami fala, mas sem dúvidas é um obra interessante. Conhecer a literatura de Murakami é entender um pouco mais os anseios e temores da juventude japonesa, que sempre tem algo a nos ensinar, já que eles vivem no que o Brasil tanto almeja chegar.

"Procuro uma casa com comida deliciosa, publico a matéria na revista e apresento-a a todos. Vá aqui. Experimente tal coisa. Mas qual a necessidade de se fazer isso? Não deveriam todos comer o que quisessem? Por que precisam da indicação de alguém até para achar um lugar para comer? Por que necessitam que alguém lhes ensine a escolher o menu? Sabe, as casas apresentadas nessas revistas vão decaindo no serviço e na qualidade à medida que ficam famosas. Isso acontece com oito ou nove entre dez, sabia? É porque se perde o equilíbrio entre oferta e procura. É isso que fazem as pessoas como eu. Cada vez que encontram algum lugar, vão destruindo-o com bastante esmero. Quando acham um branco puro, deixam-no todo sujo. As pessoas chamam isso de informação. A informação sofisticada nada mais é do que passar uma rede por todo o espaço do cotidiano sem deixar escapar nada. Estou cansado disso. Cansado de estar fazendo isso.” (Murakami)

Fontes:
 Ten things you need to know about Haruki Murakami (Stephen Armstrong)
Nihilism or Nonsense? (Wendy Jones Nakanishi)
Ouvindo a canção do vento - Jefferson Teixeira

Microsoft e a difícil missão de cativar o mercado de games japonês

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Obter um mau desempenho no gigantesco mercado japonês de videogames é uma situação que pode, guardando as devidas proporções, ser comparada a uma nação que pegou uma fatia pobre na partilha do continente africano durante o imperialismo do século XIX. Se não dá para angariar recheio de um bolo disputado por leões teutônicos, gauleses e saxões, talvez a melhor opção seja buscar outros mercados consumidores compatíveis com seu porte mastodôntico, o que foi feito pelos EUA (em toda a América) e Japão (no Sudeste Asiático). A analogia é agressiva, mas estou falando de negócios, e seja no tempo dos impérios, seja hoje, o comércio que guia o futuro dos gigantes.

Esse é o problema que a Microsoft, produtora do Xbox 360, enfrenta desde que aceitou o desafio de competir mundialmente com Sony e Nintendo pela liderança na venda de consoles. No ano de 2010, enquanto o Nintendo Wii e o Playstation 3 venderam no arquipélago mais de 1,5 milhões de unidades cada (com vantagem para a turma do Mario), o Xbox 360 não conseguiu obter nem a marca de 250 mil unidades vendidas. A situação se torna mais complicada quando se nota que os portáteis de Sony (PSP) e Nintendo (DS) venderam quase 3 milhões de unidades cada (novamente com vantagem da Big N) enquanto a Microsoft sequer possui um concorrente para os portáteis japoneses.

Alguns fatores são essenciais na compreensão da dificuldade que os americanos enfrentam. Primeiramente, Nintendo e Sony já estão muito bem consolidados em seus mercados nacionais, já contam com décadas de know-how e experiência com o público japonês (este, específico e distinto de qualquer outro mercado no mundo), não deixando muito espaço para a Microsoft, que ainda está aprendendo como se atua no setor e sabe que os concorrentes japoneses não se acomodarão.


Outros fatores são os próprios potenciais usuários japoneses que indicam. O Xbox 360 foi considerado no Japão como muito grande, caro e barulhento. É importante ressaltar que espaço é a coisa mais cara que existe no Japão, e eles não querem uma espaçonave barulhenta ocupando 1/3 do quarto. Além disso, o Xbox 360 é tido como um hardware para games hardcore, como Halo. Isso funciona nos mercados americano e europeu, onde o público-alvo são jogadores homens na faixa dos 25-30 anos, mas não tanto no Japão onde há muitas crianças e mulheres entre os consumidores, que preferem o conceito de diversão do Wii ou a ampla variedade do PS3 quando optam pelos jogos menos casuais. Para piorar a situação, a estratégia de comunicação da Microsoft na entrada no Japão foi péssima e desgastou a marca com o consumidor local.

Não dá para negar que eles estão tentando. Lançaram mais J-RPG's (rpg japonês, importante para fidelizar usuários nipônicos) do que seus concorrentes japoneses e trouxeram duas inovações tecnológicas no segundo semestre de 2010: A versão slim da plataforma, menor, mais leve, mais segura, mais eficiente (-17% no consumo de eletricidade) e menos barulhenta. Além do esperado Kinect, sistema de câmera que reconhece gestos e vozes, eliminando a necessidade do joystick.


Os resultados já indicam o fracasso das tentativas e certa miopia de negócios. O Kinect exige espaço para ser usado, coisa que nem japonês rico tem, logo, não atraiu o público potencial e só foi comprado por quem já era dono de um Xbox 360 (quando a ideia era alavancar as vendas do console). Segundo, os japoneses não ficam em casa na maior parte do dia, mesmo as crianças, logo, ignorar os portáteis no Japão é ignorar características do mercado. Enquanto a Microsoft acumula tropeços e monumentais esforços financeiros no mercado japonês, está deixando de alocar recursos no ainda mais importante mercado europeu, onde a Sony é muito forte, mas a Microsoft sabe o que e como fazer pela liderança. Para não citar o mercado latino americano, que segue ignorado, mas será dominado por aquela empresa que primeiro jogar seus tentáculos de modo efetivo, como fez a Sega com o Brasil na era 16 bits.

Nintendo 3DS e os riscos da inovação

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Não, esse blog não está se convertendo ao lado interativo da força, ao menos não majoritariamente, mas essa semana estou ocupado com outras tarefas e, no intuito de mantê-lo atualizado, estou subindo textos sobre games de minha autoria que foram publicados num blog acadêmico mas que são pertinentes nesse sítio. Vocês notarão que ele trata o assunto por um viés estritamente mercadológico, fazendo uso de certos jargões business, justamente o perfil do endereço para o qual ele foi originalmente concebido. Pertinência não é problema, uma vez que os games hoje só movimentam menos dinheiro que as indústrias bélica e automobilística, e o Japão, junto com os americanos, estão na vanguarda desse lucrativo setor. Acho válido desmistificar o romantismo em cima dos videogames e situar a compreensão de sua problemática na ótica do mercado, o que de fato guia os passos dessa indústria tão idealizada. O texto é uma análise pessoal (portanto inerentemente falho em alguns pontos) já publicado há alguns meses, logo, alguma coisa pode ter mudado e certos dados podem ter me fugido a lembrança. Também estava falando com um público muitas vezes leigo, o que justifica possíveis observações em cima do óbvio. Segue:

Com o ritmo vertiginoso das evoluções tecnológicas, as grandes empresas responsáveis pelas plataformas de videogame enfrentam sempre o risco da inovação. Manter-se na zona de conforto é arriscado, pois deixa o caminho aberto para a inovação de algum concorrente e consequente perda de market share (participação de mercado) e imagem com os consumidores. Fugir do padrão também é muito perigoso pelo fato da inovação trazer sempre o risco da rejeição do público, com consequente perda de imagem e milhões de dólares em P&D investidos em um produto que não vende. A Nintendo se deu bem com o Wii, modificando a forma de se jogar videogame a partir de alterações no modo de uso do joystick, consagrado desde a década de 80 pela Atari. A Sega fracassou quando lançou uma plataforma voltada aos games online em 1999, o Dreamcast. (não que esse tenha sido o único fator)

Wii, inovação de risco que deu certo (imagem: technewsshop.com.br)
A onda do momento é o 3D. A Nintendo, surpreendendo a todos, anunciou em 2010 o Nintendo 3DS, herdeiro da série DS de portáteis com a tecnologia 3D. Com um detalhe: Sem a necessidade dos óculos especiais para a geração do efeito. Para quem se interessa pelo aspecto tecnológico, aqui tem um breve explicação.

Os riscos não são pequenos. Usuários que já experimentaram o 3DS afirmam que o diferencial da tecnologia 3D, canalizador dos esforços de comunicação da Big N, é o que menos impressiona no portátil, dando maior destaque para o hardware mais avançado em relação ao antecessor, à realidade aumentada e ao Street Pass. Se o 3D não impressiona por mais de duas horas e as reais vantagens são as outras, a concorrência do Next Generation Portable (NGP) da Sony e os aplicativos dos Smartphones, sobretudo da Apple, podem reduzir a vida útil do console. (Acredite, gamer, nem todos encaram tecnologia como você)

Não dá para subestimar a nova geração de smartphones (imagem: kotaku.com)

Aliados a esses fatos, deve-se somar os problemas intrínsecos da tecnologia 3D. Muitas pessoas ficam com enjôo, fadiga ocular ou forte dor de cabeça após ter contato com ela, o que certamente afugenta consumidores potenciais que não tem a intenção de investir em um novo portátil para deixar desativado seu diferencial, podendo olhar com mais carinho para os afagos de marketing e atributos exclusivos oferecidos por Sony, Apple e outros. Médicos e a própria Nintendo recomendam que crianças menores de sete anos não deixem o 3D ativado e que qualquer usuário faça pausas após 30 minutos de uso. A situação é perigosa. Crianças são fortes consumidores da série DS - sobretudo no Japão - e parte significante deles simplesmente não podem usufruir da tecnologia que dá nome à novidade (há uma trava cifrada para os pais impedirem o uso do 3D pelas crianças). Além disso, jogadores mais maduros ou hard users não ficarão contentes com a necessidade de parar o uso para não prejudicar sua saúde, gerando a paradoxal situação da própria empresa se colocar contra a intensificação do uso do seu próprio produto - ou de seu atributo diferenciado. (para não citar o possível risco de alguém parar no hospital acusando o aparelho, gerando um buzz extremamente negativo na mídia).

Nintendogs, um dos clássicos do DS

Curiosamente, a empresa que mais tenta empurrar a tecnologia 3D garganta abaixo do mundo é a concorrente Sony, na intenção de compensar a acomodação nas vendas do PS3 com a oferta de televisores e blu-ray 3D. Como o conglomerado é dono de estúdios de cinema, vive lançando filmes em 3D também para alavancar suas vendas (E tome Homem Aranha 3D). Muitos consultores e especialistas em tecnologia afirmam que a segunda onda do 3D, como nos anos 50, não irá para a frente, pois apesar da maior sofisticação, esbarra nos mesmos problemas de antes: Sua apreciação é incômoda e cara. O futuro pode ser sim tridimensional, mas o fracasso nas vendas de televisores 3D no mercado japonês indica que ele pode não estar tão próximo quanto a indústria do entretenimento desesperadamente sugere.


A Nintendo comemora o sucesso da pré-venda com o pé bem atrás, uma vez que conhece melhor que ninguém os riscos mercadológicos do seu novo produto. Possivelmente nem eles acreditam no seu diferencial e até por isso investiram tanto em outras especificidades (estas, interessantes para um mercado tech de massa como o japonês, mas nem tanto para os outros - vide o StreetPass - uma quase nulidade diferencial para o insípido mercado brasileiro de portáteis). Mas o mundo hoje se pretende 3D, e o medo de ficar parado é maior que o medo de errar.

Comédias familiares japonesas: Slices of Life

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Sazae-san

Por razões já explicadas aqui, a tendência é que apenas animes e mangás shonen ou shojo tenham capacidade de se popularizar no Brasil. Devido a essa barreira, o público que se considera apaixonado pela animação do velho Yamato termina por ignorar completamente séries tão ou até mais populares que os big hits One Piece ou Dragon Ball. Sim, o Japão não é feito só de adolescentes que gostam de assistir pancadaria ou histórias românticas idealizadas a là Romeu e Julieta, por lá também vivem adultos, crianças e idosos, pessoas que também se divertem com a produção cultural japonesa, que há muito tempo já não pensam mais em paixões platônicas nem almejam se tornar super-heróis (ou ainda não chegaram na fase de sonhar com isso). O gênero que abraça mais estratos sociais sem dúvida é a comédia familiar.

As comédias familiares japonesas se assemelham em estrutura aos desenhos americanos como Simpsons e Family Guy (dos quais sou fã assumido, que fique claro). São infinitos enquanto durar a criatividade do criador (e dos roteiristas que o auxiliam), diferente do padrão japonês ao qual estamos acostumados, de história finita (ainda que recheada de fillers) com começo, meio e fim cronológico, muitas vezes se perdendo paulatinamente até terminar num melancólico e indigno final (Yu Yu Hakusho). Não são histórias que abordam reinos medievais nem seres almejando a conquista do universo, mas sim o cotidiano das famílias japonesas, seu dia a dia humano e orgânico. Não costumam possuir a acidez do humor americano, são mais conservadores e mesmo educativos. Talvez seja o único gênero que sobreviveu ao boom otaku da cultura japonesa, permanecendo acessível para todas as gerações e também por isso gozam das maiores audiências. Falarei brevemente sobre algumas séries históricas contidas ao menos parcialmente no gênero.

Você acha Os Simpsons imortais? Talvez por não conhecer Sazae-san
Sazae-Sané indubitavelmente o título mais expressivo desse gênero. Obra prima do formato yon-koma (tirinhas de quatro quadros, um padrão tradicional no Japão), Sazae-san, criação de Machiko Hasegawa, foi inicialmente publicado no inexpressivo jornal diário Fukunichi Shimbun em 1946, até chamar a atenção do segundo maior jornal do país, o Asahi Shimbun, que a levou para Tóquio. Sempre tratando de situações contemporâneas da metrópole japonesa, Hasegawa criou mais de dez mil capítulos de Sazae-san até seu cancelamento em 1974.

Diferente dos Simpsons ou da Turma da Mônica que permanecem décadas parados no tempo (Turma da Mônica Jovem é história paralela, o gibi com a turma aos 6 anos segue inalterado), Sazae-san evoluiu junto com o Japão. No começo ela era uma jovem com pouco mais de 20 anos e as tirinhas frequentemente tratavam dos problemas diários do pós-guerra japonês, como a ocupação americana e o racionamento de alimentos. Com o tempo ela se casa, tem filhos e se torna uma tradicional mãe dentro de um clã familiar japonês (com pais, marido, filhos e o gato Tama), acompanhando o crescente conforto material que o povo japonês conquistava durante esse período, o que se nota na aquisição de eletrodomésticos da Toshiba, patrocinadora da série animada.

Sazae-san

Sazae-san serviu como uma bandeira liberal para o ainda tradicional povo japonês, que via na mulher uma subordinada do chefe de família, uma vez que ela frequentemente se envolvia em choques matrimoniais de modo sensível e inteligente, garantindo a simpatia do público. Usada também como uma bandeira do movimento feminista japonês, no fundo, a trama retrata a dinâmica das famílias.

A série faz parte do imaginário japonês e seus personagens são reconhecidos por crianças e idosos. Exibida na TV aos domingos desde 1969, a versão animada já ultrapassou a casa dos 6400 episódios. Após mais de quatro décadas, continua sendo animado ao modo antigo (celulóide, sem computadores), mantendo as maiores médias de audiência dentre os animes e frequentemente figurando no top 10 de toda a programação televisiva. Acredite, Sazae-san deixa One Piece, Dragon Ball Kai e Detetive Conan comendo poeira (geralmente flutua entre 18% e 25% enquanto One Piece fica na faixa dos 10%). A justificativa do sucesso está no público alvo diversificado, no sentido nostálgico (a criança que cresceu lendo as tirinhas segue assistindo após adulto até como uma resistência a invasão dos clichês otaku) e pela temática simples que coincide com a opinião do japonês sobre seu núcleo familiar.

Não é só Pokémon que possui loja exclusiva

Um espectador ocidental, acostumado com Family Guy, provavelmente não vai gostar muito de Sazae-san, não apenas pelo clima pouco ácido, mas também pela barreira cultural. Muitas das piadas dialogam com os hábitos do povo nipônico, só quem viveu lá consegue decodificar. No Japão, além do exorbitante número de episódios e tirinhas produzidas, já fizeram peça de teatro, três live action e até uma loja exclusiva com produtos temáticos da série. Um clássico que não pode ser ignorado de modo algum pelos fãs do pop japonês.

Meus vizinhos, os Yamada
Um título interessante com perfil identido é Meus vizinhos, os Yamada (Tonari no Yamada-kun), inicialmente publicado no Asahi Shimbun entre 1991 e 1997, escrito por Hisaichi Ishii no mesmo formato yon-koma. Diferente de Sazae-san, que começou num Japão conturbado, as tirinhas de Ishii já fazem paródia com a atual classe média japonesa, trazendo um casal mais velho e filho crescido. Teve uma versão animada feita pela Toei Animation e exibida pela Tv Asahi no começo do século (total de 61 episódios).

Foi premiado com uma animação do consagrado estúdio Ghibli em 1999 (não nas mãos de Miyazaki, mas sim de Isao Takahata, o mesmo de Túmulo dos Vagalumes [Hotaru no Haka] e Pon Poko), a primeira animação do estúdio a trabalhar inteiramente com computação gráfica para criar a impressão da aquarela. No filme, temos a sensação de estar assistindo diversas tirinhas animadas sobre o cotidiano da família, fugindo completamente do perfil - tanto no que tange roteiro quanto estética - que consagrou o estúdio Ghibli, o que talvez justifique o retorno financeiro abaixo do esperado.

Meus vizinhos, os Yamada

Novamente, o título fica restrito ao mercado nacional por lidar com o cotidiano e o repertório cultural do povo japonês. Poucas pessoas fora do arquipélago entenderiam a história que brinca com Gekkou Kamen, (e não com Kekko Kamen, como afirmei primeiramente - créditos ao anônimo pela correção). Uma série de tiras brinca com a ideia de gengibre no café da manhã como causa de esquecimentos, um mito fora do meu repertório, logo, nada engraçado. Ainda sim a animação é de uma sensibilidade muito grande, principalmente o início que fala da vida familiar através da metáfora de um barco em alto-mar (e alertando que perigo maior são as águas calmas, que afastam as pessoas, mais do que os mares turbulentos, que as unem) ou quando uma série de tirinhas é finalizada com Haicais de poetas clássicos como Matsuo Bashõ.

Crayon Shin-chan
Saindo um pouco do politicamente correto, é inevitável citar o Stewie Griffin japonês, o garoto de 5 anos Shinnosuke Nohara, Shin-chan para seus próximos. Evidente que ele não chega no nível de Griffin, mas no  Japão é visto como um mau exemplo para as crianças. Imitador, dono de um precoce apetite pelo sexo oposto, Shin-chan vive infernizando a vida de sua família com sua imaginação sem limites. Publicado em mangá desde 1990, a criação de Yoshito Usui já está contida nas revistas semanais de mangás, e não nos jornais, no entanto, suas peripécias não costumam superar duas páginas. A característica da série que salta aos olhos é a sacudida que o personagem dá na pacata e educada sociedade japonesa.

O anime, em exibição desde 1992, é um dos mais duradouros da televisão japonesa, superando os 800 episódios. O tom da série é amenizado na animação quando comparado ao mangá. Shin-chan, diferente dos dois exemplos citados acima, contou com ampla divulgação internacional, sendo transmitido até em países como Israel e Índia. No Brasil, a série já foi televisionada pelo Animax e Fox Kids, enquanto o mangá foi porcamente publicado pela Panini, que cancelou o título sem anúncio oficial, após 10 edições (pelo menos a história não é sequenciada, como Dr. Slump ou Sanctuary que foram cancelados no meio e dane-se).

Doraemon

Para finalizar, não poderia usar outro nome que não fosse o do, segundo o governo japonês, embaixador do anime: Doraemon, a série definitiva do mangá infantil. Desenhado pela dupla Hiroshi Fujimoto e Abiko Motoo (que assinavam a obra com o pseudônimo Fujiko Fujio - os mesmo de Paaman, popularizado no Brasil como Super Dínamo) de 1969 a 1996.

Doraemon é um robô vindo do futuro (2112) para salvar o garoto Nobita Nobi de sua própria mediocridade, que condenará seu futuro e fará sua família herdar suas dívidas por gerações. Um parente futuro de Nobita envia o robô para ensinar ao garoto o caminho do esforço e garantir o destino da família, já que o menino é adepto da lei do menor esforço, acomodado com sua mediocridade. Doraemon então precisa salvar Nobita das enrascadas do dia a dia, carregando uma bolsa mágica em si da qual retira toda uma sorte de objetos. A série que traz uma variedade de lições morais não deixa de conter certa crítica social sobre as crianças japonesas, ausentes de privações na mesma proporção que mimadas pelos pais. Segundo Cristiane Sato, em seu livro Japop, o nome Nobita Nobi remete à expressão nobi-nobi, a forma 'saudável' com a qual os casais japoneses estão tratando seus filhos, sendo excessivamente permissivos na infância como indulgência prévia pelo futuro árido que enfrentarão (sem querer, preparando pessoas fracas demais para aceitar esse futuro).

Doraemon

Doraemon é um patrimônio cultural do Japão. Corresponde para o japonês o que o Mickey Mouse corresponde aos americanos. Financeiramente é talvez a mais bem sucedida franquia dos animes dentro do país. A marca Doraemon é compartilhada por mais de uma centena de empresas que o estampa para vender absolutamente de tudo, como caneca, controle remoto, cubo mágico, caneta, almofada, chinelo, escova de dentes, capa de celular, tapete de banheiro e ad infinitum.

Fontes:
O grande livro dos mangás - Alfons Moliné
Japop - Cristiane Sato

Hachiko: Deturpação de um símbolo nacional pela propaganda política

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Nos últimos dias me deparei com vários comentários sobre uma adaptação cinematográfica americana de uma história japonesa, o romance Sempre ao Seu Lado estrelado pelo chatíssimo Richard Gere, que está servindo de argumento para a nova e perigosa onda jovem de glorificar o mundo animal enquanto demonizam a humanidade. É um sinal de que a sociedade está mais preocupada com o bem estar deles, pena que ao custo da desconfiança entre nossos pares hominídeos. Não estou aqui, no entanto, para discutir vida animal, e sim a história de um em específico: o cachorro Hachiko, a manipulação de sua história pelo Império Japonês e a descontextualização atual de sua vida pelas novas gerações.

Hachiko foi um puro cão japonês da raça Akita nascido em 1923 e levado para a capital pelo professor da Universidade de Tóquio Ueno Eizaburo. O professor morava no subúrbio de Shibuya e se locomovia de trem rumo ao trabalho. O que espantava os demais usuários do trem era a companhia do cão Hachiko, que seguia seu dono até a estação, onde se despediam, voltando juntos para casa após o laborioso dia do professor Ueno. A notável rotina se repetiu por cerca de um ano e meio, até o dia 21 de maio de 1925, quando o professor sofreu um AVC que o levou ao óbito na Universidade. A tragédia deu início ao segundo e ainda mais impressionante capítulo na vida de Hachiko.

Estátua de Hachiko na estação Shibuya em Tóquio, atual ponto de encontro dos jovens
Estranhando a ausência do seu dono, Hachiko continuou esperando na frente da estação até a madrugada daquele dia, quando provavelmente a fome o venceu e ele voltou para casa sozinho. No dia seguinte o cachorro voltou para a estação e o esperou inutilmente por horas. Parentes e o jardineiro do professor tentaram manter a guarda do cão, mas ele sempre fugia para sua antiga casa que não mais os pertenciam, mantendo o hábito da peregrinação ao trem todos os dias na esperança de tornar a ver o professor Ueno. Inconsolavelmente, Hachiko fez o mesmo percurso religiosamente todos os dias por quase uma década após a morte de seu dono!

O cão sensibilizou pessoas que, habituadas a vê-lo sempre na companhia do dono, estranharam seu abandono e passaram a alimentá-lo na rua, a nova moradia de Hachiko. os mau tratos de se viver na rua, a briga com outros animais, e as doenças foram degenerando o puro sangue de modo progressivo (na época, só existiam 30 Akita japoneses puros no mundo, e ele era um deles), até sua morte aos 11 anos em março de 1935.

Mas por que uma história pessoal ganhou tamanha notoriedade no Japão? Um dos estudantes de Ueno (que pertencia ao Departamento Agrícola da Universidade) pesquisava a raça Akita, tomou conhecimento da história e a enviou para o Asahi Shimbun, um dos jornais mais populares do Japão. Com a publicação do caso, o público se emocionou com a história de fidelidade entre cão e homem, mas a história também chegou aos olhos dos militares do Império Japonês que acharam, com seus objetivos escusos, um garoto propaganda ideal para a doutrinação da população aos seus moldes.


Para entender o efeito dos atos de Hachiko no inconsciente coletivo japonês é primordial saber o que eles pensam da raça Akita, mas também o que pensavam de si mesmos naquela época. As crianças aprendiam nas escolas que o povo japonês era descendente direto da deusa do Sol, Amaterasu. Dessa infomação se infere dois fatos: O povo japonês se considerava único em todo o mundo, diferente de todos os outros povos e etnias, mais que isso, pela sua origem divina, todos eram iguais entre si e superiores aos demais (afinal, descendem diretamente de uma linhagem divina). Em tempos de Império, nada melhor para se divulgar que a soberania do Imperador (o 'parente' mais próximo da Deusa) bem como a superioridade étnica japonesa, justificativa para qualquer atrocidade que eles cometessem Ásia afora contra os inferiores e os bárbaros. A Antropologia, História, Pré-História, Arqueologia, Linguística e Biologia estão desmoronando essa visão de homogeneidade étnica desde o final da Segunda Guerra (estudos que evidenciavam a origem nada pura do povo japonês já existiam nos tempos do Império, mas eram sufocados).

A raça Akita seria o correspondente canino do povo japonês, a raça pura dentre os animais. Durante a Era Meiji (1868-1912), houve uma inundação da cultura ocidental no arquipélago, importando uma infinidade de raças produzidas na Inglaterra principalmente, que se reproduziram entre si, gerando muitas proles mistas. A moda no meio intelectual japonês, apologistas do Grande Império, era visitar zonas rurais japonesas em busca de cachorros 'puros', japoneses e não miscigenados, o Akita. Mas muita gente utilizou o Akita para criar novas raças a partir de cruzamentos, o que quase extinguiu o cão de sua forma pura. (ele não é puro, apenas menos misturado que os outros cães que existiam no Japão, daí a visão da época)

A raça foi tombada pelo governo japonês como patrimônio natural do país em 1931 devido a sua escassez, proibindo assim a exportação desses cães. A uniforme raça japonesa canina ao uniforme povo japonês!


Dá para imaginar como os olhos dos engenheiros do consentimento, trabalhadores da propaganda japonesa, brilharam ao saber dos feitos de um dos últimos Akita puro em Tóquio. Goebbels deve ter ficado orgulhoso caso tenha tomado conhecimento do fato. O dito cão japonês deu uma demonstração pública e duradoura de fidelidade, sacrifício íntimo por lealdade ao próximo, uma aula para a sociedade japonesa. Se o cão japonês age assim, não espere menos do homem nem faça menos do que o cão!

Acho que você consegue deduzir como os apologistas do expansionismo militar distorceram os relatos de Hachiko nas escolas, as "lições" que ele legou, no intuito de forjar o espírito dos jovens japoneses no sentido de seus interesses imperialistas. Fizeram o mesmo ao fazê-los acreditar que o povo japonês é herdeiro da ética e espírito dos samurais (um absurdo popular no Ocidente até hoje), mas disso falarei num post específico sobre eles.

É de se espantar que esses jovens tenham se sacrificado, de modo previamente planejado, desesperadamente atacando a frota marítima americana com seus próprios aviões em nome do Imperador? Impressiona a resistência das tropas japonesas em Iwo Jima, que os americanos acreditavam tomar em 2 ou 3 dias mas levaram quase um mês para conquistar? (ao custo de quase todos os quase 20 mil soldados que resistiram até a morte e não se renderam à evidente superioridade bélica americana naquele momento).

Hachiko, diminutivo de Hachi

A primeira estátua de Hachiko, feita de bronze, foi derretida como todas as outras para servir ao exército na guerra, mas outra foi feita pelo filho do primeiro artesão em 1948 e sobrevive até hoje, apesar de Hachiko ter sido jogado pra escanteio pelos americanos durante a ocupação pós-guerra por ser um ícone de tempos que deveriam ser esquecidos e símbolo de questionáveis valores propostos para as gerações passadas.

Hoje já vemos um reprocessamento no entendimento da história de Hachiko. Ao transportar a história para os EUA e fazer da raça uma quase casualidade, a versão americana subtrai muita substância da história e vira apenas uma apologia ao mundo animal que vemos nos últimos tempos. A força de Hachiko entre os japoneses que se emocionaram ao ler sua história nos jornais estava nos valores da época, no modo como o japonês enxerga o clã familiar e o significado da raça Akita para o período, além dos fatos em si. Não dá para culpá-los pela re-significação da história, apenas estão querendo ganhar dinheiro com outro público, em outros países e em outro momento histórico, mas não pude deixar de me incomodar ao ver a Star and Stripes ao fundo do relacionamento entre o cão e seu dono numa foto. Sim, parece que há notas explicativas da raça, mas nada de muito profundo. E claro, entender é diferente de sentir e pertencer.

Hachiko, Akita e...New York Yankees?!? Tá bom então...

Provavelmente não vou assistir essa versão americana, mas não por ser um pedante maldito, e sim porque odeio filmes do Richard Gere. Se estiver passando e eu não tiver nada melhor para fazer, talvez eu assista, mas muito menos preocupado em criticar o deslocamento cultural da história (não é porque eu gosto do Japão que o mundo tem que gostar e procurar entender) do que entender que tipo de história está servindo de argumento para a pueril visão que estamos criando dos animais e dos seres humanos, nessa onda de vegetarianismo e proteção animal. Ok, eu também amo animais e inclusive tenho cachorro, mas fico assustado ao ler as opiniões públicas das pessoas que assistiram ao filme. Vejam o relato do Jesus Pires Monteirio:

"esse filme realmente faz a gente chorar e cocientizar todos nos q os animais amam muito mais q os seres humanos,seres humanos sao eles,nos é q somos os bichos mais cruéis q exintem,se tivessemos 10% q esse hachi,estariamos com certeza num mundo muito melhor,as vezes tenho vergonha de ser chamado de humano."

Será que ele imagina repudiar sua espécie fazendo uso anacrônico de uma história perpetuada pela propaganda de guerra nos tempos onde ainda se falava em superioridade de raça? Uma pena o pobre Hachiko, inalienavelmente triste em vida, usado para a máquina da guerra que dizimou milhões de asiáticos, hoje estar a serviço da inocência juvenil através de nova remodulação de uma fôrma já distorcida pelos estadistas japoneses. Por favor, Deixem-no descansar em paz!

A história da indústria japonesa dos games

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Hoje a indústria dos games movimenta mais dinheiro do que a soma das indústrias cinematográfica e fonográfica, mais do que o dobro de Hollywood e figura com a espantosa medalha de bronze no pódio dos setores mais lucrativos do comércio, perdendo apenas para as onipresentes indústrias bélica e automobilística. O que antes era uma brincadeira de criança se tornou o rumo do entretenimento mundial, um norte para as próximas décadas, seja nos consoles, seja através da portabilidade dos celulares. Conhecer os caminhos que transformaram o brinquedo em negócio de gente grande é passar pela História de duas nações, EUA e Japão. Pretendo dar foco nos asiáticos, mas será inevitável navegar pelos dois lados do Pacífico, pois foram eles, os americanos, que inventaram o videogame como tecnologia, como business, além de abrigar o mais importante mercado consumidor no mundo, o que os tornam decisivos para as empresas japonesas. Gostaria de deixar claro que será inevitável cometer injustiças históricas, ignorando ou passando por cima de títulos e consoles importantes, afinal, apresentarei apenas um recorte da História no formato blog. Não estou escrevendo um livro nem TCC, portanto, escolherei os exemplos mais adequados para o recorte que optei, e não venham com clubismos idiotas, cada empresa teve seu papel no desenvolvimento desse monstro.

Ahh, o texto é grande. Se você é geração Y e tem dificuldades em manter a concentração por mais de um tweet, salve nos Favoritos e leia aos poucos. (Isso não foi uma provocação hahaha)

Guerra Fria
O videogame, como muitas outras tecnologias, é um substrato lúdico de algo muito menos pueril do que comumente imaginamos, a tecnologia militar. A simulação virtual nasceu nos laboratórios do exército americano ainda na Segunda Guerra Mundial como um meio de calcular a balística dos mísseis, mas ganhou importância crucial na Guerra Fria pela problemática das armas nucleares e da corrida espacial. Os caros computadores do exército, usados para desenvolvimento de tecnologia bélica, passaram a ser usados por seus engenheiros de modo lúdico nos momentos de folga, período utilizado para programar e se divertir com pequenos jogos como uma partida de tênis rudimentar. Como no caso do computador, definir o inventor do videogame é uma tarefa ingrata que gera controvérsias, mas alguns nomes merecem destaque como o do alemão Ralph Baer e dos americanos William Higinbotham e Steve Russell. Não há dúvidas, no entanto, sobre quem inventou a indústria do videogame, quem transformou essa brincadeira de engenheiros em algo a ser popularizado e monetarizado: Nolan Bushnell, criador da Atari.

Tennis for Two utilizando o osciloscópio como display
No Japão o terreno para essa indústria foi semeado imediatamente pelos desdobramentos da Segunda Guerra. Impedido pelas potências vencedoras de competir em setores tradicionais de suas economias, o Japão se aproveitou de seu eficiente sistema educacional, que alimentou uma população já bastante instruída, para competir em um novo setor que ninguém ainda conhecia ao certo seu potencial: a eletrônica. Se apropriando de conceitos científicos e tecnologia ocidental (como o transistor e a fabricação de circuitos integrados), os japoneses aperfeiçoaram a cadeia produtiva e passaram a fabricar dispositivos eletrônicos melhores e mais baratos, garantindo uma soberania que resiste até hoje. Pode notar, seu celular é Made in China, mas o chip minúsculo que ele carrega é Made in Japan.

Space Invaders

Após uma breve enunciação tecnológica, não posso deixar de introduzir o primeiro tsunami que o Japão causou na indústria dos videogames, trata-se do clássico de arcade Space Invaders desenhando por Tomohiro Nishikado e lançado em 1978. Influenciado por títulos de ficção da época como Star Wars e pelo contexto militarista da época, Tomohiro criou um game em que seu único objetivo é deter as ondas de invasões alienígenas com tiros para acumular o maior número possível de pontos.

O jogo hoje é interpretado como uma metáfora da Guerra Fria e cristalização do temor do aniquilamento humano por um possível holocausto nuclear. Além da evidente temática espacial, um fator determinante nesse visão é a impossibilidade de vencer o game. Claro que também devido às limitações tecnológicas da época, inconscientemente ou não, Space Invaders é um jogo onde não há vitória. Por mais habilidoso que seja o jogador, cedo ou tarde o game acaba levando ao fim todos os seus jogadores. Os aliens representam uma força que não pode ser derrotada quando resolvem atacar, uma visão um tanto quanto distópica e pertinente para a época onde o apertar de um botão, decidido pela deliberação de meia dúzia de líderes, poderia colocar fim na existência.

Guerra do Vietnã
O impacto de Space Invaders no inconsciente coletivo do mundo se deu por oferecer aos jogadores a sensação de controle sobre o destino do planeta, sobre questões complexas das quais o cidadão comum não tinha direito de opinar. O medo do botão vermelho como um cavaleiro do apocalipse foi substituído através dos arcades pelo efeito calmante do botão como um mecanismo de controle. A televisão fazia o papel de uma mídia passiva que apenas mostrava o horror da Guerra no Vietnã e as crises diplomáticas entre EUA e URSS sem que o homem comum pudesse interferir na realidade amedrontadora. Se não posso mudar os atos de Nixon e Brejnev, ao menos os games me oferecem uma postura ativa nessas questões através de uma roupagem menos assustadora. A destruição no game é apenas simbólica, ela excita os medos mas não causa danos reais. No Japão, país que serviu de base para o Exército americano atacar o Vietnã e posto capitalista mais próximo do território soviético, logo, um alvo óbvio em caso de confronto armado direto, essas questões ganham uma dimensão considerável.

Algumas pessoas do meio também enxergam Space Invaders como um resíduo da guerra mundial, onde os invasores (bitmap de seres marítimos pela impossibilidade tecnológica de desenhar aviões) oferecendo constante ameaça aérea remeteria aos tempos onde os americanos castigaram o Japão com suas bombas incendiárias (planejadas para queimar as casas de madeira da época), reduzindo a atividade industrial do país à estaca zero. Teorias a parte, Space Invaders conquistou os jovens japoneses da época que, por determinações geográficas, precisavam sair de casa para se divertir, gerando um imenso público para as máquinas de arcade. O jogo fez tanto sucesso que segundo o documentário "A era dos videogames", o Japão sofreu uma escassez de moedas de 100 ienes e surtos de roubos para alimentar as máquinas.

Pac-man

Outra produção japonesa para arcades que merece destaque é Pac-man. Criado por Tohru Iwatani para a Namco em 1980, o game tem como referência o universo pop japonês no período de bolha econômica, intensa prosperidade e alto poder de compra da juventude. Influenciado pelos animes e mangás enquanto permeado pela atmosfera kawaii do Japão, Iwatani produziu Pac-man por enxergar um nicho do mercado japonês ainda não explorado. Os arcades da época tinham um foco muito grande em destruição e violência para um público majoritariamente masculino e jovem.



Pac-man foi uma tentativa bem sucedida de atingir o público feminino e os casais de idade um pouco mais avançada (situação que se perpetua até hoje no Japão, a manutenção de uma base de jogadoras maior que no Ocidente). Para tal, Tohru criou Pac-man com estética infantil baseada numa pizza da qual foi retirada uma fatia. Segundo o criador, a ideia surgiu em um almoço numa época onde ele ainda não tinha noção do que criar, resolveu pedir uma pizza, pegou um pedaço e, voilà. Lá estava uma das principais inovações que os japoneses trouxeram para a indústria do videogame: O protagonista, alguém para transmitir empatia ao público, sensibilizar crianças e mulheres via identificação naquele mercado soterrado de coisas fofinhas. Estava dado o primeiro passo para a maturação desse segmento do entretenimento. Pac-man foi a primeira experiência trans-midiática proporcionada por um jogo; dele se derivou novos personagens, jogo de tabuleiro, camisetas e desenho animado.

Atari
Em escala global, Magnavox e Atari na década de 70 reduziram a diversão dos jogos aos consoles permitindo aos gamers a possibilidade de jogar dentro de casa através da televisão. Apesar dos preços elevados, os consoles caseiros se popularizam de modo surpreendente, situação que atraiu inúmeros competidores para o setor do videogame. Acreditava-se na época que bastava lançar um jogo no mercado, independente da qualidade, para garantir o devido retorno financeiro. Tanta porcaria foi produzida, o público ficou tão confuso com a variedade de opções, que o ano de 1984 foi sabático para o mercado americano de videogames. Sofrendo com a crise criativa e com a competição dos PCs (que custavam apenas um pouco mais do que um videogame, mas ofereciam múltiplas tarefas), os especialistas em tecnologia decretaram o final da moda dos videogames. O jogo que simboliza essa fase é ET, versão da Atari do sucesso cinematográfico de Steven Spielberg responsável por jogar a última pá de terra na confiança dos gamers, cansados de chafurdar na m#rd@ para encontrar algo que valia a pena. Confira:



Os jogos da época ainda eram rudimentares, meras distrações infantis quando comparados aos demais segmentos da indústria do entretenimento como o cinema, a televisão, a literatura ou os quadrinhos. A salvação veio do leste asiático. Concomitantemente com esse processo, a Nintendo do Japão, que nasceu fabricando diversos brinquedos de plástico e coisas do gênero, resolveu apostar nos videogames e lançou em 1983 o Famicom (Family Computer), console de 8bits com foco nas crianças, posicionado mercadologicamente com um brinquedo, para tentar dar sequência no sucesso dos seus jogos produzidos para arcade. Felizmente, a fabricante de Kyoto não entrou oferecendo mais do mesmo e trouxe uma série de inovações para um setor do entretenimento que já tinha missa do sétimo dia marcada.

Famicom


A Nintendo trouxe inovações que serviram de guia para a indústria no sentido da gestão do negócio, como por exemplo permitir que empresas parceiras desenvolvessem jogos para a plataforma, uma ferramenta óbvia de disseminação tecnológica mundo afora, postura bastante diferente da Magnavox que só permitiu a compatibilidade do seu primeiro console com televisões da própria empresa, numa tentativa falha de alavancar as vendas dos tubos, o que obviamente podou seu público potencial. No mercado ocidental a Nintendo mudou o posicionamento do produto e, ao invés de vender um brinquedo de coesão familiar, alterou seu nome e design (respondendo agora por NES) e não o distribuiu como um artefato infantil, mas sim como um sistema computacional de última geração.

A contribuição da Nintendo para os videogames não se limita a fatores tecnológicos ou administrativos, aliás, sua grande herança para o setor foi o desenvolvimento das narrativas de histórias, situação que abriu as portas para a evolução do videogame dentro do leque de diversões possíveis. Antes o processo de produção dos videogames era habilidade exclusiva dos engenheiros, que faziam o possível dentro das limitadas possibilidades técnicas. Shigeru Miyamoto, designer, trouxe o tato do artista para a criação dos jogos agora que a plataforma 8bits possibilitava um olhar mais estético dentro do processo de construção.

Donkey Kong

É de Shigeru Miyamoto a concepção do personagem mais popular da história dos games, o encanador narigudo Mario, que fez sua primeira aparição ainda sob o nome Jumpman no jogo Donkey Kong de 1982. Criado com bigodes pela incapacidade de desenhar uma boca com a tecnologia da época, narigudo para se tornar reconhecível, e vermelho para se destacar, Mario ganhou notório destaque em suas franquias próprias. Super Mario Bros de 1985 é o grande clássico e responsável pelo sucesso do Famicom, tendo vendido mais de 40 milhões de unidades (o game vinha junto com a plataforma). Primeiro jogo expressivo de rolagem vertical (no qual o personagem sempre começa na esquerda avançando pela direita até algum final), Mario Bros conquistou o público com sua narrativa, trilha sonora cativante e oferecimento de um objetivo real, trazendo um sopro de vida para o videogame doméstico como conceito.

A Sega lançou em 1986 sua plataforma da terceira geração, o Master System de 8bits para competir com o Famicom, que detinha a quase totalidade da participação de mercado. Apesar de vender mais de 10 milhões de unidades mundo afora (sobretudo no Brasil), o Master System é um console eclipsado pelo sucesso da Nintendo.

The Legend of Zelda

Inspirado pelas paisagens naturais de Kyoto, o mundo idílico da infância de Miyamoto serviu como base para o segundo grande carro-chefe da Nintendo, The Legend of Zelda de 1986. Esse jogo foi revolucionário por trazer uma inovação que mudou a dinâmica das narrativas. Enquanto em Mario o personagem que o jogador manipula é o mesmo do início ao fim, com as mesmas habilidades e deficiências, apenas reagindo às dificuldades cada vez maiores impostas pelo ambiente (cobrando do jogador uma progressiva experiência para o avanço), em Zelda o personagem inicia sua jornada épica com atributos medíocres, evoluindo conforme o player avança no jogo através da apropriação de itens, por exemplo, sistema base para a formação dos RPG's virtuais. Zelda foi o primeiro jogo a trazer uma bateria interna no cartucho para o jogador salvar seu progresso no reino de Hyrule, repleto de cavernas baseadas nos passeios de Miyamoto pela natureza japonesa. O nome Zelda é uma referência à mulher do escritor americano Francis Scott Fitzgerald.

The Legend of Zelda

Zelda alcançou um sucesso muito grande principalmente no ocidente por questões macroambientais. As concepções econômicas adotadas por Ronald Reagan nos Estados Unidos e pela "Dama de Ferro" Margareth Thatcher no Reino Unido, como corte de impostos, desregulamentação do mercado financeiro e privatização de empresas estatais, permitiu um amplo poder de compra para a classe média desse lado do globo, o que estourou numa onda de consumismo na segunda metade dos anos 80, situação que viabilizou a venda de videogames em massa. Se Super Mario Bros vinha com o Nes, Zelda foi o principal título vendido de modo avulso, o primeiro a entrar na casa dos milhões no mercado americano.

Concordo com o que você pensou, se a situação econômica está favorável, o cenário é positivo para todos os títulos, então, por que Zelda, jogo que graficamente não era dos melhores? Além da inovação na jogabilidade, Stuart Moulder acredita que essa novidade de progresso pessoal apresentado no jogo dialogou fortemente com a juventude oitentista. Nessa fase o período da contracultura já havia morrido, caíram por terra as ilusões de alteração no sistema vigente, que aliás, se retroalimentou dessas pessoas. Com o incentivo ao consumo, aumento no padrão de vida geral e com jovens fazendo fortunas do dia para a noite ao manipular abstrações matemáticas na bolsa de valores, o individualismo guiava as pessoas (assistam Wall Street de Oliver Stone). Crianças e jovens que viviam ouvindo dos seus pais que apenas através de muito estudo e esforço seriam alguém no futuro, se identificaram bastante com um personagem que evidencia essa evolução através de uma repaginação infantil e épica desse conceito de poder conquistado e virilidade, algo muito mais divertido que os livros de álgebra.

Alex Kidd
Para não cometer uma injustiça histórica, citarei o primeiro ícone da Sega (empresa americana com braço japonês), Alex Kidd in Miracle World. Criado por Kotaro Hayashida para competir com Super Mario Bros, não teve a chance de lutar por um posto mais expressivo pela baixa penetração da plataforma Master System nos mercados mundiais, no entanto, no mercado brasileiro a Sega tinha uma boa participação pela parceria com a Tec Toy (numa época de tentativa de protecionismo da indústria nacional de eletrônicos) e o personagem é muito popular na terra do samba. Shinobi é outro título significativo desse mesmo período.

Filme: Kids de Larry Clark, um recorte dos anos 90 nos EUA
Uma nova geração ganhou seu espaço nos anos 90 smelling like teen spirit, a geração X, a geração desencantada, que não tinha ideais nem utopias, jovens incrédulos ao descobrir pessoas que fumavam maconha e praticavam o amor livre nas universidades dos anos 60, acumulando dinheiro e vazio no 'aburguesado' anos 80. Uma geração que transpirava rebeldia ao som de Nirvana e Pearl Jam, mas que no Japão tomou um rumo um pouco diferente. Abalados pelo estouro da bolha econômica (que sustentou o vertiginoso crescimento japonês nas décadas de 70 e 80) no início dos anos 90, esses jovens japoneses assistiram a ruína completa do projeto de vida dos seus antepassados, drenados por um pântano de estagnação econômica e decadência cultural. Filhos da dita modernidade líquida (conceito do sociólogo polonês Zygmunt Bauman) que impôs valores como o nomadismo e a aceleração como formas de superar a besta do desemprego, o que rege a geração X é a velocidade (enquanto alguns defendem que a depressão seria seu principal substrato oculto). Pesquisadores jovens do Japão, à sombra da hierarquia dos mais velhos, foram incentivados a buscar seu espaço em terras estrangeiras, como o mundo acadêmico e científico dos EUA. Empregados estagnados foram incentivados a mudar de emprego, quebrando uma lógica milenar de pertencimento familiar com sua empresa.

Sonic

A geração que jogou Mario enquanto criança cresceu, e não estava mais tão disposta a se divertir com um personagem cheio de amores para dar num jogo de dinâmica lenta, isso soava um pouco infantil e enfadonho para parte desses adolescentes. A oportunidade foi abraçada pela Sega, que havia lançado o Mega Drive no Japão em 1988, a primeira plataforma da quarta geração com seus 16 bits. Através do blast processing, com Sonic the Hedgehog, um porco espinho azul, velocista e mal-encarado, os japoneses conseguiram tocar com dinâmica e agilidade, o espírito nômade e permanentemente incomodado de jovens que ouviam Nirvana. O Mega Drive dominou Europa e Brasil e quebrou o monopólio da Big N na América do Norte enquanto disputou sozinho com um 16bits. Não tinha apenas um hardware mais avançado, mas também trabalhou com franquias de muito sucesso como Aladdin, NBA Jam, Mortal Kombat, Street Fighter, clássicos de arcade da Sega (Shinobi, Altered Beast) e títulos que levavam nomes de pessoas famosas, como Michael Jackson's Moonwalker ou Evander Holyfield's Real Deal Boxing.

Super Mario World

A Nintendo não ficou parada e lançou em 1990 sua plataforma da quarta geração, o Super Nintendo Entertainment System (Super Nes ou SNES), console que superou o Mega Drive e consolidou as maiores vendas dessa geração. Na verdade a Sega era líder na maioria dos mercados importantes, mas geralmente acompanhada de perto pela Nintendo (algo entre 55% ou 60% de market share), mas no Japão o Super Famicom dava um banho no Mega Drive, e na época o mercado japonês ainda era divisor de águas. A Nintendo contou com seu mercado nacional para a manutenção da liderança. Além disso, a Sega descontinuou a produção do Mega Drive em 1995 no mercado japonês devido ao lançamento do Sega Saturn em 1994, enquanto a Nintendo só fez o mesmo em 2003, não esquecendo o fato do sucessor Nintendo 64 ter sido lançado quase dois anos após a aparição do Saturn nos mercados. Se a Sega entrou sozinha nos 16bits, a Nintendo se manteve sozinha por muito tempo no final da geração.

Talvez junto com o Mega Drive, o SNES é o videogame que mais desperta nostalgia, tanto pela longa vida útil quanto pela quantidade de bons jogos desenvolvidos para ambos. No caso da Nintendo destacam-se os sucessos: Mario (Super Mario World, Super Mario Kart), Donkey Kong Country, Final Fantasy (IV, V e VI), Zelda (A link to the past), Mega Man X, Kirby etc.

Driver
As pessoas que cresceram jogando Pong ou Space Invaders, e ainda continuavam interessados pelo videogame como conceito, não se divertiam tanto com as propostas ainda infantilizadas de Sega e Nintendo. É claro, muitos jogavam Mortal Kombat, Comix Zone  ou títulos do gênero (principalmente se tivessem filhos em casa, pois ambos usavam o mesmo console para jogos diferentes), mas outros tantos não se sentiam atraídos pelo que a indústria dos videogames estava produzindo. Costumavam se divertir com os jogos produzidos para computador, geralmente produções adultas que contavam com anti-heróis, erotismo e/ou violência. Foi a época dos jogos da cartas (e as inúmeras versões de Strip Poker), dos jogos da Sierra (Leisure Suit Larry) e a gênese dos tiros em primeira pessoa (Wolfenstein 3D, Doom, Duke Nukem).

Quem trouxe essas pessoas de volta para o universo dos consoles foi a Sony com seu Playstation. A entrada do conglomerado japonês nesse setor se deu através de uma antiga parceria com a Nintendo, que se uniram para aliar a tecnologia do CD-ROM com o Super Nintendo. Divergências contratuais quebraram o trato mas a Sony continuou com o  projeto em mãos e resolveu lançar sua própria plataforma no mercado japonês ainda no final de 1994. A quinta geração não foi iniciada pelo Playstation, mas ele é seu nome mais expressivo. Atari Jaguar e Sega Saturn foram outros de expressão.

Através da exploração da tridimensionalidade (não os pseudo-3D ou porco-3D de antes) esses videogames, sob o norte da Sony, modificaram a forma de jogar. A parte gráfica abandonou o perfil mais infantilizado e cartoon para abraçar a realidade virtual. A introdução do Memory Card permitia o desenvolvimento de jogos mais longos e complexos, a mídia em CD permitia trilha sonora profissional e imagens realmente deslumbrantes para a época. Dando espaço para jogos de esportes, RPG's e alguns jogos moralmente questionáveis, o Playstation conseguiu a façanha de reunir muitos públicos diferentes, garantindo sua fidelização. Driver ou Resident Evil agradavam aos adultos, enquanto um Tony Hawk's Pro Skater e Twisted Metal faziam as cabeças dos adolescentes, Yu-gi-Oh! e Harry Potter era adequado para públicos infantis. Com um adendo: O jogo deixou de ser casual, um divertimento descompromissado que pode ser finalizado em algumas horas de um sábado; agora eles duram dias, contam histórias sólidas e realmente mexem com o emocional dos jogadores. A principal contribuição do Playstation foi introduzir a interação hardcore como um posicionamento do produto. Algumas outras franquias de destaque para esse console foram: Final Fantasy, Silent Hill, Syphon Filter, Tomb Raider, Metal Gear Solid, Winning Eleven, Chrono Cross e outros. Convenhamos, não são títulos muito casuais.

Nintendo 64

Na concorrência da quinta geração, a Nintendo entrou com sua versão 64bits, mas com uma diferença para os demais: Ainda usando cartuchos, e não as mídias óticas como os concorrentes. A Big N alegava que o cartucho possuía a vantagem do carregamento imediato do jogo, ao contrário do CD, além de segurança contra pirataria, mas muitos os acusaram de manter os cartuchos para sustentar uma margem maior de receita, uma vez que cartucho é mais caro que CD. Foi justamente o custo menor de produção do CD que permitiu a liderança da Sony nessa geração, pois era mais interessante para os parceiros desenvolver jogos em CD (A Nintendo perdeu o apoio da Squaresoft para a Sony), então o Playstation contava com uma variedade maior de títulos. Talvez a Nintendo tenha favorecido o cartucho para manter o lucro tanto com console quanto com jogo (posição histórica deles), afinal, o grosso dos lucros vêm via licenciamento e royalties (não com venda de console), e temia-se a substituição do padrão. A aposta da Sony foi mais feliz pois as mídias óticas se consolidaram e os lucros foram bilionários.

Ainda sim o Nintendo 64 foi um videogame com um hardware bem complexo e bem sucedido tendo vendido mais de 30 milhões de unidades (contra um Playstation que superou a casa dos 100 milhões). Com relação aos principais jogos, além das novas versões dos seus personagens de sempre (Super Mario 64, Mario Kart 64, The Legend of Zelda: Ocarina of Time, Donkey Kong 64), eles contavam com Pokémon, a franquia febre do momento (Pokémon Stadium, Snap). Também fizeram sucesso com alguns jogos desenvolvidos por parceiros como Gondeneye 007.

Enquanto a Sony posicionou o Playstation como uma tecnologia superior para um público maduro e/ou hardcore, a Nintendo manteve um perfil mais próximo do conceito de diversão, situação semelhante ao que vemos atualmente na luta entre si e contra a Microsoft.

Game Boy

A década de 90 não foi apenas problemas para a Nintendo contra Sega e Sony, pois ela disputou em duas frentes. O Game Boy é um console portátil produzido pela Nintendo desde 1989 - responsável pelo sucesso do soviético Tetris no Japão - que foi reformulado em 1996 sob o nome de Game Boy Pocket. O grande trunfo desse portátil foi o título Pokémon, que ajudou as demais versões de Game Boy (como a Color) a alcançar vendas superiores a 115 milhões de unidades mundo afora. Ao contrário do que se pensa, Tetris é o jogo mais vendido do portátil, e não a criação de Satoshi Tajiri (não vale somar todas as versões de Pokémon, que é a franquia mais bem sucedida). Não foi a Nintendo que inventou o conceito de videogame portátil, mas sem dúvidas foram eles que popularizaram e definiram as diretrizes do modelo de negócios.

No Japão o portátil manifesta um papel central na vida dos gamers. O sistema educacional japonês (que mantém as crianças e adolescentes fora de casa na maior parte do tempo), a grande concentração demográfica que obriga os japoneses a morar em casas minúsculas (portátil permite que as crianças se divirtam mesmo quando os pais estão assistindo TV na sala) e o uso maciço de transporte público são condições ambientais que tornam o portátil um amigo do usuário japonês. Tanto que as vendas do Game Boy no Japão não são muito menores quando comparadas com todo o continente americano (32 x 44 milhões), principalmente quando colocamos isso em perspectiva com outros consoles, onde apenas o mercado norte-americano corresponde ao mercado japonês multiplicado algumas vezes.

Dreamcast

Pincelando ainda a década de 90, é possível destacar o Sega Saturn, lançado algumas semanas antes do Playstation, como um videogame sério, não as peneiras para esconder o Sol que foram o Sega CD e 32X. Teve um resultado inicial positivo, principalmente no mercado japonês, mas sucumbiu diante dos sucessos de PS1 e N64, não conseguindo a consolidação nem no mercado europeu, onde historicamente foi superior aos japoneses de Kyoto. Sua plataforma era muito cara em comparação com a concorrência, seus únicos títulos de relevância foram Virtua Fighter 2, Grandia e Daytona USA. Com o fracasso do Saturn, a Sega ainda tentou bater seus concorrentes nipônicos com um videogame da sexta geração, o Dreamcast.

O Dreamcast fracassou comercialmente em dois anos (apesar de manter uma base de simpatizantes até hoje, principalmente por um motivo): Playstation 2. O erro inicial foi pensar no PS1 e no Nintendo 64 como concorrentes e antecipar a nova geração com um lançamento na entre-safra dos videogames. Ok, venderam horrores inicialmente pela superioridade do hardware, mas muitos gamers preferiram esperar pelas novidades dos concorrentes que obviamente trouxeram inovações tecnológicas. Os potenciais clientes estavam com o pé atrás devido ao fracasso das últimas tentativas da Sega, e a Sony, vendendo horrores seu PS1, pediu aos seus usuários que esperassem pois sua novidade superaria o Dreamcast. Muitos esperaram... Antecipar o hardware também fez com que eles usassem uma mídia desenvolvida em conjunto com a Yamaha, o GD-ROM (1,2gb), quando já se ventilava no mercado japonês o advento do DVD. O desespero se justifica pelos erros administrativos passados, determinantes para a urgente necessidade de gerar caixa num futuro breve.

Além disso, a Sega já cambaleante teve certa miopia de negócios ao lançar um videogame para jogos online quando o mercado e a infraestrutura ainda não estavam prontos para isso. Não adianta ser visionário se isso extrapola a rentabilidade do negócio. Sim, o Dreamcast foi um fracasso, mesmo que os motivos não estejam ligados ao aparelho! Ele pode ser tecnologicamente interessante, à frente de sua época, mas se o objetivo de sua criação é proporcionar lucros ao fabricante, e não se exibir pelo videogame mais interessante, ele não conseguiu isso, fracassou. Ficam com créditos históricos, pela tecnologia forte e pelo embrião dos servidores de games online, mas quebraram. Para compensar as dívidas herdadas do Saturn, precisaram fazer jogos para outros consoles, mas para tal foram forçados a descontinuar a produção do Dreamcast. Importante destacar a participação da Microsoft na tecnologia do Dreamcast, um aprendizado essencial para sua entrada positiva nesse concorrido mundo com o X Box.

Playstation 2

O grande responsável pela derrocada final do Dreamcast foi o Playstation 2 da Sony lançado em 2000, o mais bem sucedido videogame da história até a chegada do DS, superando a casa dos 140 milhões de unidades vendidas, 1,5 bilhões de jogos vendidos e mais de 10 mil games produzidos. O PS2 deu sequência ao sucesso do PS1 ao trabalhar com franquias consagradas como os RPG's. Isso somado à novidade da tecnologia DVD quando ela estava vivendo seu boom no mercado japonês. A Sony conseguiu manter as softhouses na sua órbita e isso foi essencial para sua perpetuação. Alguns games de sucesso lançados por eles foram GTA Vice City, God of War, Final Fantasy XII, Metal Gear Solid 2 entre outros. Até hoje a Sony solta as vendas dos PS2 em seus dados financeiros publicados, cinco anos após o lançamento do seu sucessor PS3! A manutenção das vendas dessa vaca leiteira japonesa se justifica pelo preço reduzido no varejo (99 dólares) e pelo desbravamento de novos mercados (foi lançado oficialmente no Brasil em 2009, por exemplo).

Nessa sexta geração, a Nintendo tentou encerrar a hegemonia da Sony com o GameCube e seus mini-DVD's. O console vendeu pouco mais de 20 milhões de unidades, muito atrás da Sony, mas na frente da iniciante Microsoft em quase todos os mercados (exceto o americano). Nos portáteis, a Nintendo lançou o fenômeno DS em 2004 com suas duas telas, a inferior sensível ao toque. Com uma série de tecnologias embutidas, o DS superou recentemente o número de vendas do PS2, segundo o site VGChartz. (outras fontes dizem que o PS2 superou a casa dos 150 milhões de unidades e ainda se mantém na liderança)


Durante esse período os produtores de games como um todo no Japão foram impactados pelas restrições impostas pela força da lei em 2002. Se nos EUA e Europa as pessoas se preocupam com exposições cruas de violência, no Japão o que preocupa é o erotismo. Recentemente os japoneses censuraram Mafia II, God of War por conter conteúdo erotizado. Nos últimos meses uma onda de conservadorismo tem rodeado os políticos de Tóquio e o Japão está censurando jogos de teor violento, como Call of Duty Black Ops, No More Heroes, Resistance Fall of Man. Alguns jogos são censurados quando rodados em um PS3 japonês. Não estão apenas restringindo o acesso desse tipo de material, estão proibindo mesmo os adultos de ter contato com eles, o que é moralmente questionável. Se os pais abriram mão da educação de seus filhos, agora são os governos que assumem sua incapacidade de protegê-los de conteúdo impróprio, atingindo a todos com suas decisões arbitrárias.



A atual geração talvez seja abordada numa nova postagem, mas não posso deixar de evidenciar algumas situações do videogame japonês, que encontra alguns problemas pela frente. A crise econômica está maltratando a indústria japonesa e o mercado interno deles perdeu a capacidade de decidir positiva ou negativamente o destino de empresas globais, ainda que duas das três maiores do ramo sejam nipônicas. Os mercados americano e europeu estão drenando as atenções e os recursos dos principais participantes do setor. Os videogames de mesa estão com venda mesmo inexpressivas quando comparamos com a força do mercado japonês nas décadas passadas.

A estagnação qualitativa das softhouses japonesas é outro problema sério. Antigamente os japoneses produziam boa parte, talvez a grande maioria dos bons jogos, mas hoje as produtoras ocidentais ultrapassaram-nos. Não que os japoneses ficaram parados, mas os ocidentais correram muito mais (notável evolução dos europeus). Alguns apontam que o problema seria a pouca variedade de gêneros e muitos títulos de nicho, como aqueles J-RPG's que só agradam uma pequena parte apenas do público local. Enxergo que a vantagem ocidental se dá não apenas pela sua evolução em game design, mas pela atual sofisticação dos videogames. Ao trazer para o ramo as melhores cabeças e a tecnologia de informação, informática e rede, o mundo ocidental trouxe uma expertise para os games que o Japão não tinha. Os ocidentais estão trabalhando a base online de modo muito mais interessante. Pessoalmente não acredito que o perfil casual proposto pela Nintendo (Wii e DS) e abraçado pelos japoneses seja justificativa, uma vez que existe exportação e mercados gigantescos mundo afora.

É possível acusar a crise como mero problema de perspectiva. Primeiro, é covardia comparar o Japão com o resto do mundo tecnologicamente desenvolvido. Eles já salvaram a indústria, mas agora os demais aprenderam e é natural que os asiáticos percam expressão mundial ao dividir o mesmo mercado com outros países competentes. Segundo, há vários games japoneses atuais que não ficam devendo nada a algum jogo ocidental, a questão é que eles não evoluíram de suas últimas versões, enquanto os outros deram passos de gigante, igualando a situação e gerando a sensação de decadência japonesa.


Como eu disse, provavelmente cometi algumas injustiças históricas, mas como o texto não se pretende imparcial, vai ficar assim. Se não gostou, faça o seu com todas as referências que ache necessárias :)
No entanto, apesar da busca pelo cruzamento das informações, acho bem provável que o texto apresente algumas falhas factuais ou mesmo analíticas. Se for o caso, peço que corrijam, com a devida fonte, ou ofereçam um novo ponto de vista via comentário.

Fontes:
Era dos Videogames
http://www.vgchartz.com/hardware_totals.php?type=Hardware&sort=Total

Paranoia Agent: Cultura kawaii como resíduo da cortina nuclear

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"A criança perdida é o magnífico cogumelo no céu"

O falecimento de Satoshi Kon é um prejuízo irremediável para a animação japonesa tendo em vista a força de sua 'marca' como o principal nome da nova safra de diretores que está pegando o bastão da geração de Hayao Miyazaki. O mundo perdeu um trabalhador incansável, original, ácido, antenado e sensível antes mesmo dele alcançar seu ápice criativo. Felizmente a besta do câncer jamais nos tomará a excelência de seu pequeno legado. Muito celebrado por seus filmes na forma de animação, onde trabalha compulsivamente em cada detalhe de roteiro e estética, acaba eclipsando sua única aventura nos animes com formato padrão de episódios, Paranoia Agent. Com recursos e prazos mais apertados, Kon não pôde empregar seu característico esmero na produção dessa série, em compensação, abusou do experimentalismo para contar uma história criativa, atual e confrontadora. Sem dúvidas, minha obra favorita de sua autoria. Só leia se você assistiu ao anime, pois abusarei dos spoilers. Até porque você não vai entender muita coisa sem ter assistido, ao mesmo tempo em que perderá a surpresa caso resolva assistir. Se ainda não assistiu, tome esse post como um convite para o ato, pois o título é imperdível em seus 13 episódios. Depois volte e comente.

Paranoia Agent

O anime começa nos mostrando Sagi Tsukiko, a character design responsável pelo grande sucesso kawaii do Japão, o fofinho e lânguido cachorrinho rosa chamado Maromi. Com seus olhos cansados, Maromi é uma febre que movimenta muito dinheiro na forma de absolutamente todas as espécies de produtos licenciados, tem série animada, CD, pelúcia e tudo mais. Uma versão fictícia dos reais Doraemon, Pikachu, Hello Kitty e todos os outros bichinhos kawaii que sufocam o mercado de massa japonês com seu onipresente aroma de tutti-fruti. Tsukiko, no entanto, é intimada por sua empresa para dar sequência no sucesso de Maromi através da criação de um novo personagem.

O problema é conseguir criar algo que supere ou ao menos iguale um fenômeno. Se você quer ter noção do que é isso, tente se colocar no papel dos Beatles compondo o disco imediatamente após o Sgt. Peppers, quando o mundo esperava uma nova mágica dos garotos de Liverpool para balançar as estruturas dos anos 60. Mágica é a força que Tsukiko precisava para conseguir dar conta de sua missão, cada vez mais pressionada por demandas insustentáveis e hostilidade das companheiras de trabalho, invejosas do dinheiro e prestígio conquistados por ela com Maromi. Quando estava prestes a jogar a toalha, Tsukiko é agredida com um bastão de beisebol por um garoto ginasial em patins dourados. Hospitalizada, Tsukiko vê seus prazos serem flexibilizados e um sabor de alívio paira em sua boca.

Kawaii, kawaii, kawaii...
O agressor passa a atacar pessoas Japão afora com seu taco e o anime ganha rumos detetivescos com as investigações dos agentes Ikari e Maniwa da polícia japonesa. A primeira metade do anime mostra diversas histórias paralelas, personagens distintos que se entrelaçam numa rede social complexa, todo conectados pela mesma liga: o agressor do taco de beisebol, o Shonen Bat. Todos foram atacados impiedosamente pelo delinquente juvenil enquanto a polícia buscava evidências para capturar o pequeno marginal.

Maniwa, ao perceber a incapacidade de capturar o sujeito por vias policiais clássicas, atenta para um fato importante. As vítimas foram todas atacadas em momento de desespero, em situações onde não viam mais saída para seus problemas. Possuídos pela paranóia, eram atacados e encontravam conforto na cama do hospital, que não cobrava nada deles. Todos ficavam aliviados. Tsukiko teve seus prazos flexibilizados, Icchi não poderia mais ser acusado de algo que ele próprio foi vítima, o guarda pedófilo se viu livre das extorsões que o obrigava a cometer crimes, a professora-prostituta acalantou momentaneamente seu transtorno dissociativo de identidade. 

Todos pareciam apreciar os resultados da agressão e as reflexões de Maniwa ganham novo sentido quando, ao entrevistar uma moradora de rua, descobre que Tsukiko não foi atacada porcaria nenhuma, ela forjou sua agressão batendo na própria cabeça com um cano metálico. A questão inicialmente levantada por Ikari começa a rondar a cabeça de Maniwa... Existe mesmo um criminoso?

Paranoia Agent - Maromi e a sombra de Shonen Bat...eles são iguais? Maromi é um personagem de cura ou apenas um preguiçoso?

Sim, existe um criminoso, mas ele não calça patins nem sai por aí sentando o cacete na cabeça das pessoas que precisam de uma válvula de escape para seus problemas particulares (afinal, como alguém saberia quem está pressionado?). O criminoso existe, mas é intangível. O Agente da Paranoia não é uma pessoa física, é a semente de Baobá plantada em todos nós que pode ser mais ou menos regada pela imaginação, pelos rumores, pelos indeléveis temores humanos. Shonen Bat é uma metáfora brilhante de Kon para nossos tempos modernos, onde pedimos que um milagre ou um deus ex machina interfira em nossa vida para nos redimir da responsabilidade e da culpa. Essa construção simbólica ainda é universal, diz respeito à vida em qualquer metrópole do planeta. Kon é japonês e, preocupado com a realidade do seu país - de virtualização da vida - fez de Maromi outra peça de brilhantismo.

O cachorrinho kawaii não é um personagem citado por acaso apenas para mostrar o desespero da designer, mas sim a força motriz do anime ao lado do Shonen Bat. Maromi significa fuga, escapismo, justificativas. O "círculo de paz" criado por Maromi no Japão fictício de Paranoia Agent (segundo as palavras da Tsukiko) na verdade é um embrulho bonito para alienação. A presença de Maromi por todos os cantos, em todas as idades (como de fato existe no Japão real com personagens reais) através dos produtos licenciados é uma representação genial para a percepção de um Japão que ainda vive imerso em culpas, sem aceitar o peso de seus atos e responsabilidades.

Don't feed the trolls, eles se alimentam de imaginação
A posse dos artefatos da Maromi por parte dos personagens, segundo minha leitura, é evidência artística de fuga da realidade, virtualização da vida. Quando você reassiste sabendo o que cada coisa significa, o diferencial de Satoshi Kon estoura na tela, pois ele trabalha isso de modo muito eficiente. Quando um personagem está com um chaveiro ou pelúcia do Maromi, entendemos muito bem sua função alienatória, jogando alguma sujeira ou temor para baixo do tapete.

Kon foi muito crítico com a sociedade japonesa e com a subcultura otaku. Ben Hamamoto do Nichi Bei Times publicou um artigo em 2006 em duas partes chamado Entertainment Re-oriented: Atomic Pop. A primeira parte se chama It created a Monster, mas eu não achei na internet (se alguém souber onde tem, ou tiver, por favor me avise). Já a segunda atende pelo nome Hello Kitty and the Rape of Nanking. Pesado, não? Hamamoto joga no time dos que defendem as bombas atômicas como os pais da cultura kawaii japonesa, parida com o intuito de mascarar as atrocidades cometidas pelo Império Japonês na Segunda Guerra Mundial.

Maromi é tudo o que precisam para a ilusão do relaxamento
"Renderizar um país através de uma figura bidimensional fofinha também proporciona uma forma de mascarar o cadáver ensanguentado do cachorro que é o Japão Imperialista. Experiências com humanos (incluindo vivissecções sem anestesias), rapto de mulheres para servirem de escravas sexuais, e o infame Massacre de Nanquim; todas essas coisas escondidas debaixo do olhar tolo da Hello Kitty. O Japão foi também um participante extra-oficial na Guerra do Vietnã, Guerra da Coréia e nas Guerras do Iraque. Ainda sim o Japão é visto como inocente e pacífico." (tradução livre de Ben Hamamoto - tive dúvidas na tradução do termo rendering, se conseguir, leia o original em inglês)
Até hoje o Japão enfrenta problemas diplomáticos com os países asiáticos, sobretudo com China e Coréias, por não assumir alguns crimes de guerra extensamente documentados nem tratar o assunto como deveria nas escolas públicas. O país tem uma dificuldade enorme de virar a página, assumindo culpas. O agressivo Japão foi silenciado pelo cogumelo nuclear e pela ocupação americana, enterrando nesse silêncio suas responsabilidades.

Suposto registro do Massacre de Nanquim. Existe uma onda revisionista forte que afirma a falsidade das provas (não do massacre em si, mas das provas pictóricas apresentadas pelo governo chinês bem como o número de mortos em tão pouco tempo)

Essa dificuldade de enfrentar a realidade que é estampada pelo alienador Maromi. O cão ajudava os personagens a fugir da realidade e buscar refúgio mental em um lugar onde simplesmente não precisasse enfrentar os problemas. Na linguagem freudiana, Maromi incentiva o recalque pura e simplesmente, não a solução dos problemas. Não sofra nem por um instante, fuja do perigo, tenha uma vida completamente ausente de tormentas. Não é esse o mentiroso e venenoso discurso publicitário-corporativo que afirma todos como capazes de viver uma vida plena de constante felicidade, contanto que se esforcem o bastante para ter o dinheiro que a sustente? (como se equilíbrio na estrutura psíquica se construísse consumindo pílulas ou cultura de massa). E o personagem Maromi (Hello Kitty, Pikachu) está a serviço de quem mesmo?

Numa construção brilhante, o detetive Ikari se refugia, com a ajuda do chaveiro Maromi, no relicário de sua infância, o Japão dos anos 60 ou 70, onde as fábricas abundavam, os homens usavam chapéu, os vendedores eram corteses, as mulheres cozinhavam na rua e as crianças nela urinavam. Notamos, no entanto, que esse Japão que só existia nas boas lembranças dele, apesar de colorido é bidimensional. É fake, claramente falso, intangível, inverossímil, um simulacro (parece feito de madeira). Ao perceber que ele estava fugindo da dura realidade (doença da esposa e perda do emprego de prestígio) rumo ao nostálgico baú das lembranças de tempos melhores, ele rebate o chaveiro de Maromi como uma bola de beisebol. Essa realidade bonita, porém falsa, se estilhaça como um espelho com o golpe do chaveiro (golpe da verdade, na verdade).

O mundo real emerge escuro e frio, porém tridimensional e verossímil. Não importa quão dura seja a realidade, o ser humano é forte o bastante para encará-la, pois é somente no agora que existe a existência e a deliberação sobre a existência! Ela às vezes é dura, mas quem disse que não deve ser? Uma vida ausente de dores também é ausente de referências e padece por falta de estrutura. Nunca deve ter existido uma juventude tão fraca psiquicamente como a atual. A mesma que desconhece o sentido da palavra privação e acredita no significado do termo fome como aquilo que sente momentos antes do jantar. O personagem Chiaki Asami do mangá Sanctuary lamenta: "Esse Japão é próspero demais..."

Chiaki Asami
"O que estou tentando promover não é o bem-estar e a prosperidade de agora. É o Japão... O futuro do povo japonês!! Não existe futuro para um povo, ou melhor, para uma nação mimada como a nossa..." (Chiaki Asami - Sanctuary vol. 3)
Uma dúvida constante entre quem assiste Paranoia Agent é: Pô, mas o caso de Sagi Tsukiko sozinho foi o suficiente para envolver tanta gente e destruir a cidade? Não. Novamente recorro ao clássico Evangelion para elucidar esse ponto. Em Eva, nos dois episódios finais nós focamos no processo de instrumentabilidade humana de apenas uma das pessoas que se submeteram a ele, Shinji Ikari. Apenas no caso de Shinji vemos o processo do começo ao fim, mas isso não significa que ele foi o único, apenas nos foi mostrado um caso com exatidão para que pudéssemos conhecer o projeto e imaginar o que foi feito com todos os demais.

O mesmo para Paranoia Agent, aqui de forma bem mais clara. Focamos no caso de Tsukiko mas ela não é  única. No nono episódio, onde vemos aquele monte de casos (do vestibulando suicida, do pugilista que se rende aos alimentos, do médico que errou a inseminação e outros), Satoshi Kon finaliza o episódio subindo a câmera e no formatos dos prédios se lê "ETC". Um claro recado, o Shonen Bat está solto por ai, desde tempos longínquos, afetando de prostitutas a estudantes. Como se disesse: Te apresentei alguns casos, mas você sabe que os exemplos são infinitos. Etc, etc, etc...

Maromi: "Você só está cansado. Tire uma folga"

O final da série (espero que você tenha assistido o encerramento do 13º episódio, pois tem conteúdo depois dele) mostra a história cíclica. Resolvido o caso Tsukiko, temos um gatinho kawaii fazendo o papel de Maromi, pessoas praguejando em seus celulares dentro do trem (virtualização da vida), uma nova garota com problemas e Maniwa, agora experiente, nos advertindo que a paranoia sempre existirá e cada caso terá seu momento de solução, contanto que encarada de frente. Maniwa faz, nesse momento, o que o ancião fez durante todo o anime, dando o caminho das pedras os quais parecem grego para o jovens, mostrando que temperança e sobriedade são resultados de tempo e experiência. Enfrentar seus demônios internos sozinho e sem preparo pode ser suicídio (situação simbolizada pelo primeiro confronto entre Maniwa e Shonen Bat, onde ele saiu muito ferido). O que ele fez? Foi atrás do velho, pois a ajuda de alguém mais experiente é sempre bem vinda. Shonen Bat só sumiu para Tsukiko quando ela assumiu e aceitou o doloroso passado e a culpa por ser responsável pelo atropelamento do cachorrinho Maromi quando ainda era uma criança.

Problema é que sumiu para ela, não para o mundo...o ciclo se repete infinitamente para os próximos humanos que se sucedem. Mas como nós vamos ajudar nossos pares nesse processo se a comunicação interpessoal está cada vez mais escassa e virtualizada? Como apostar na humanidade nessa nação envenenada pela cultura de massa e pelo discurso publicitário de ausência de dor e oferta de felicidade? São questões que Satoshi Kon levanta, ou ao menos eu levanto ao ter contato com a obra dele.

Paranoia Agent

 Fecharei o texto falando do experimentalismo que Satoshi Kon trouxe para os episódios. Ele encontrou diversos modos criativos para contar  história de cada personagem. Alguns falam que foram muitas ideias boas subaproveitadas. Talvez se algumas delas fossem melhor tratadas em algum filme seria melhor, mas já que a natureza nos separou do mestre cedo demais, Paranoia fica como uma amostra menos engessada da criatividade e bom senso estético do criador. Ele usou a animação para contar uma história legal, inteligente, sem perder o espírito do anime, sem fazer da animação o mero canal para fazer um filme comum mais barato, mas sim aproveitando todas as suas vantagens sem negar suas características. 

Ele usa a metalinguagem de um mangá seinen para ilustrar a solidão e o desencantamento do policial pedófilo (e/ou talvez para mostrar como a cultura de massa influencia as pessoas, já que o cara fica usando frases de efeito dos mangás para roubar as pessoas, claro que com a adaptação "Me chame de papai!!"). Quando a polícia prende o Shonen Bat falso, as pistas são indicadas pela linguagem dos RPG's virtuais num episódio muito divertido (novamente a cultura industrial usada para perverter as fronteiras entre real e virtual). Em um dos episódios ele mostra o stress dos membros da equipe de produção do anime feito em cima do personagem Maromi, explicando a função e as dificuldades de cada cargo do time, numa deliciosa viagem pelo processo de criação de animação (como Bakuman mostra, de modo muito mais lúdico, o processo do mangá). É criativo, é divertido, é embasado e é ácido ao mesmo tempo!

A problemática do suicídio
Destaco outro episódio genial. O de três pessoas (um velho, um homossexual adulto e uma menina) que combinam pela internet um suicídio coletivo, discutindo métodos e motivos. O episódio não é dirigido de forma trágica, pelo contrário, ele é muito cômico, pois todas as tentativas de suicídio aparentemente não dão certo. Eles lamentam o fato do Shonen Bat não buscá-los já que estão loucos para morrer, uma vez que ele está atacando geral os japoneses. Hamamoto diz no artigo já citado que "você não pode morrer se já está morto", no sentido morto apesar de vivo, alguém que não aproveita a vida, daí os fracassos nas tentativas de suicídio. Eu enxergo uma visão mais tóxica do Satoshi. Os três não estão desesperados coisa alguma, são só pessoas entediadas pagando de niilistas e gritando aos sete mares as 'dores de viver', são só pessoas mimadas. Desesperados estão os outros que foram perseguidos pelo Shonen Bat, alguns lutando, alguns fugindo. Esses três estão apenas cansados de não fazer nada, de ficar na internet debatendo métodos indolores de morrer. E o Japão está cheio dessas pessoas... O mais cômico é que eles começam a pegar gosto pela vida quando finalmente morrem (e não percebem). Vão viajar, pegam o trem, se divertem na hospedaria...gozam da vida buscando a morte.

Shounen Bat

Uma verdadeira pérola da animação japonesa, obrigatória para todos que acham o anime a expressão maior da apologia do vazio. Assista no mínimo 2x. Finalizo com a conclusão da coluna do Hamamoto:

"Um enigma. O que transformou o povo japonês em vítimas irrepreensíveis, limpou sua memória histórica e o deixou vazio, cordial e passivo? No anime Paranoia Agent foi o Shonen Bat. Na realidade foi a bomba atômica." (tradução livre de Ben Hamamoto) 
Ao mestre, obrigado. Satoshi Kon

Fonte:
Entertainment Re-oriented: Atomic Pop Pt. II: Hello Kitty and the Rape of Nanking (Ben Hamamoto, 2006) 

Kimi Ga Nozomu Eien: um chamado à realidade

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Shinji, Haruka, Hayase e Takayuki

(Esse post faz parte da blogagem coletiva, onde alguns blogs vão publicar nesse sábado um texto sobre Kimi Ga Nozomu Eien, os demais links serão exibidos no final.)

Se eu tivesse que sintetizar Kimi Ga Nozomu Eien (A eternidade com a qual você sonhou) em apenas uma ideia, ela seria: Uma obra obrigatória para qualquer adolescente que assiste animes. Construí essa impressão na primeira vez em que assisti ao anime, por volta de 2005 aos 15/16 anos e reafirmo ela ao assistir novamente aos 21.

Kiminozo é um drama romântico que enfoca um triângulo amoroso. Putz, deve ser uma melação para meninas ginasiais, o leitor pensa. Eu também fiquei com essa impressão nos dois primeiros episódios. Apenas para sintonizar aqueles que não assistiram, o enrendo inicial trata de quatro personagens. Suzumiya Haruka e Hayase Mitsuki são duas amigas, a primeira muito tímida, a segunda extrovertida e animada, praticante séria de natação. Haruka é apaixonada por um colega de classe de Hayase, o jovem Takayuki. Com a ajuda da amiga, Haruka se declara para o cidadão com a qual nunca havia trocado uma palavra e ele...aceita. Calma, leitor, não se trata da versão asiática de Malhação. A situação começa a ficar interessante no final do segundo episódio, quando Haruka é atropelada, hospitalizada, permanecendo inconsciente por três anos. (válido lembrar que todos estavam para completar o ciclo escolar e já iniciavam os preparativos para os exames de admissão).


O pulo cronológico que a série dá é um claro aviso: Acabou a fantasia, o joguete de crianças. Abandonai toda a esperança, ó vós que entrais no mundo adulto. Enquanto Haruka permaneceu presa no tempo amarrada a uma cama de hospital, os demais finalizaram o colégio e deram sequência em suas vidas. De modo surpreendente, descobrimos que Takayuki está namorando Hayase, a melhor amiga da sua 'namorada pendente' do hospital (posteriormente descobrimos que ela também se interessava por Takayuki nos tempos da escola). Tudo certo até o dia em que Akane, irmã mais nova de Haruka, liga avisando que ela havia acordado.

Inicialmente, Takayuki apenas aceitou o relacionamento proposto por Haruka, que ele mal sabia quem era. Ele, de modo nítido, se sentia pressionado com a situação, sensação claramente exposta pelo diretor com a chaleira apitando após o telefonema de Hayase. Com o tempo ele desenvolve uma forte empatia com a pueril Haruka, mas de cara já é possível perceber que algo ali não está perfeito. Na primeira vez em que Haruka propõe fazer o tal do encantamento (e quer coisa mais quinta série do que isso?), Takayuki não termina a última frase a respeito de não esquecer o outro (ou o diretor cortou antes, indicando ao telespectador mais atento o rumo das coisas).

Nos tempos do relacionamento juvenil...
Apesar de após os três anos o relacionamento com Hayase aparentar estabilidade, ele não surgiu de modo orgânico. O decorrer dos episódios mostra como a vida de todos foi fortemente impactada pelo acidente. Takayuki entra num estado catatônico pelo impacto do acidente e sensação de culpa. Hayase o traz de volta a vida, mas não com palavras - que soavam inúteis - e sim com sexo. O estalo que o trouxe de volta ao planeta Terra foi algo muito menos idealizado, não foi uma simples declaração platônica de amor pela essência, ou coisas do gênero muito valorizadas quando se tem 15 anos, foi um corpo quente e nu forçando um abraço, foi o sinal maior de animalização da humanidade.

O anime deixa claro também como a vida dos dois se manteve pendente com a situação de Haruka. Takayuki que tinha boas notas e almejava uma boa faculdade acaba com uma porcaria de emprego de meio período num restaurante. Como Hayase notou, o pôster na parede de um jogo de videogame dos tempos do colégio mostrava como ele ainda estava muito preso àquilo. Com ela a situação não foi diferente, com atuações na natação que a qualificavam para um futuro profissional, ela abandona tudo por Takayuki e termina com um emprego tedioso num escritório.

Apesar de tudo, ambos dão sequência na vida do jeito que podem...até Haruka acordar, sem ter noção do tempo passado. Agora, para Takayuki, quem é sua namorada? A atual ou a pendente que ainda acredita viver os tempos de colégio? A dúvida se instala e ele deixa claro que ainda considerava Haruka, o que fica simbolizado pelo derrubar da caneca de golfinho que representava a ex-nadadora. Takayuki começa a visitar Haruka no hospital fingindo ser ainda um estudante colegial, fingindo ainda namorá-la.


Se Takayuki tinha a problemática da namorada, Hayase não estava menor perdida, abrira mão de sua vida na natação por ele e agora era colocada em xeque pela única coisa que alicerçava sua existência. Hayase, diferente de Haruka, é forte e novamente toma a iniciativa. Se primeiro usou o corpo para quebrar o gelo, agora ela força a mudança para o apartamento de Takayuki para ver se consegue uma estabilização no relacionamento. O problema é a reação lacônica do cidadão, que passa a evitar o olhar, a conversa, o toque e mesmo a presença, vagando por bares e comendo porcaria pela rua enquanto a comida preparada por Hayase ficava esfriando na mesa.

Takayuki vai ao hospital e trai Hayase com Haruka. Novamente Hayase tenta segurar a barra do relacionamento com o corpo, relacionamento que dia a dia perde a liga, situação claramente mostrada pelos dias chuvosos e pelo curry preparado perdendo a temperatura. A ex-nadadora questiona porque tudo deu errado após o acidente e afogada pela nostalgia deseja voltar para os tempos do colégio, para a era da irresponsabilidade, da idealização. A traição é retribuída por Hayase que faz com Shinji, também melhor amigo de Takayuki até então, mas poderia ser com qualquer um....

O fato é que durante a forte febre que pegou, Takayuki percebeu que Hayase é quem estava prestativa ao seu lado o tempo todo. Haruka era uma pendência passada, sua vida havia avançado e Hayase Mituski era o presente, não mais Haruka. Ele apenas se manteve prestativo com uma Haruka em busca de um namorado que não existia mais, o Takayuki do colégio morrera há 3 anos, esse é outro que ela não conhecia mais. Takayuki então finaliza o anime com Hayase, sua atual, abrindo mão da namorada pendente ainda que a situação dela fosse excepcional e delicada.


O anime foi baseado num eroge (jogo erótico de relacionamentos com múltiplos finais) e escolheu apenas uma das possibilidades. Na minha opinião, indubitavelmente a mais interessante, real e sensata. Acho esse título muito expressivo por mostrar um lado nunca explorado pela ficção romântica sem apelar para enredos cultos ou entrópicos.

Kimi Ga fala de relacionamentos reais, que contam com altos e baixos, traição, sexo como artifício de barganha, mas também companheirismo e projeto de vida. Enquanto todos os animes para adolescentes retratam relacionamentos platônicos e idealizados (platônico no sentido literal mesmo, pois em muitos não há sequer a insinuação sexual, é modelo ideal puro e simples, vide Bakuman onde o casal sequer troca palavras até alcançarem seus objetivos, ainda que estudando na mesma sala), Kimi Ga nos mostra o que é de fato a realização afetiva na vida adulta sem perder suas raízes como anime.

Mais do que isso, mostra que as coisas acontecem para quem toma a iniciativa. Hayase nunca deixou de tentar e merece o resultado final pelo esforço dedicado ao seu objetivo. Notem que da abertura ao final da trama, é sempre Hayase e não Haruka quem se move primeiro. Também nos dá uma aula do que é a expressão amorosa quando se sai da adolescência. Enquanto a paixão se dá por uma projeção dos seus próprios desejos e valores numa pessoa qualquer (caso da Haruka que sequer tinha trocado uma palavra com Takayuki), o amor que se desenvolveu com Hayase é real. Ambos conhecendo o outro como ser humano, desejante e falho em diversos pontos, mas ainda sim digno de se montar um projeto de vida juntos.



A recepção foi tão negativa que criaram um final alternativo na forma de OVA para agradar os propugnadores do amor como a flechada de Eros, algo inexplicável que pode ocorrer entre qualquer um em qualquer momento. Puro e ideal. Hayase é odiada por boa parte do fandom. Mas a abertura já deixa claro que chega um momento onde deve-se deixar as idealização infantis no passado. Entendo que a função da ficção é justamente fazer as pessoas sonharem, pois da realidade todos já estamos cheios por demais. Acontece que excesso de ficção, principalmente no Japão, está fazendo muitas pessoas desejarem algo que não existe, um modelo de relacionamento que deve permanecer apenas nos mangás, na literatura e nas novelas, jamais extrapolado para o mundo real.

Haruka não tem culpa do acidente, mas tampouco os outros dois têm. Ela é uma vítima do acaso e terá que aprender a viver com os percalços da vida. Takayuki já não estava mais no clima de ficar fazendo encantamentos e o Diabo, apesar da consideração por ela e principalmente pela situação dela.

Encantamento é o cacete!
A dose dramática em alguns momentos é até over, enquanto alguns personagens mudam de opinião e postura como o clima vietnamita (Akane e Takayuki). Também tem aquelas duas chatinhas do restaurante inseridas para quebrar o clima. O anime não é perfeito, mas pessoalmente acredito que seu diferencial compensa eventuais falhas.

Kimi Ga é um chamado de volta. Ele diz, viva seu conto de fadas no tempo certo que é a adolescência, é saudável viver isso dessa forma enquanto se é jovem (daí os 2 primeiros episódios melados e iguais aos demais dramas comuns), mas mantenha um dos pés na realidade. Claro que sem um pouco de fantasia, idealização e projeção a vida ficaria insuportável e todo mundo pularia da janela, só que não há vantagens em viver para sempre nem nos contos da carochinha, nem no mundo virtual. O legal dos dois primeiros episódios clichês é uma forma de captar inicialmente os adeptos dos dramas platônicos da animação japonesa para depois mostrar, ok, tudo isso é legal, mas a vida é maior. Enxergo qualidade em Kimi Ga Nozomu Eien apesar de toda a simplicidade e clichês adotados. Ele pega um assunto onde todos dão pitaco e joga uma pitada de real, tão necessária nesse mundo de jovens que se perdem na ficção. Sem ser cult, sem 'desconstrução', sem fandom fanatista metido a intelectual e sem focar na droga dos nichos otakistas, sendo uma criação mais universal. Uma obra honesta que merece ser lembrada quando o assunto é drama.

Blogs/blogueiros participantes (os que já soltaram o texto até o momento da atualização estão pintados de verde):
Netoin!, Gyabbo!, Mithril, Subete Animes, Chuva de Nanquim, Elfen Lied Brasil, MBB Anime Kenkyuukai, Anime Portfolio, Buteco Shonen, Visual Novel Brasil, Mais de oito mil, Philosophy Otaku, Yasumi no Cast, Moon Stitch, Video Quest, Mundo Mazaki, Yon KomaSpecial Days, Neo Armstrong Cyclone Jet Armstrong BlogOtameb e Subete Animes 2(texto do Nisishima).

Aqui temos a explicação da origem da blogagem coletiva:

Sei que você não vai ler 20 resenhas sobre o mesmo anime, onde talvez uma meia dúzia vai dizer a mesma coisa. Escolha alguns blogs que você conheça ou mesmo chute alguns. Quando todos lançarem o texto eu vou indicar uns 2 ou 3 que mostram uma visão diferente da minha.

Os homens herbívoros do Japão: São realmente um problema?

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"Se no Século XIX os Samurais largaram as armas - forçados - os japoneses de hoje largaram o pênis: voluntariamente."

Essa genial frase de tom fálico inicialmente publicada no site reflexoesmasculinas é uma síntese inteligente - melhor do que eu seria capaz de elaborar - sobre um dos últimos fenômenos sociais que ganhou expressão na mídia japonesa e se espraiou nesse lado do mundo de modo distorcido, como não poderia deixar de ser, pelo sensacionalismo da mídia ocidental. Trata-se dos homens herbívoros. Quem não está antenado na trágica situação do Japão e assiste a uma matéria de cinco minutos no Jornal da Globo falando que japoneses não querem mais sexo, já conclui: Ah, os japoneses são bizarros. Não satisfeito com o senso comum, fui pesquisar e descobrir que o comportamento dos herbívoros é sim bastante excêntrico, porém vou mostrar como ele é de certa forma justificável (fora da lógica de chegar sempre na conclusão de que japoneses são malucos, então pode se esperar de tudo) e indica caminhos até então inéditos para a ainda muito tradicional sociedade nipônica.

Os homens japoneses estão apresentando traços comportamentais que em qualquer outro tempo seria o suficiente para taxá-los como afeminados ou mesmo homossexuais. Justamente eles, que marcaram em pedra o arquétipo do macho rude e viril. Desde os tempos dos leais samurais, passando pelas atrocidades sanguinárias do Exército Imperial nas Guerras Mundiais, até chegar no executivo workaholic que agredia sexualmente as parceiras de trabalho quando as mulheres ainda engatinhavam com o movimento feminista no arquipélago. Esses caras foram sucedidos por homens impactados pela estagnação econômica que paira sobre o Japão desde o início dos anos 90,  que reagem à crise com um comportamento diametralmente oposto em relação ao estereótipo do macho japonês.

Homem Herbívoro

Falo dos Soushoku Danshi (literalmente "garotos come-grama"), termo adaptado como homens herbívoros, cunhando em 2006 pela colunista Maki Fukasawa e popularizado pelo livro "Os homens herbívoros e afeminados que estão mudando o Japão" de Megumi Ushikubo, presidente da consultoria de marketing Infinity. Esses homens são assim chamados pela sua falta de interesse por sexo (não come carne, daí o herbívoro) e pela negação da vida estonteantemente competitiva e acelerada de tempos passados. Algumas de suas características principais seriam:

Não têm uma postura tão competitiva em relação ao trabalho como os homens de gerações anteriores; Têm consciência de moda e comem de modo balanceado para ficar magros e caber em roupas mais apertadas; Tem amigas mulheres, são ligados às mães e vão às compras junto com elas (se aproveitando do poderio econômico dos pais); Não se interessam em namoros, garotas ou mesmo fazer sexo (optando por um prazer solitário com brinquedos eróticos); São muito econômicos e adoram cupons de promoção, declarando que os que não poupam os centavos são estúpidos. Seus principais interesses passam a flutuar temas como fotografia, gastronomia, jardinagem, moda, desenho e coisas do gênero. Abrem mão de tudo o que possa custar um desgaste físico e/ou psicológico por essas pequenas particularidades inofensivas.

“Os homens japoneses na faixa dos vinte aos trinta e poucos anos parecem desinteressados em fazer carreira e apáticos com os rituais do encontro amoroso, sexo e casamento. Eles gastam a maior parte em roupas e cosméticos como as mulheres, vivem com suas mães e sentam na privada para urinar. Alguns estão até mesmo usando sutiã. O que está acontecendo com a masculinidade do país?” (Takuro Korinaga, economista)


Curiosamente a agitação crítica em cima da percepção inicial de uma anormalidade no comportamento masculino não surgiu das ciências sociais, mas sim do mercado. Nas palavras da marketeira Megumi Ushikubo:
“Nos anos 80 os rapazes tinham que comprar um carro, caso contrário as garotas não olhariam para eles. Nós éramos líderes em consumo. Recentemente as empresas estão perguntando, por que os garotos não estão mais interessados em carros? E por que as garotas estão nos dizendo que elas não estão interessadas em rapazes que gastam seu dinheiro com carros?”
Uma companhia de consultoria subsidiária da Dentsu (a maior companhia publicitária do país) chamada Media Shakers estimou dados alarmantes: 60% dos homens de 20 anos, e 42% dos homens entre 23 e 34 anos consideram-se herbívoros. Dados de diversas fontes afirmam o dito. A empresa de relacionamentos Partner Agent mostra uma pesquisa onde 61% dos homens solteiros na casa dos 30 anos se auto-intitulam herbívoros. Um empresa de apólices de seguro chamada Lifenet fez uma pesquisa online com uma amostragem de mil homens solteiros na faixa dos 20 e 30 anos, e aqui também, 75% da amostra se definiu como um homem herbívoro.

A reportagem feita pelo Jornal da Globo afirma: "Entre os jovens de 16 a 19 anos, 36% dos rapazes se descreveram indiferentes ou com aversão a sexo. Mas eles também podem reclamar delas. Entre as japonesas da mesma faixa etária, o desinteresse ou aversão ao sexo chega a 59%. O percentual cresceu em relação a mesma pesquisa feita em 2008: aumentou 19% entre os homens e 12% entre as mulheres."

Homens Herbívoros

Em tempos de metrossexuais e David Beckham, por que tanto alarde com os comedores de grama? A resposta é simples. Esse comportamento não é apenas uma afronta às tradições do homem japonês, mas também um fato determinante que está ajudando a manter o Japão na crise, sem oferecer a mínima perspectiva de mudança, uma vez que ele sangra dois problemas cruciais para o futuro do Japão: A baixa natalidade e o esfriamento da demanda interna no mercado de consumo japonês. Os herbívoros seriam o resultado, o protesto (sempre silencioso dos jovens japoneses) contra os valores que alimentaram o crescimento japonês no pós-guerra, como a exacerbação do materialismo e a competitividade desumana. Como gatos escaldados, eles negam aquilo que os alçaram ao topo do mundo.

Essa apatia demonstrada por parte dos homens japoneses já está incomodando a ala feminina do país. Diante de homens que não tomam a iniciativa (por medo de sofrer a ferida narcísica da rejeição), não demonstram interesse por sexo e racham a conta do restaurante, parte das mulheres estão fazendo elas próprias esse papel. Tomam elas mesmas a iniciativa e, apelidadas de mulheres carnívoras, passam a praticar a arte do konkatsu, a busca por um parceiro (20% delas se consideram carnívoras, mas ainda sim essa voracidade não pode ser comparada com os tempos da bolha econômica). Apesar disso, as carnívoras costumam renegar os herbívoros, pois gostam do perfil do macho.

John Greenaway, professor canadense com muito contato com alunos asiáticos, estudante de inglês no país, afirma que as japonesas são muito mais sociáveis, práticas e ativas que os homens do país. Os homens japoneses, mesmo quando herbívoros, se aproveitam das condições no Japão que ainda favorecem o homem, e se mantém passivos, enquanto as mulheres que vão em busca de algo, o fazem de modo mais proativo. A diferença é que no exterior essa proatividade é facilmente igualada, quando não superada, por pessoas de diversas etnias e elas passam uma imagem até conservadora.

Shigeru Sakai do Media Shakers opina que esses homens não tomam a iniciativa por uma dificuldade de auto-expressão. Cercados de eletrônicos, geralmente sem nenhum irmão em casa, e falando com os amigos mais por mensagens de texto e redes sociais, suas habilidades sociais tendem a definhar. Mimados desde o berço, não toleram a frustração e não dão a cara ao tapa na arte da conquista.

 “Eu não tomo a iniciativa com mulheres, eu não falo com elas. Eu adoraria se uma garota falasse comigo, mas eu nunca tomo o primeiro passo.” (Yukihiro Yoshida, estudante de Economia)
Men's Fudge, a revista dos herbívoros
É importante ouvir as opiniões dos próprios herbívoros, e o grupo olha para a questão através de outras lentes. Eles não enxergam a situação como um problema (ao contrário de empresas, governo e mulheres). Herbívoro seria um rótulo muito amplo, que abarca uma diversidade de homens e comportamentos diferentes. Seria a soma dos homens que não estão mais dispostos a bancar o preço de viver a imagem do homem feliz empregado numa grande empresa. São pessoas que ligam menos para as cobranças da sociedade, para os papéis sociais, para o arquétipo da masculinidade japonesa. Eles ditam os caminhos de suas próprias vidas.
“As pessoas que cresceram na era da bolha realmente sentiram que eles foram derrubados.Eles trabalharam tão duro e isso tudo não deu em nada. Então os homens que vieram depois deles mudaram.” Megumi Ushikubo

Há uma crítica tanto ao padrão do homem japonês quanto à monetarização do amor ao modo ocidental (mencionado na explicação do fenômeno moe), que exigem um homem másculo que trabalha como um burro de carga para conquistar a fêmea com mimos caros. Os japoneses tiveram que se adaptar tantos às rígidas posturas sociais da sociedade nipônica quanto aos hábitos ocidentais importados pela ficção, como abrir a porta do carro ou puxar a cadeira para a mulher se sentar primeiro. A mistura dessas culturas, alimentada por uma rede comercial voraz, é insustentável para muitos dos japoneses que se resignam e vão buscar relacionamentos na internet, nos mangás, nos RPG's virtuais (ou em casos mais extremos, se casando com um travesseiro).

Existem uma série de fatores que são levantados por toda uma espécie de pensadores, mas o foco acaba sempre desaguando na situação econômica do país, resultando numa cultura que adoece pouco a pouco. Vou apresentar algumas visões para depois focar, de fato, na parte financeira que parece oferecer uma justificativa mais plausível.

Homens Herbívoros

Uma ala sempre presente no pensamento japonês é a defensora dos fenômenos sociais do país como consequência de suas próprias raízes, diminuindo a importância da ocidentalização em sua gênese, encontrando paralelos culturais no Japão pré-Restauração Meiji. É o caso do professor de Filosofia da Universidade de Osaka Masahiro Morioka ao afirmar que esse padrão andrógino também era comum durante os pacíficos anos da Era de domínio do clã Tokugawa (1603-1868), onde o Japão conheceu inéditos 260 anos de absoluta paz interna. Nesse período foi comum meninos serem criados como meninas, usando vestimentas femininas (acreditava-se que era um meio saudável de desenvolvimento); haviam os onnagata no teatro Kabuki (homens interpretando papéis femininos) e o shunga (pornografia do período Edo onde homens e mulheres só se distinguiam pelos genitais, pois os homens também vestiam roupas femininas, penteando os cabelos como elas). A erosão dos papéis sociais não seria, então, um fenômeno novo no Japão.

Morioka continua argumentando que esse novo ciclo herbívoro seria uma maior aceitação das fraquezas e limitações masculinas, uma vez que ser homem no Japão é uma árdua tarefa inimaginável no Brasil, essa terra do improviso, do jeitinho e do imediatismo. As pressões sociais em cima do homem japonês são demasiadamente pesadas. Ele prossegue com uma afirmação muito interessante: Não são os herbívoros que estão pervertendo o "espírito japonês", ao contrário, eles seriam os responsáveis pela regressão a um estado humano mais nipônico. Distorcidos foram os seus pais e avós que aceleraram as coisas no Pós-guerra - através de métodos absolutamente ocidentais - como um modo de afirmação perante os estrangeiros enquanto buscavam o mesmo padrão de vida dos americanos. Passado o limite do crescimento econômico do país, o retorno às raízes seria inevitável.

“Antigamente, os homens japoneses tinham que ser passionais e agressivos, mas agora essas característica são desagradáveis. Nossos membros tem uma personalidade muito branda. Eles simplesmente aproveitam do que gostam sem preconceitos, eles não são limitados por expectativas.” Yasuhito Sekine
Propaganda da Nivea com foco nos homens, em transporte japonês
Outro ponto que destaco é o excesso de paz. Com a submissão das forças armadas japonesas ao Exército Americano que limita as ações militares do país, e com as políticas de segurança interna, a afirmação da masculinidade se torna supérflua quando o assunto é segurança física. Não há mais a necessidade do macho agir como um soldado no campo de batalha, ainda nas palavras de Morioka. A quantidade de assassinatos per capita cometida por jovens adultos no Japão é a mais baixa do mundo! “Além disso, os valores da sociedade que fazia homens cometerem atos violentos estão desaparecendo. Os homens não precisam mais ser violentos, é por isso que podem ser herbívoros”. Se os EUA vive achando alguma guerrinha por aí e tem seu país recheado com veteranos de guerra de todas as idades; se na Coréia do Sul o alistamento militar é assunto estratégico pelo conflito com os norte coreanos; no Japão a afirmação da masculinidade - no que tange a sobrevivência literal - se torna cada dia mais inútil.

O último assunto levantado pelo filósofo que eu sinto necessidade de citar é a distinção entre ser herbívoro e ser gay. Claro que há gays entre os herbívoros e eles se expressam desse modo. É verdade que a Wishroom já vendeu milhares de sutiãs masculinos, mas certamente uma ampla parcela dos compradores são homossexuais que também se definem como herbívoros, e também não quer dizer que eles saem por aí todos os dias usando sutiã, talvez em um ou outro caso. A mídia dá foco em peculiaridades sem importância, não mostra as origens da situação e ainda cria uma imagem fantasiosa e ridícula de uma nação (o mesmo para a mídia japonesa, que adora um sensacionalismo para dizer o quanto o país está perdido). Herbívoro não é gay, o buraco é mais embaixo, como Morioka diz, os herbívoros procuram o “amor hetero enquanto tornam-se unisex”.

Algumas explicações, de origens feministas, afirmam que a situação seria o desabrochar de uma nova masculinidade, que não precisa mais reprimir seu lado feminino para agradar às convenções sociais.
“Não é que os homens estão se tornando mais femininos, o conceito de masculinidade que está mudando.” Katuhiko Kokobun

homem herbívoro

Por outro lado, muitos defendem que esse florescimento do lado feminino dos homens ou retorno às origens é pura balela feminista ou ufanista, o problema seria de origem econômica mesmo, pois a geração mais bem instruída da história do Japão não está encontrando perspectivas de futuro nem segurança de emprego. Com muitos homens ganhando menos de dois mil dólares mensais na cidade com o mais alto custo de vida do planeta, tendo acesso à tecnologia e tendo que conviver com a ala feminina que no Japão é abertamente materialista e gananciosa, muitos homens passaram a dar a mínima para o que a sociedade espera deles, pois se resignaram em sua condição miserável.

A questão é que eles não são assexuados, apenas não estão mais dispostos a pagar o preço para ter acesso a uma mulher que valha a pena. Eles simplesmente não querem mais morrer de trabalhar para comer alguém. O interesse por sexo indubitavelmente continua, basta ver a saúde do mercado pornográfico japonês. A queda na venda de preservativos que persiste desde 1999, ano onde se deu o boom da internet no arquipélago, é sinal correlato de virtualização da sexualidade, não de sua extinção.

candidatos japoneses

O problema é falta de segurança financeira. No período do crescimento, as empresas japonesas ofereciam polpudos salários e um plano de carreira para toda a vida, com reais chances de crescimento dentro da hierarquia corporativa. Era muito mais seguro alimentar o ímpeto consumista das mulheres sabendo que o pagamento seguramente cairá na conta todos os meses. E não venham me chamar de machista, porque o enjo kosaidos anos 90 está ai para provar que muitas japonesas estavam dispostas até a se prostituir por seus desejos materialistas quando a fonte secou. Nos tempos áureos da economia, o emprego funcionava na base do seishain (emprego permanente), mas agora com a crise, mesmo a mão de obra qualificada do país está sendo contratada na base do haken (contrato). A segurança financeira foi parar na mesma lama na qual a economia do país se atolou. Essa situação incomoda muitos os jovens trabalhadores japoneses, os quais, segundo pesquisa da Mitsubishi, 64% deles gostariam de permanecer no mesmo emprego de modo estável.

Não está sendo viável, para a maioria deles, sustentar a utopia da vida feliz, aquele modelo do American Way, do pai de família casado e empregado numa instituição de renome. Está cada vez mais difícil sustentar a condição de macho alfa, rico, bonito, com status e bom de cama, num país em crise onde todos os outros homens tem a mesma educação básica e origem étnica semelhante (dificuldade de achar um diferencial para se destacar). São pessoas que assumem sua incapacidade de competir. Os riscos de tantos esforços são grandes demais, sem oferecer garantias de retorno no futuro.

Menos de 10 mil dólares mensais? ha ha

As mulheres, com as mesmas oportunidades trabalhistas garantidas pela legislação, não se vêem mais na obrigação de casar para garantir seu sustento e saciar seus desejos de consumo, logo, ficam mais exigentes quando o assunto é casamento. Ao mesmo tempo em que os homens estão achando cada vez mais dificuldades para encontrar um bom salário num emprego estável. A pobreza no Japão está crescendo e o país já é dono do segundo pior índice de pobreza relativa, superado apenas pelos americanos (segundo relatório da Organisation for Economic Co-operation and Development). Sentiu o drama?

Essa mulheres, ainda querendo o nível de vida dos tempos de bonança e com iguais oportunidades de trabalho (ao menos na teoria) que as fazem fugir do matrimônio, estão ajudando a criar um sério problema. Uma geração inteira de solteironas que chegarão sozinhas na velhice (um sério problema social no Japão, onde alguns idosos morrem e ficam 15 anos em decomposição na casa sem que ninguém perceba) e um monte de homens de meia-idade que ainda não perderam a virgindade (25% dos japoneses na faixa dos 30 anos seguem virgens). Eles tampouco vão fazer esse serviço em inferninhos, alguns deles porque estão condenando justamente a monetarização dos relacionamentos, a maioria porque não tem dinheiro mesmo. Os prostíbulos japoneses são caros e frequentemente cobram mensalidade de seus frequentadores. Enquanto os que tem dinheiro para bancar a farra também não procuram o serviço, alegando estarem fisicamente exaustos demais, por causa do trabalho, para mesmo pensar no assunto.

Quer? Pague o preço,...

O economista Takashi Kadokura cruzou diversas informações e traçou conclusões perigosas. 30% das mulheres afirmaram se recusar a sair com homens que ganham menos de 10 mil reais mensais. Quase metade da totalidade delas se recusariam a casar com alguém com rendimentos anuais inferiores a 80 mil reais. O problema é que apenas 1,5 milhões de japoneses na faixa etária dos herbívoros possuem rendimentos nessas especificações, enquanto existe um volume três vezes maior de mulheres esperando, no mínimo, mais do que isso. Conclusão, pelo menos 2/3 delas continuarão sozinhas se não diminuírem suas expectativas e exigências, fortemente enraizadas por questões culturais e pela libertação proporcionada pelo movimento feminista. Além disso, a baixa natalidade do povo japonês cobra de toda mulher casada no mínimo um rebento, uma pressão inaceitável para muitas mulheres, até pelos prejuízos na construção de uma carreira sólida numa economia em frangalhos.


Os resultados já são estatisticamente verificáveis. Entre 1975 e 2005 o nível de homens solteiros na faixa dos 30 anos subiu de 14% para 47% enquanto nas mulheres de 8% para 32%. Se o comportamento não mudar, o governo precisará intervir para evitar um colapso. As soluções seriam tentar oferecer salários mais equitativos e diminuir a jornada de trabalho que, exasperante, prejudica a interação social. Mas, como propor diminuição da jornada de trabalho se o país já está economicamente em situação trágica?

ienes

As empresas japonesas estão preocupadas pois o padrão de consumo dessa geração não acompanha os desejos das gerações passadas. Caem as vendas, sobretudo dos produtos de luxo e status, como carros e bebidas. O Japão perde expressão mundial a cada dia, já que o mercado externo se torna cada dia mais hostil (crise na zona do euro e na economia americana, além da concorrência dos coreanos e chineses em ascensão) e o mercado interno se recusa a consumir (tanto por ter menos dinheiro para gastar como por recusa aos tempos de consumismo desenfreado). O governo, então, está desesperado porque isso alimenta um ciclo vicioso. Sem dinheiro as pessoas casam menos, se casam menos tem menos filhos, se nascem menos crianças, como sustentar a idosa população japonesa, a mais longeva do planeta? (isso só está sendo lindo para o setor de cosméticos, que dobrou seu mercado potencial com a adesão masculina em massa ao cuidado pessoal).

Além disso, As escolas japonesas que moldaram tantos funcionários competentes hoje são uma barreira para a criatividade, individualismo e empreendedorismo que poderiam ajudar o país nesse momento.


Quem vai pagar as contas? Ninguém sabe...
Esse cenário desesperador afetou a mentalidade dos jovens. Sem estabilidade financeira, sem conseguir mulher, vendo o Japão na beira do precipício, eles se resignaram. Os herbívoros são a expressão maior da desilusão. São homens menos ambiciosos, incapazes de devolver o Japão ao lugar que lhe coube no passado. Não querem trabalhar até a morte como seus pais (ao ver que o projeto fracassou e ao sentir a ausência deles em sua função paterna), nem sustentar mulheres que depois de casadas racionam sexo mas não param de gastar (Japão sempre liderando a lista mundial dos insatisfeitos sexuais e lanterna na lista de frequência do ato).

São jovens que simplesmente abrem mão voluntariamente da riqueza para não precisar se prender à burocracia e ao sofrimento silencioso dentro de uma empresa. São jovens que já não enxergam mais nexo em ficar exibindo aos demais o quanto eles se esforçam, o quão samurais corporativos eles são, bastando fazer as coisas direito. Há uma negação da veneração dos padrões tradicionais do sucesso. Os herbívoros se recusam a colocar o trabalho na frente de suas próprias vidas, ignorando, por exemplo, as saídas para beber após o expediente, ato essencial para fazer seu nome no mundo corporativo japonês. Eles preferem pagar o preço de não lamber as bolas do chefe. São eles os primeiros responsáveis por mesclar cultura ocidental com os preceitos confucionistas. Essa situação foi permitida pelos pais dos herbívoros que, sabendo da vida dura que levavam, encorajaram os filhos a escolher sua própria profissão, permitindo aos jovens deliberar sobre suas próprias existências. O resultado foi esse.
“Tudo o que queremos sentir é que nosso trabalho tenha um propósito. (...) Fazer um grande esforço para ser algo que eu não sou apenas não é para mim. Eu quero ser natural, apenas ser eu mesmo.” Takeuchi
Homens japoneses

Quero deixar claro que as reivindicações dos herbívoros não são apenas fruto de mimos em demasia, algumas são bem legítimas. Um exemplo tolo. Gostar de comer sobremesa. Sobremesa era coisa de mulher no Japão. Se um homem comprar um pedaço de bolo, o atendente fornece dois garfos pois infere que ele só está comprando para comer junto com a namorada, pois homem não compra bolo. O homem japonês tinha que gostar de bebidas e comidas apimentadas. Hoje eles comem bolo. São fracos por isso?!? Por assumir que gostam de doces? Estão afirmando-se assertivamente do jeito que a sociedade rígida permite. É uma revolução interna e slienciosa que estava sendo esperada no Japão há tempos. O conservadorismo está sendo minado pouco a pouco em suas estruturas. O Partido Liberal Democrata em 2009 teve sua soberania política abalada após mais de 5 décadas de poder ininterrupto, cedendo espaço para um partido de centro-esquerda.

Igualmente o interesse pela moda não tem tanto a ver com frescura, mas como resultado da desilusão com o mundo, com a política, com a economia e com os rumos do país. Na desesperança com o macro, os herbívoros se refugiam no micro, naquilo que conseguem alterar com pequenas ações, sua própria existência. A postura, ao contrário do que aparenta, não é simplesmente hedonista, ela é revestida por uma casca traumatizada.

Cristopher Lasch
Enxergo um paralelo entre a realidade japonesa e aquilo que o antropólogo americano Cristopher Lasch enxergou na sociedade ocidental (da qual o Japão faz parte, no caso) ao definir o conceito de Cultura do Narcisismo. Quando as ilusões levantadas pela contracultura nos anos 60 morreram (de transformar o mundo com ações e engajamento político), e o mundo percebeu que os valores modernos não deram conta de resolver os problemas globais, as pessoas experimentaram um enorme sabor de impotência e desencanaram, cuidando de suas próprias vidas, afinal, era a única coisa que lhes restavam (daí os anos 70 e 80 como expressão do supérfluo). Acompanhe o raciocínio e veja se não encaixa perfeitamente:
“Após a ebulição política dos anos sessenta, os americanos recuaram para preocupações puramente pessoais. Desesperançados de incrementar suas vidas com o que interessa, as pessoas convenceram-se de que o importante é o auto-crescimento psíquico: entrar em contato com seus sentimentos, comer alimentos saudáveis (...) aprender a se “relacionar”, superar o “medo do prazer”.
"A inflação corrói os investimentos e as poupanças. À medida que o futuro se torna ameaçador e incerto, só os tolos deixam para o dia seguinte o prazer que podem ter hoje (...) A auto-preservação substituiu o auto-crescimento como o objetivo da existência (...) Esperam não tanto prosperar, mas simplesmente sobreviver, embora a própria sobrevivência necessitada vez mais de ganhos maiores.”

Outros pensadores da modernidade, podem contribuir ainda na mesma linha de pensamento, como Jurandir Freire Costa (válido ressaltar que eles não são pensadores do Japão, o país apresenta suas particularidades): 

"O indivíduo moderno é um indivíduo violentado, antes de ser narcisista.”
Freire Costa
Portanto, os herbívoros seriam mesmo um problema? Esse comportamento, a alegação de não ligar para o que os outros pensam, seria uma evasiva para justificar a incapacidade de competir pelos melhores postos ou seria uma reação saudável aos excessos do Japão? É natural que o Yamato trate o problema como uma doença social, pois isso afeta a economia e o futuro do país, mas, até que ponto a economia deve guiar cegamente os rumos da nação? Devemos condenar pessoas que buscam seu modo próprio de viver a vida, uma vez que a manutenção da condição de potência mundial do Japão é notoriamente insustentável? Se a reação é excessiva no sentido oposto, não seria um sinal de que a exposição ao trauma foi forte demais, deixando claro que um retorno ao antigo caminho não é a resposta para essas questões? Isso só os japoneses nos responderão no decorrer da História.


Me questiono se, no longo prazo, a situação é realmente tão ruim para as mulheres. Isso pode variar de acordo com o que elas esperam do relacionamento. Antes o homem japonês era o provedor carnívoro, ele trazia muito dinheiro para a casa, mas ficava o tempo todo fora de casa, fazendo hora-extra ou bebendo com os companheiros de trabalho. A família era afetivamente negligenciada (e os herbívoros são filhos desses pais nada presentes). Os herbívoros tem menos dinheiro, mas procuram tratar esposa e família de modo mais humano e presente. Se ela espera um pai de família que banque seus prazeres ao mesmo tempo que a deixe livre para dar seus pulos por aí, é um desastre. Se elas esperam uma adesão do homem ao papel moderno do pai (que progressivamente perde a expressão no ocidente), no longo prazo os resultados poderão ser positivos.

“Os homens japoneses eram machos e sexistas. E negligenciavam suas esposas, então é bom que eles estejam descobrindo seu lado feminino e aprendendo a colaborar.” (Yuko Kawanishi, sociólogo)


Apenas para situar os navegantes, os herbívoros nada tem a ver com os otaku, apesar de serem ambos  faces do mesmo dado (nem falo moeda porque há outros aspectos problemáticos). Ao contrário do otaku que foge da sociedade, mas permanece fazendo parte dela com sua voracidade consumista, o come-planta permanece ligado à sociedade mas privilegia o espiritual em relação ao material, uma postura budista, que faz parte da amálgama cultural japonesa (argumento que joga ao lado do filósofo Morioka).

O medo dos países vizinhos é que o Japão exporte esse comportamento através do gigantismo de sua cultura pop. Obras sobre o assunto já foram traduzidas no leste e sudoeste asiático, inclusive em regiões com o mesmo problema de natalidade, como Taiwan, onde a taxa fica abaixo de 1 (Japão tem 1,3 e já é muito baixo), um dos menores índices da história da humanidade. O mangá Otomen (trocadilho entre otome - menina sonhadora - e men, para simbolizar o personagem herbívoro) já foi licenciado até no Brasil pela Panini. 

Apenas quero deixar claro que o tom do post pode ter soado machista em alguns pontos. Seria natural, pois eu estou falando sobre a visão de mundo desses homens, correspondendo ela com a verdade ou não. Finalizo o post com a citação que eu li hoje por acaso na Folha, numa coluna sobre os pontos positivos do ócio, que cabe muito bem aqui, pois não me espantaria se saísse da boca de um herbívoro. Com a palavra, Karl Kraus:

"Se o lugar aonde quero chegar só puder ser alcançado subindo uma escada, eu me recusarei a fazê-lo. Porque lá aonde eu quero realmente ir, na realidade já devo estar nele. Aquilo que devo alcançar servindo-me de uma escada não me interessa"


Fontes:
The Herbivore's Dilemma (Alexandra Harney)
Low-income bachelors victims of widening 'sex gap'  (Kuchikomi - Japan Today)
In Japan, 'Herbivore' Boys Subvert Ideas Of Manhood  (Louisa Lim)
The rise of Japan’s 'girlie man' generation (Philip Delves Broughton)
Blurring the boundaries  (Tomoko Otake)
Japan's Generation XX (David McNeill)
No Japão, os “herbívoros” enterram a moda dos machões viris e dominadores (Philippe Mesmer)
Cultura do Narcisismo (Cristopher Lasch)
Época Negócios
Reuters

Se você for proprietário dos direitos autorais de alguma das imagens usada no post, me informe que eu retiro assim que possível.

Ocidentalização do Japão: uma semeadura portuguesa

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Inda outra muita terra se te esconde,
Até que venha o tempo de mostrar-se;
Mas não deixes no mar as ilhas, onde
A natureza quis mais afamar-se;
Esta meia escondida, que responde
De longe à China, donde vem buscar-se,
É Japão, onde nasce a prata fina,
Que ilustrada será co’a Lei divina.
(Os Lusíadas, Canto X, CXXXI)

O sistema educacional brasileiro, refém da máfia dos cursinhos, se limita a explorar a História do Japão a partir do seu processo de industrialização na segunda metade do século XIX. Menciona a Restauração Meiji, os zaibatsus e o holocausto nuclear no final da Segunda Guerra, pois caso caia alguma questão sobre o país em algum vestibular, o assunto não fugirá desses três temas. Se alguém teve a felicidade de  conhecer algo a mais, deve isso ao professor ou ao seu interesse particular. Por conta disso, ficamos com uma perspectiva não apenas pequena mas também antiquada da História do velho Yamato. É quase um consenso que o processo de ocidentalização do país se deu quando os Estados Unidos obrigaram o país a abrir suas fronteiras para o comércio exterior em 1853. Era até mesmo no Japão. A Historiografia, porém, está revolucionando alguns pontos nas últimas décadas e o Japão não está excluído desse onda. Estudos, ainda em execução, estão contrariando as verdades de ontem e evidenciando que o processo de ocidentalização não foi iniciado pelos americanos, foi por eles apenas corroborado e escancarado. A primeira semente de cunho ocidental (científica) teria sido plantada no arquipélago milenar pelos portugueses, mais especificamente pelos padres jesuítas, nos séculos XVI e XVII.

É fato conhecido que Portugal, até então dono do monopólio comercial marítimo, foi o primeiro país europeu a entrar em contato com o Japão ainda no século XVI com dois objetivos declarados, comerciais e religiosos, na ânsia de reverter o estrangulamento comercial do Mediterrâneo e cristianizar os novos mundos. Fluíram para o solo nipônico uma infinidade de mercadores lusitanos e missionários da Companhia de Jesus. Historiadores de prestígio, incluindo George Sansom, sempre afirmaram que apesar de Portugal, e posteriormente, Espanha, Holanda e Inglaterra, terem introduzido algumas inovações na sociedade japonesa, como a arma de fogo, a influência ocidental desse período seria um capítulo menor na multimilenar história japonesa, servindo como uma breve nota de rodapé sem expressão, principalmente pela repressão movida contra o Cristianismo no período Tokugawa (1603 - 1868). Essa visão está mudando.

Pretendo, com esse post, mostrar como se procedeu a presença lusitana no Japão, explicar a razão da expulsão dos ocidentais para, enfim, detalhar como os portugueses (e posteriormente os holandeses) deram o primeiro passo na ocidentalização do país. Aviso de antemão, o foco do texto é História, ele pode ficar truncado em alguns momentos e exigir um repertório mínimo do assunto para melhor compreensão. Farei o possível para tornar o texto mais fluido, mas não abrirei mão da carga informativa.



Nossos irmãos da Europa tiveram uma sorte grande quando aportaram no Japão. Esse pequeno país insular e exótico, que conhecia e mantinha relações comerciais apenas com China, Coréia, Índia e algumas regiões do sudoeste asiático, estava numa crise interna muito significativa. Costurado por guerras feudais, em crise diplomática com China e Coréia, o caminho para novos parceiros de negócios estava aberto para os portugueses. Se o comércio de Lisboa foi muito bem vindo, o Cristianismo cunhado no outro lado da moeda portuguesa também foi inicialmente bem recebido. Calcula-se que no chamado Século Cristão, entre 800 mil a 1 milhão de japoneses se converteram ao catolicismo, quando a população do país era estimada em 20 milhões. Estão nessa gama inclusive muitos daimios, alguns apenas para agradar os portugueses, outros abraçando a fé cristã para valer.

Existem várias explicações para a adesão maciça de uma religião importada em um país asiático e milenar. Citarei as apresentadas pelo livro Choque luso no Japão dos séculos XVI e XVII de José Yamashiro. Os líderes militares do país estavam com problemas de relacionamento com os mosteiros budistas e usaram o Cristianismo como uma ferramenta de represália interna; os jesuítas eram intelectuais e defendiam bem o Evangelho em japonês, mantendo uma postura moral irrepreensível, fato que contrastou com a corrupção e acomodação moral dos bonzos budistas na época, onde o Xintoísmo local  estava em decadência e o Confucionismo ainda não havia conhecido seus melhores momentos (O Cristianismo encontrou um hiato na religiosidade local); os japoneses são muito receptivos com as culturas alheias e assimilam sem maiores problemas manifestações estrangeiras; além, é claro, da necessidade de agradar os novos parceiros europeus que não se contentariam apenas com o comércio, sem a pregação da fé cristã. Essa fonte de renda era essencial para bancar as guerras feudais e a unificação do país.



A sorte do Cristianismo começa a mudar nas mãos dos artífices da unificação japonesa. Se Oda Nobunaga foi benevolente com os jesuítas, pois o conhecimento de mundo necessariamente vinha da Companhia de Jesus, Hideyoshi Toyotomi mudou essa postura, decretando a expulsão dos missionários das terras japonesas.

Nesse ponto da História, o Japão já era cobiçado pelas quatro potências marítimas europeias da época. Hideyoshi já estava muito bem informado sobre as reais intenções da aproximação lusitana. Sabia da submissão da China, Índia, Java, Sião e outras regiões às feitorias dos europeus, tinha conhecimento das guerras religiosas em curso no Velho Continente e fora informado sobre a grandeza do Império Ibérico na América. Ele calculou muito bem os riscos de permitir a penetração cristã no país. Se alguns daimios convertidos se unissem às potências dos Bárbaros do Sul (como ficaram conhecidos os europeus), o país, machucado por suas crises internas, corria o sério risco de cair em mãos estrangeiras. Nagasaki já estava em mãos católicas, onde os portugueses gozavam de poder de extraterritorialidade.

Com a chegada dos espanhóis chegaram juntos os franciscanos, agostinianos e dominicanos, entrando em conflito com os jesuítas no território japonês. Mais do que isso, com a chegada dos ingleses e holandeses vieram também os anglicanos e protestantes, tecendo intrigas sobre os católicos com os chefes militares. Pior, navios mercantes da Holanda e Inglaterra vinham preparados para canhonear navegações ibéricas no Mar do Japão. Toyotomi, e posteriormente o clã Tokugawa, não gostaram nem um pouco dessa projeção dos problemas europeus nos seus domínios e exigiram a expulsão de todos os religiosos cristãos. Seu descontentamento com os lusitanos foi alimentada pela recusa portuguesa de fornecer navios para ajudar o Japão na campanha militar contra a Coréia. Nesse período os primeiros mártires foram mortos no arquipélago.

Ieyasu Tokugawa, o general que, enfim, concluiu a unificação japonesa
O regime da família Tokugawa intensifica a repressão aos ocidentais, principalmente nas mãos de filho e neto de Ieyasu. O país se fechou politicamente em 1639, proibindo a saída ou a volta de japoneses, a entrada de estrangeiros e mesmo o comércio externo, reduzido a uma feitoria holandesa (que nesse ponto já levava vantagem sobre os decadentes portugueses) por onde se dava também o ponto de contato com a China. Tudo o que tinha relação com o Cristianismo foi predadoramente destruído. Pessoas eram mortas, livros queimados, crianças batizadas eram passadas no fio da espada. Missionários que continuavam entrando clandestinamente no Japão para pregar a fé cristã, já sabendo do seu trágico destino, eram barbarizados, torturados e mortos. A repressão ao Cristianismo foi implacável, situação explorada pela saga filler do Rurouni Kenshin, a saga dos Cristãos de Shogo Amakusa.

Essa repressão bem sucedida ao Cristianismo criou a impressão de aniquilação da influência ocidental no Japão da época, principalmente porque a documentação do período foi destruída por ordem dos Tokugawa. Isso está mudando, pois muitos documentos jesuítas guardados no Vaticano, Lisboa e Madri estão vindo a tona nos últimos anos. Os portugueses não deixaram no Japão apenas vinho ou igrejas, mas a semente do pensamento ocidental.

Baixa resolução: espada criando a sombra da cruz no encerramento de Samurai X

Os jesuitas eram intelectuais, a despeito da visão deturpada que temos da ciência nos tempos áureos de Igreja Católica (ainda que os enviados ao Japão fossem bem inferiores aos enviados para a China, esses sim, de primeiro escalão educados em Roma). De todos os melhores matemáticos que a humanidade já conheceu, 5% pertenceu à Companhia de Jesus (sendo que ela durou apenas pouco mais de dois séculos). Nas universidades europeias, as quais, muitas das melhores diretamente vinculadas ao Vaticano, se desenvolveu a ciência ocidental.

Esses padres pensadores, como deixa claro o livro de Yamashiro anteriormente citado, apresentaram aos japoneses a visão de mundo ocidental, como o racionalismo, o empirismo e o humanismo, que exerceram enorme influência no pensamento nipônico, ainda preso às visões de mundo tradicionais e míticas dos chineses e indianos. Os japoneses, através dos jesuitas, "encontraram, ainda, pela primeira vez, uma concepção sistemática da natureza como objeto definido do conhecimento humano". E essa postura científica é sim derivada da religião, pois o Cristianismo, como os gregos, crê num universo ordenado, passível de observação e mensuração pela lógica humana (afinal, seríamos feitos a imagem e semelhança de Deus). Para o economista e historiador Thomas Woods, essa concepção ajudaria a justificar o fato das brilhantes sociedades chinesa e islâmicas não terem acompanhado o desenvolvimento científico ocidental. Foram muito inventivos, é verdade, mas o ambiente religioso deles não era favorável para o desenvolvimento maior das ciências abstratas, como a Física. Os árabes, que por muito tempo estiveram na frente do Ocidente, simplesmente estacionaram seu progresso intelectual, enquanto os cristãos deram sequência ao seu labor, seja na Europa, na América ou na China (e quero deixar bem claro aqui que não sou católico, tampouco cristão).

Os japoneses aprenderam com os portugueses - e posteriormente com os livros holandeses - o estágio técnico-científico da Europa. Assimilaram a Física, Astronomia, Geografia (os portugueses dominavam esses assuntos, também pela famosa Escola de Sagres), Medicina, Cosmogonia, além da Arte da Guerra e as Belas Artes da Renascença.

"Não há paralelo, passado ou presente, em qualquer país, para o conhecimento que a Europa tem de astronomia" (Yamagata Banko)


Shuntaro Ito, professor da Universidade de Tóquio, está entre os que defendem essa assimilação da ciência européia, das noções de empirismo, como a justificativa para o imediato desenvolvimento do Japão  após a abertura dos portos forçada pelo Comodoro Perry da Marinha Americana. Isso justificaria a supremacia japonesa na Ásia. Seus intelectuais e homens da ciência já estavam habituados com as noções técnico-científicas que levaram a Europa ocidental e os Estados Unidos para o topo do mundo. Eles conseguiram assimilar as novidades do século XIX com uma velocidade inédita, não perderam tempo com divagações confucionistas. Em poucas décadas de extenuante dedicação para alcançar o Ocidente, atingiram o ponto de potência colonialista do continente e deram uma surra no Império Russo, fato que espantou o mundo. O poderio econômico e tecnológico do Japão dos nossos dias deve, muito mais do que se suporia, à corte de Lisboa e aos padres lusitanos do século XVI (não apenas, pois tinham italianos e espanhóis também entre os representantes da Companhia de Jesus no Japão).

Vejam o depoimento de Nishikawa Joken em 1712 - muito após a expulsão dos ocidentais, e muito antes da abertura política - na obra Discussões sobre os princípios da Astronomia. A semente, definitivamente, estava plantada:
"Os portugueses e holandeses são mestres na arte da navegação. A sua técnica é superior à da China. Embora nós não naveguemos nos oceanos ou até muito longe, temos que admitir que a geografia é um ramo da astronomia, e que por meio da geografia podemos medir e provar muitas coisas em astronomia, por exemplo, o meridiano, o equador, a eclíptica, as estações, as durações da noite e do dia, e que todas estão apoiadas em medidas geográficas." 

Os jesuítas presentes no Japão criaram escolas, construíram Santas Casas, onde tratavam os pacientes (incluindo leprosos) ao modo ocidental, inseriram a cirurgia, ensinando as práticas aos que mostravam interesse. Frequentemente organizavam debates de argumentação lógica com os bonzos e intelectuais japoneses, justamente ao modo de São Tomás de Aquino (profundo conhecedor da Filosofia Grega), um dos maiores intelectuais que esse mundo conheceu. E ensinam nas escolas que a Igreja pregava a ignorância... O primeiro a defender a importância dos estudos jesuítas na ciência japonesa foi Mikami Yoshio, o mais prolífero historiador  japonês da...ciência.

Vaticano
Se você leu até esse ponto, acredito que tenha real interesse por História e/ou ciência. Gostaria de convidá-lo a refletir sobre as versões da História que estão sendo transmitidas a nós através da educação compulsória. Nos últimos 50 anos os historiadores estão revolucionando muito do que acreditávamos saber sobre a Idade Média, mas nas escolas ainda estamos aprendendo que a Igreja Católica é inimiga da razão e da humanidade, que o período medieval é a "idade das Trevas" por causa da Igreja. Especialistas, inclusive muitos ateus e agnósticos, estão dando créditos cada vez maiores para a Igreja como, na verdade, a sustentadora da civilização ocidental.

A Idade Média foi ruim APESAR da Igreja. É evidente que ela teve momentos menos brilhantes, e algumas pessoas usaram a instituição para cometer atos de gosto questionável, mas a realidade está muito longe de corresponder com a visão histórica CONSTRUÍDA concomitantemente por iluministas e marxistas. No caso do primeiro, para suplantar a Ordem Vigente do passado (ainda que fazendo uso de inverdades), no caso do segundo, porque  a antropologia marxista se propõe ateia. Foram os copistas da Igreja que salvaram o conhecimento humano na Europa das constantes invasões bárbaras, vikings e muçulmanas (e que vantagem teriam Igreja e reis ocidentais de limitar o conhecimento quando os inimigos estão voando e te comendo pelas beiradas? Ninguém expulsou os árabes em Poitiers rezando); foi a Igreja que abrigou e sustentou o ambiente acadêmico como o conhecemos hoje. Copérnico era padre, Newton revolucionou a visão humana sobre o Universo para justificar o espaço criado pelo Deus dele. As ciências econômicas não nasceram do nada na Inglaterra, como querem que nós acreditemos, mas sim com os representantes da Igreja na Espanha (Universidade de Salamanca) e posteriormente na Itália. A teologia não é anti-racional! Torno a repetir, não sou católico nem cristão, mas os louros que sejam entregues aos reais merecedores.

Acho que após esse texto você consegue entender porque Okina de Samurai X, ao se deparar com uma carta em escrita ocidental, afirma ser ou português ou holandês. Suas participações na História do Japão talvez mereçam mais do que uma nota de rodapé, quem sabe um capítulo inteiro, conforme os estudos prosseguem com suas descobertas.

Fontes:
Choque Luso no Japão dos séculos XVI e XVII - José Yamashiro
O Kenkon Bensetsu e a Recepção da Cosmologia Ocidental no Japão do séc. XVII - Henrique Leitão e José Miguel Pinto dos Santos
The Introduction of Western Cosmology in Seventeenth-Century Japan: The Case of Christovao Ferreira - Shuntaro Ito


Cyberpunk, Akira e os cenários apocalípticos do entretenimento japonês

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"Qualquer coisa que se possa fazer a um rato se pode fazer a um humano. E podemos fazer quase qualquer coisa aos ratos. É duro pensar nisto, mas é a verdade. Isto não mudará com nós cobrindo os olhos. Isto é cyberpunk."   Bruce Sterling

O ano de 1948 nos brindou com a melhor obra distópica já produzida pelo ser humano, 1984 de George Orwell. O romance parido do temor em relação ao crescente poder e abuso de governos totalitaristas, como o Stalinismo e os regimes fascistas, se junta à títulos como Admirável Mundo Novo (Huxley), Fahrenheit 451 (Bradbury), Laranja Mecânica (Burgess) e Nós (Zamiatin) no bojo dos grandes títulos da literatura distópica, a antítese das utopias. O Fascismo foi varrido dos governos oficiais e nos anos 80 a queda do Comunismo era questão de tempo. O retrato do persecutório Grande Irmão, apesar de ter acertado em alguns pontos em seu prognóstico, parecia ultrapassado e fadado ao mero reconhecimento histórico, mas não sem deixar uma prolífera ninhada dentro da ficção científica. Se a previsão de governos totalitaristas que sufocariam cada passo da vida humana se mostrou equivocada, um novo temor começou a assombrar as sociedades desenvolvidas do planeta no início dos anos 80, e quem capturou o zeitgeist do momento foi o sub-gênero da ficção científica chamado Cyberpunk.

O advento da tecnologia eletrônica, o avanço na biotecnologia, o crescente poder das corporações e o enfraquecimento estatal serviram como argumentos para fixar a tônica da nova percepção apocalíptica que ganhava corpo: "High Tech, Low Life". Cyberpunké o lado alternativo e pessimista que surge na sombra do otimismo desenfreado com o progresso tecnológico alavancado pela informática. Se o homem moderno precisou de uma guerra mundial para perceber que os fuzis cintilavam tanto quanto as máquinas industriais e que a luz do progresso inerentemente gerava sua própria sombra, o homem contemporâneo já sabia o que temer. Alienação, dissolução das fronteiras entre real e virtual, vigilância tecnológica, intervenções corporais e consolidação de uma elite que controla a tecnologia da informação foram os resultados previstos pela ficção que tentou aposentar as visões politizadas da tríade-mestra britânica.

"Quando a exploração do espaço crescer, vão ser as corporações que vão nomear tudo, a Esfera Estelar IBM, a Galáxia Microsoft, Planeta Starbucks." (Clube da Luta - obra não tem nada de cyberpunk, mas compartilha o medo do fortalecimento corporativo com o movimento oitentista)
George Orwell - um dos maiores gênios do século XX

O imaginário cyberpunk foi popularizado pela cultura de massa, em revistas e livros de ficção científica, e está na vanguarda daquilo que a publicação Mondo 2000 chamou de a nova era do humanismo, dos anjos biônicos, da complementação pessoal através de plugs eletrônicos e ingestão de drogas inteligentes, que prometem melhorar nosso desempenho físico, mental e sexual. Ao contrário do que pode se imaginar, o cyberpunk não condena a tecnologia, apenas a aponta como uma ilha cercada de 360º de possibilidades (tecnologia como amoralidade, pode ser usada tanto para curar câncer quanto para dissolver cidades japonesas). O acesso à tecnologia e à informação deve ser um direito de todos, como artefatos de liberdade, comunicação, expressão e diversão, não como artifício de controle por uma minoria. Nesse sentido, agem como "pichadores virtuais". Seus protestos não tomam as ruas, mas o ciberespaço.

O ambiente tecno-urbano, recheado com tecnomarginais, alta tecnologia e caos caracterizam esse movimento nascido nos Estados Unidos, do qual o livro Neuromancer de William Gibson é sua mais popular expressão. Se 1984 nos apresenta a robotização do viver humano, a morte da humanidade pela técnica e a expressão máxima do mundo desencantado weberiano, mas ainda sim com o poder centralizado em panópticos prédios do governo, Neuromancer, curiosamente publicado no ano de 1984, o mesmo do lançamento do Macintosh, nos mostra o real perigo da contemporaneidade: a descentralização do poder proporcionada pelo microcomputador. Os centros de poder se volatizaram e se alçaram à mais pura condição de inacessibilidade.

"Em Neuromancer, a Matrix, o ciberespaço, é mais importante que o espaço euclidiano no qual vivemos e de onde percebemos o mundo. O trabalho do anti-herói Case, como o dos phreakers e hackers, consiste em penetrar redes de computadores de grandes companhias multinacionais. O ambiente cyberpunk, assim, reflete o presente, a globalização do mundo e a internacionalização da economia. Aqui, a aldeia global perde suas fronteiras: a geografia vale menos que o poder do tempo real. De certa maneira, Neuromancer traz para a ficção científica o que já estava nas ruas...(caos urvano, hacking, globalização, falência dos projetos modernos...)"  André Lemos em Cibercultura - tecnologia e vida social na cultura contemporânea
Óculos espelhados, um símbolo do movimento: segundo Sterling,uma construção pertinente aos anos 80, onde as pessoas se escondiam atrás de simulacros, refletindo o mundo ao mesmo tempo em que dissimulavam o olhar
O país onde o cyberpunk mais floresceu foi, sem dúvidas, os EUA. Aproveitou do ambiente cultural rico, do porte mastodôntico de seu mercado editorial e da grandeza do seu ambiente acadêmico, que tomou o gênero como um arauto da pós-modernidade. Não apenas isso, o sentimento cyberpunk necessariamente deveria nascer no país que elevou a eletrônica a condição onipresente como forma de aumentar seu delta tecnológico em relação aos soviéticos. Não é privilégio dos americanos, no entanto, esse ambiente tecnológico e corporatocrático. Estamos falando de anos 80, quando um pequeno país insular no leste asiático sustentou um crescimento econômico, via tecnologia, que fez sombra no PIB americano e amedrontou economistas ianques. É claro, o Japão. Neuromancer ocorre nas ruas japonesas. Os EUA eram vanguarda tecnológica do mundo, mas ainda sim era um país continental, um celeiro alimentício, com longos espaços abertos e naturais. As áreas habitadas do Japão eram tecnologicamente intoxicadas (para citar John Naisbitt, de High Tech, High Touch) e superpovoadas. O arquipélago se projetava como um modelo de futuro para as sociedades mundo afora. Não por acaso, os japoneses escreveram um importante capítulo na história do gênero.

Se no Ocidente a literatura cyberpunk foi mais prolífera (ainda que o cinema tenha títulos expressivos como Blade Runner e Matrix), no Japão os principais títulos estão no cinema e na animação. Existem distinções também no modo de abordagem do gênero e preferências estéticas. O cyberpunk japonês (sobretudo no cinema) costuma ser visualmente mais incisivo, provocando constantes violações à percepção dos espectadores, no intuito de remover as fronteiras que definem a humanidade, a condição humana. Essa experiência de liquefação dos limites é abertamente explorada em cenas de violência extrema, abuso sexual, fetiches bizarros e modificações corporais invasivas; tudo controlado por uma decupagem frenética e por uma trilha sonora perturbadora. A ideia é perturbar mesmo, pois a fusão homem-máquina é mostrada como uma experiência traumatizante. Os japoneses preferem lançar suas mensagens por vias visuais, ao invés de trabalhar com uma narrativa melhor amarrada. Os ocidentais preferem um ritmo mais cadenciado, com um visual menos agressivo.

A temática é outra diferença sensível do cyberpunk japonês para o americano. Enquanto os ocidentais primam pela problemática do ciberespaço, da fusão de corpo e mente no mundo virtual, os japoneses orientam sua ficção no sentido de violação corporal. Em termos mais práticos, a profanação da carne pelo metal. Enquanto os americanos trataram o assunto da mecanização do corpo como meio de criação de super-homens, os japoneses costumam ter uma postura mais crítica sobre esse implantes traumáticos. A almejada tentativa de criar super-homens acaba criando demônios incapazes de auto-controle, destrutivos e imparáveis. Mais para frente a razão disso ficará clara.

Gunnm
Não dá para falar em cyberpunk japonês sem iniciar a conversa com Akira, mangá publicado entre 82 e 90 pela Young Magazine, mas consagrado pela versão animada, o filme de 1988, dirigido por Katsuhiro Otomo. A história ocorre em Neo-Tokyo, a cidade construída em cima dos vestígios da antiga Tóquio, devastada pela terceira guerra mundial e pelo resultado de um programa secreto do governo japonês, Akira. Akira é o lado mais punk do cyberpunk, com seus jovens delinquente juvenis, anarquistas ou simplesmente alienados.

A grande resposta de Akira é mostrar que o progresso técnico e científico jamais deve deixar de ser acompanhado por questionamentos éticos. A fuga do controle do projeto Akira por parte dos técnicos do governo japonês evidencia o perigo de se brincar com o que não se conhece bem, afinal, a falta de controle sobre o projeto Akira se deu pela arrogância dos cientistas que subestimaram a força daquilo que manipulavam. Podemos arquitetar nossa própria destruição a partir do uso descuidado do cientificismo cego.

Agora, se no caso da ficção americana, o medo era um projeto futuro a partir da distorção do real, no caso japonês, o alimento que serve de combustível para esses temores foi a lembrança do passado recentemente doloroso. Seu povo foi cobaia de experimentos nucleares. A característica mutante do cyberpunk japonês é uma evidente consequência das chagas herdadas da rosa radiativa, estúpida, inválida. Tetsuo (personagem do Akira, não do filme Tetsuo) passa a sofrer estágios de mutação até perder efetivamente o controle sobre suas propriedades mutantes. A intervenção governamental para criar um super-homem via manipulação psico-cinética fugiu do controle de pesquisadores e cobaia. O povo nipônico, diariamente informado sobre as aberrações e os sofrimentos causados pela cortina nuclear, é (era) decerto mais inclinado a olhar o lado negro da intervenção da ciência no corpo humano.



Não só de animação vive o cyberpunk japonês, pelo contrário, talvez no cinema encontremos seus títulos mais viscerais. Diferente dos americanos, os filmes japoneses do gênero foram feitos com baixíssimas verbas e atores desconhecidos no cinema B, ganhando status de cult apenas após a consolidação do gênero. Entre seus principais títulos temos: Tetsuo - o homem de ferro, Pinochio 964, Rubber's Lover, Tetsuo II - Body Hummer, RoboGueisha e I.K.U. Vou introduzir os principais.

Em Tetsuo, ao mostrar o gradual processamento de transformação de homem em máquina, o diretor nos traz a visão de tecnologia convertendo homens normais em bestas metalizadas que, conformadas com sua condição, passam a usá-la com objetivos escusos de poder pessoal. Expõe uma visão crítica de crer na condição natural dos homens como seres animalizados, que precisam da intervenção técnica para evoluir para a aspiracional verdadeira condição humana. Uma cena particularmente peculiar é a violação anal de um homem por uma mulher falicamente turbinada pelos metais. Os homens 'naturais' sodomizados, rendidos, entregues aos super-humanos.

Tetsuo
Rubber's Love nos brinda com a proposta de torturar o ser humano, expondo-o a situações extremas para que ele desenvolva capacidades psíquicas mais fortes. "O poder de dominação vem quando a angústia mental excede a tolerância física”. A película explode em violência física e sexual. Já Pinocchio 964 abusa do escatológico, com um show de vômito, ferimentos e fluidos humanos para todos os lados, justamente para evidenciar o conflito cyberpunk no corpo. O anime Ghost in the Shell, influência declarada dos diretores de Matrix, já se alinha mais com as narrativas americanas.

Ghost in the Shell
Cenários apocalípticos na ficção japonesa não são novidades, a diferença do cyberpunk oitentista é que ao invés de focar na destruição, ele foca nos sobreviventes rastejando pelos escombros, num mundo que emerge hostil e perigoso. Nos anos 50 e 60 a destruição viria dos céus, numa época onde o Japão assistia indefeso os embates retóricos de EUA e URSS (e a expressão disso vai do jogo Space Invaders aos animes Uchyu Shonen Soran e Uchu Ace). Já vi gente defendendo que os materializados anos 70 resultaram numa ficção que opunha uma visão de fim de mundo entre terrenos e ectoplasmas (mas eu pessoalmente não conheço nenhum exemplo). Nos anos 80 vieram o cyberpunk e o recrudescimento das tendências espirituais japonesas, fato que teria alimentado seitas como a Aum, verdade Suprema, que atacou o metrô de Tóquio com gás sarin em 1995. É uma verdadeira overdose de destruição e apocalipse.

Akira
Evangelion - segundo impacto

Paprika
Em Dragon Ball, nem o planeta dos outros fica em paz

cyberpunk já foi considerado morto anos atrás, mas é inevitável que muitos dos pontos por ele levantados se concretizem num futuro breve, como vemos hoje alguns acertos de Orwell e Huxley, ainda que a moldura maior esteja vencida. Mais especificamente sobre o ponto insistentemente usado como pauta na ala japonesa, a modificação corporal e a onipotência da ciência são assuntos que assustam qualquer um que pense nisso por alguns minutos.

Rubber's Lover

John Naisbitt, no já citado livro High Tech, High Touch nos alerta que a humanidade está perdendo a capacidade de distinguir o que é natural daquilo que é artificial. De usar aparelho ortodôntico a subir o Everest usando balões de oxigênio, seus vários exemplos realmente nos deixam em dúvida sobre a natureza técnica dos nossos corpos. Estamos sendo paulatinamente preparados para aceitar naturalmente progressivas alterações em nosso corpo, rumo a uma "ciborguização". Acha coisa de ficção científica? O genial neurocientista Miguel Nicolelis, brasileiro, está sendo verdadeiramente cultuado na comunidade acadêmica americana por seu envolvimento no projeto, da Universidade Duke, de exoesqueleto que converterá sinais cerebrais em movimentos, e caminha para, quem sabe, ser o primeiro compatriota agraciado com um prêmio Nobel. Se alguém se interessa pelo assunto, seu livro "Muito Além do Nosso Eu – A nova neurociência que une cérebro e máquinas" foi lançado recentemente no Brasil pela Companhia das Letras. Capa da revista Science, com seu nome na lista do MIT sobre as 10 tecnologias que vão mudar o mundo, Nicolelis já está sob a mira da academia sueca. Segundo o site da Abril:

"Formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o cientista paulistano mudou-se para os Estados Unidos em 1989 e desde 1994 dirige o laboratório de neuroengenharia da Universidade Duke. Seu prestígio só cresceu nos últimos anos, principalmente graças às pesquisas com o que ele batizou de interfaces cérebro-máquina (ICM). “São sensores capazes de captar a atividade elétrica dos neurônios, decodificá-la, remetê-la a artefatos robóticos e depois de volta para o cérebro por meio de sinais visuais, táteis ou elétricos”, explica. 
Na prática, as ICMs transformam os pensamentos em comandos digitais que as máquinas podem entender. O exoesqueleto imaginado por Nicolelis vai funcionar dessa maneira. Chips minúsculos colocados no cérebro ou na medula do paciente vão captar os sinais gerados pelo cérebro e transformá-los em comandos como “mover o pé direito” ou “chutar a bola”. “Os quadriplégicos continuam pensando nos movimentos. Vamos transformar essa intenção elétrica em movimento”, afirma o cientista, confiante."

O palmeirense (é claro) Miguel Nicolelis, possível primeiro brasileiro a  ganhar um prêmio Nobel
No escopo das alterações físicas ainda se adicionam as cirurgias plásticas e os implantes, mas outro tipo de modificação corporal preocupa os demais. A potencialização do intelecto humano por fármacos. Hoje, inúmeras pessoas já se drogam com Ritalina ou outros remédios - desenvolvidos para tratar de problemas como o déficit de atenção e Hiperatividade - para obter melhor desempenho cerebral, sem conhecer os possíveis danosos efeitos colaterais do ato. E a tendência é o crescimento vertiginoso dessa prática nesse mundo competitivo, onde todos precisam ser melhores a todo o momento, e onde os pais, preocupados, procuram oferecer aos filhos as melhores possibilidades de desenvolvimento. Para não entrar na questão ética da questão...

Ah, mas não é maravilhoso que paraplégicos possam voltar a andar? Claro. É igualmente maravilhoso que partículas nucleares ajudem a curar uma boa taxa de pessoas com câncer, mas não podemos perder de vista que tecnologia é possibilidade, e Hiroshima/Nagasaki, espero, nunca sairá de nossa memória como uma dentre elas. Como Akira nos ensina, tomemos cuidado. A tecnologia inebria, seduz...quando funciona. Quando não, odiamos ela mortalmente na mesma medida que dependemos dela. Que a ética guie nossos passos. Nesse sentido, não teremos nada a perder.

Fontes:
Cibercultura - tecnologia e vida social na cultura contemporânea (André Lemos)
High Tech, High Touch (John Naisbitt)
O homem é uma máquina é um homem, parte 1 (João Luis Amorim)

Suicide Club: análise

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"Mesmo que você pudesse morrer, a sua ligação com o seu namorado iria permanecer. Mesmo que você pudesse morrer, a sua ligação com o mundo iria permanecer. Então, por que vive?"

 Um dia como outro qualquer no Japão. Uma linha de metrô. Na espera do trem estão estudantes conversando, exaustos homens de negócios se esforçando para permanecer em pé e pessoas teclando em seus celulares. 54 garotas de diferentes colégios chegam juntas compartilhando risos e prosa, se colocam de mãos dadas na linha de segurança e...se jogam na frente do trem que, na impossibilidade de parar, já que deslizou pela "graxa humana", levou todas dessa para uma melhor gerando uma verdadeira onda de sangue. É com esse início antológico que Sion Sono, consagrado diretor de pornografia gay (essa triste porta de entrada para a maioria dos aspirantes a diretor de cinema), nos oferta um filme muito menos bobinho do que a maioria das pessoas acha. Sobretudo a auto-intitulada crítica especializada (!) de cinema na blogosfera brasileira. O filme tenta ser mais cult do que realmente pode, mas não tenho dúvidas de sua substância que passou despercebida pela maioria presa em detalhes do roteiro. Já sabe, nesse blog tem spoiler e a análise só fará sentido para quem assistiu o filme.

Primeiro quero falar do que é ruim no filme, pois esse ponto ajuda a determinar a falta de abertura das pessoas para enxergar qualidades na obra. Ele é mal produzido. As atuações são fracas, as cenas de violência são fakes, enfim, ele é tosco. O público em geral quando se depara com um filme japonês com cenas muito over - e mal feitas pela verba pequena - já acha que é trash e se concentra apenas no mistério policial da trama. Nesse caso específico, focam sua atenção nos agentes da polícia tentando desvendar se os casos de suicídio no metrô, bem como os que o sucedem, foram incidentes criminosos, uma histeria coletiva ou uma coincidência. Se dão mal, pois o roteiro é confuso e se preocupa menos em deixar claro as partes factuais da trama do que a ideia que elas frutificam. Terminado o filme, classificam-no como mero nonsense japonês de segunda categoria, pois o centro da história fugiu-lhes a percepção.


O outro ponto que não me agradou foi o perfil esquizofrênico da história. Nos primeiros minutos, no hospital, o filme pinta como um suspense/terror com tons sobrenaturais e, sem mais nem menos, deixa isso tudo de lado rumo a um nonsense cult. Percebemos apenas na sequência da trama que as visões do guarda noturno são resultados do seu stress, por dormir pouco e estudar muito. O problema é misturar gêneros, a impressão é de um diretor que quis, na oportunidade que teve, mostrar sua destreza em trabalhar nas diversas frentes daquilo que chamam de cinema pop japonês.

A ideia central do filme é orbitada por vários pontos relevantes na existência japonesa, mas que passam longe de formar o grosso da película. E justamente esses elementos secundários que são - quando são - levantados como pontos positivos pela tal 'crítica especializada'. A virtualização da vida no Japão é explicitada na letra da música do grupo infanto-juvenil Dessart que está envolvido na trama de suicídios:

"Mande-me um e-mail. Rápido! Clique na tecla enviar. Não vê que eu espero ansiosamente? Mande-me um e-mail. Para o meu celular ou PC, estou pronta para te dizer que estou esperando por isso. Mande-me um e-mail. Eu quero que saiba que os amigos partem, e o seu é o melhor olá. Mande-me um e-mail. Eu sei que nunca soube, o que eu sinto por você, isto é real, eu preciso ouvir você agora ou morrerei"


A cultura de massa anulando a comunicação interpessoal é outra situação destacada no filme quando a filha do detetive Kuroda impede o início de uma reunião familiar porque as Dessart estavam na televisão. A alienação, apresentada na forma de exemplos, é o caminho para a compreensão maior do filme. A menina, inebriada pela propaganda do chocolate da sua banda favorita, pouco liga para a mãe que decepava os dedos na cozinha. Seu irmão, entretido por um Game Boy, nem para a propaganda ligou. No entanto, a alienação realmente condenada pelo filme não é essa do "o sistema está podre" - ainda que também esteja presente - e isso poucos captaram.

O filme não é uma tentativa de retratar a problemática do suicídio, sobretudo o juvenil, do Japão. Muito menos é um incentivo ao ato, como defendem alguns cidadãos que assistiram com quilos de atenção (haha). O filme é na verdade um chamado à vida. Sua premissa é muito interessante: se você morrer, você continuará ligado às pessoas que ficaram na Terra, já que você em algum momento se conectou a elas, você as mudou e por elas foi modificado (isso simbolizado pelos macabros rolos de pele). Agora, se você vive apenas em função dos outros, se você acha que felicidade só é possível quando compartilhada, se acredita que a condição para a vida bem vivida é acha a outra metade da laranja, por que diabos você vive? Se sua vida só tem valor em função de terceiros, ela não tem valor em si. Então se mate, sua conexão com o mundo continua...

"Você ainda possui a conexão com você mesmo?"

Calabocaêê, to vendo tv...

É dessa alienação que o filme trata, a auto-alienação! O suicídio foi o caminho apresentado para aqueles que viviam em função dos desejos de terceiros, é apenas uma elaboração criativa para mostrar a morte em vida daqueles que não tomam as rédeas da própria existência. A jovem namorada do suicida que pulou do prédio não se matou mesmo tendo seu retângulo de pele extirpado. Ela estava conectada com as outras pessoas (sua pele iria pro rolo), mas ela igualmente estava conectada com seus desejos, não havia razão para se matar. Evidente que o diretor deu uma floreada na ideia com aquela "instrumentabilidade humana infantil" no palco, mas a música final do grupo Dessert amolece bastante o nonsense e torna as coisas mais fáceis para o espectador, e à luz do que eu acabo de mencionar, parece bem menos bobinha, não?

         "A nossa última mensagem para vocês é: Vivam como quiserem!"
"Pouco sabíamos o quão pouco realmente sabíamos
Todos os dias apertando as teclas que executam milhões de comandos
Se pelo menos dissesse exatamente o que se passa na sua cabeça
e dissesse realmente como se sente
Talvez eu pudesse te dar a mão
(...)
Engane a si mesmo e comece outra vez do princípio
No entanto, poderá sentir-se impotente, às vezes
ou temer um feiticeiro malvado que tem a sua vida nas mãos
(...)
Juntos poderemos iluminar a escuridão
Ilumine-se com vida, ilumine-se com amor
Vamos encontrar a vida de novo"


Por trás da letra infantilóide, típica de uma banda composta por menininhas de 12 anos do star system japonês, falando de amor e otimismo, está a tônica simplificada do filme. Ainda que você pouco entendesse da estética floreada do Sono, ele te deu a bula no final. O filme não apenas expõe o perigo da auto-alienação ("pouco sabíamos" ou "apertando teclas que executam milhões de comandos", essa letra é sobre adultos), mas também da alienação com os próximos. No telefonema para o detetive Kuroda, a criança pigarrenta também menciona:

"Por que não conseguiu sentir a dor dos outros da maneira que sente a sua? Por que não conseguiu suportar a dor dos outros da maneira que suporta a sua? Você é o criminoso. Só consegue pensar em si mesmo. É um merda."

Ter o controle da própria vida não exclui a importância da relação com nossos pares. Daí os versos mais coxinhas da música. Conecte-se a si mesmo, e mesmo com a sensação de impotência, tome-a do feiticeiro malvado, mas juntos poderemos ficar melhor ainda. No Japão esse senso coletivista faz mais sentido.

Mangá Jisatsu Circle conta uma história bem diferente
Então você me pergunta, mas por que crianças pequenas por trás disso? Se elas eram controladas por algum manipulador, se eram super dotadas ou coisa do gênero é discussão que não faz sentido. Se a obra não ilustra, nem ao menos vaporiza algo que nos leve a cogitar alguma maquinação maior, as crianças devem fazer sentido em si próprias. A minha leitura tem um viés psicológico. Crianças são seres mais narcisistas, mais conectadas aos seus desejos pessoais e imediatistas, enquanto adultos são resignados e racionalmente inseridos num papel social. As crianças seriam um chamado para uma certa regressão para a individualidade, para seus anseios narcísicos. O coletivo é sim importante, mas não ao custo daquilo que se é. Passar todos os dias apertando teclas que executam milhões de comandos sem informar - ou mesmo perceber - que isso pode não ser agradável é um grave erro. Mas isso é um belo chute interpretativo.

Foi isso o que entendi como coração da obra, o resto é confete, pano de fundo. Outro ponto secundário que merece destaque é a influência da mídia nas pessoas, melhor, não apenas da mídia, as pessoas são facilmente influenciáveis por qualquer coisa que seja. O contágio e a necessidade de platéia no ato do suicídio são trabalhados de modo competente quando adolescentes ouviram histórias do Clube do Suicídio e imitaram o ato. Na inexistência do clube, alimentada por boatos, uma febre social toma forma.

Isso é importante para os leitores desse blog. Do jeito que falo, parece que o Japão é um país totalmente doente, com pessoas problemáticas e coisas erradas. Coloquem tudo o que falo em perspectiva. Existe um fenômeno herbívoro? Mas até que ponto é consistente? Ele se alimenta de boatos? É um modismo regado pela cultura de massa e pela imitação, um problema real, ou as duas coisas? Esse problema, meus caros, eu passo pro receptor.

Onani Master Kurosawa e o coletivismo japonês

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"O encerramento. A explosão. O nada"

Nunca julgue um livro pela capa, nos ensina a sabedoria do senso comum. Gostaria de apresentar uma modificação dessa ideia. Nunca julgue uma obra pela sinopse. Exatamente, essa foi a primeira lição que aprendi com Onani Master Kurosawa, título publicado exclusivamente na internet em quatro volumes, seguramente um dos melhores mangás que eu já tive a oportunidade de ler. Afinal, qual é a sinopse dessa história? Kakeru Kurosawa é um enfadado estudante ginasial de 14 anos que segue um ritual rigorosamente todos os dias letivos do colégio: Se dirigir a um banheiro feminino abandonado da escola e se masturbar pensando em alguma colega de classe. A palavra ritual não caracteriza apenas a periodicidade do ato, mas sua preparação. Da escolha da pobre vítima do dia ao paranoico deixar-se levar ao banheiro após uma estratégica esquiva para a biblioteca. E então você, como eu, como todo mundo que ouve falar desse mangá pensa, WTF, por que caralhos eu vou ler um mangá sobre um cidadão que se masturba? As opiniões positivas dos leitores, no entanto, eram quase unânimes. Blogs como o Mangás Cult e o Mangás Underground colocaram suas reputações em jogo tecendo elogios ao doujinshi (sim, é um título independente). Pensei, quatro volumes, por que não? Cansei de me surpreender com os japoneses... A sinopse que afugenta no primeiro momento, atrai quando alguém fala bem. Como assim é bom? Preciso conferir com meus próprios olhos!! Se me falassem que um doujinshi de samurais é excelente, provavelmente não teria lido, ao menos não tão prontamente. Sobre onanismo não dá...

É claro, o mangá não se limita, nem centraliza a história no onanismo do rapaz. Quebra a cara quem espera uma história pornográfica (as cenas não são mais fortes que Love Hina, por exemplo) ou uma comédia pastelona; quebram também os que chegaram amplamente desacreditados nas páginas iniciais e de repente se viram presos à trama, incapazes de deixar a leitura para o dia seguinte. O título é profundo, levanta questões pertinentes e provoca um envolvimento inesperado no leitor. O cidadão que entra na história esperando uma piada sai alterado da experiência. Pretendo introduzir os pontos factuais que dão corpo ao mangá para depois fazer minha análise pessoal. A partir do exemplo, falarei um pouco sobre a tal da nação coletiva japonesa, traçando paralelos com o mangá, assim é possível compreender melhor a força da obra no país de origem. Rola spoiler, se você quiser apenas ler sobre o coletivismo, vá direto ao parágrafo "São vários os fatores que justificam essa sensação...", mas não sei se fará muito sentido descolado do exemplo. (não esqueçam, é mangá, falas da direita pra esquerda!)


Kurosawa é daquele tipo de pessoa não muito numeroso, mas sempre representado em qualquer sala de aula mundo afora, principalmente no Japão. Um jovem nitidamente inteligente, que obtém boas notas apesar da pouca dedicação aos estudos, um observador nato, munido de inteligência interpessoal diferenciada. Kurosawa, no entanto (ou por conta disso), se considera auto-suficiente. Os outros são idiotas, estúpidos, de se jogar fora, não merecem sua atenção. O contato verbal com os colegas é paulatinamente evitado, ele não se sente conectado aos colegas de classe, despreza os companheiros e nunca ouviu sinos badalando delicadamente em seus ouvidos ao ver alguma garota. Sua frágil teia social não foi construída com fios de palavras, saliva, afetos, é um mero gato, uma grotesca gambiarra feita de sêmen. O fio que ainda o liga aos demais é a atração sexual que despertar por suas colegas de classe e nada mais. A cada novo ano, pouco lhe importava o remanejo dos alunos por parte da escola para formar novas classes, não tinha amigos a perder, sua única preocupação era cair na sala com o maior número de monumentos possíveis que lhe servissem de inspiração para seu vício odioso.

O acaso brindou a turma de Kurosawa com três Helenas que faziam qualquer um perder o controle apenas pelo esboçar de um sorriso; é fato que também lhe amaldiçoou com a presença do maldito otaku Keiji Nagaoka, que insistia em tentar estabelecer contato com Kurosawa apesar do consecutivo desdém com o qual era recebido. Kuro-kun, o niilista, não tinha sonhos, objetivos, deixava-se levar ao sabor dos ventos, não queria ser nada e não se preparava para o momento em que descobrisse o que gostaria de fazer. Sua vida resumia-se a tolerar os imbecis que o cercavam, ler livros e, redenção abençoada, poder homenagear alguém no banheiro abandonado.


Num certo dia Kurosawa observou abismado um ijime (bullying no Japão) coletivo contra Aya Kitahara e por tabela também contra Pizza-Ta. Causava-lhe espanto o comportamento hostil das duas iniciadoras da agressão, a participação indireta de Naito que agia mal enquanto protegida pela zona de conforto, e a conivência da platéia que generalizou o assalto protegidos pela ativação da massa humana, esse monstro de carne que anula a individualidade e a responsabilidade. A participação pública, seu silêncio apesar de perceber os engendramentos do caso, o choro da infeliz e o riso dos agressores fomentaram ojeriza nesse inteligente e infeliz rapaz. O mestre do onanismo resolve se vingar das duas agressoras (ou da humanidade) e simplesmente ejacula em seus uniformes enquanto a sala está praticando educação física (no Japão existe o uniforme separado de ed. física, ele fez nos uniformes de marinheira que estavam guardados nas bolsas das meninas). Kitahara, a vítima do ijime, descobre o responsável pela sujeira e parte para a extorsão. Em troca do silêncio, Kurosawa deveria infligir sua punição divina a outras pessoas que a atormentavam...

Sem muitas opções, mas também pouco incomodado com o serviço que lhe foi outorgado, Kurosawa se envolveu em novos incidentes. Em todos eles, seja sujando os pertences alheios, seja molestando a parede do banheiro feminino, Kurosawa traça tons apoteóticos para seu vício, onde o resultado do trabalho nos é apresentado como uma espécie de Cólera do Dragão do protagonista, que, virtuoso, ataca as meninas da sala com o único golpe que lhe pertence, esses demônios a serem derrotados e expurgados.

"mas que garota arrogante, agindo como se fosse muito poderosa, mas na minha mente ela é uma mera escrava que dá prazer ao meu pênis. É como se ela tivesse nascido com o único propósito de me servir"



Não sejamos simplistas, o mangá não é sobre um tarado. É sobre um infeliz auto-centrado, incapaz de estabelecer ligações significativas com as pessoas, procurando nas suas fantasias (o que lhe resta) notoriedade e pertencimento social, sem o qual ninguém vive. Sua ligação com as meninas da sala é restrito aos seus esboços mentais fantasiosos e esvaziar-se significa exorcizar esses seres indecifráveis de pele alva do seu solitário caos interno. Ejacular por aí é sinônimo de cuspir no mundo que não sai da frente, que não é como deveria ser, que perverte a pureza ideal. A masturbação como expressão do esvaziamento que anula momentaneamente o isolamento e a ejaculação como rejeição do mundo como ele é são apenas construções metafóricas. Quer coisa mais repugnante que algo envolvido com o fluido sexual masculino? Podemos inferir a visão de mundo de um cidadão que o ataca e se vinga com ejaculadas. Ele faz na parede ou nos pertences das colegas de classe o que o mundo e seus habitantes supostamente fazem com ele. Humilha-os com o que há de mais asqueroso a disposição.

"O líquido branco que desliza pela parede desse banheiro público é a prova de que eu a violei. O sorriso sem preocupações que ela dá para qualquer estudante sem cobrar nada... eu retribui esse sorriso da pior maneira possível..."
O banheiro como porta de entrada para esse mundo. Só há vida na fantasia.

Sua perspectiva de vida era tão minúscula que quando ele se apaixona por Magister Takigawa, tem dificuldades de diferenciar o sentimento do seu vício doentio. A gentil Takigawa, porém, começa a namorar o otaku Nagaoka, que ele, Kurosawa, por tanto tempo ignorara e desprezara. Sua raiva ganha contornos psicopatas e, rejeitado, ejacula no caderno da Takigawa. Novamente profanando algo belo, agora especial,  para alcançar algum esvaziamento, uma paz interior. Takigawa não era qualquer uma e o desgosto canalizado era forte demais para esvair-se com um golpe final. Como Kitahara, que deu alimento para sua raiva usando Kurosawa para atingir não apenas aqueles que a humilhavam diretamente, mas também todos com os quais não ia com a cara, Kurosawa se tornou igualmente destrutivo, alimentando seu rancor a partir da punição fálica.

"inveja, ódio próprio, luxúria; eu perdi a noção de tudo. Desde aquele dia eu só estive flutuando. Apenas olhando para a paisagem"


O cão raivoso aciona sua metralhadora giratória - literal e metafórica - e passa a atingir mais conhecidas, tendo como auge a trollada da flauta (aula de música, a garota foi tocar sua flauta, percebeu algo estranho e...enterrou sua vergonha com sete palmos de silêncio). "Uma vez que a pessoa começa a descarregar sua raiva, se torna muito difícil de parar", afirma o personagem. Me pergunto, como ele esperava ser gostado se simplesmente não se mostrava? Takigawa no passado era como ele, uma pessoa reclusa, mas percebeu a inadequação do comportamento e procurou mudar. Não se alterou como da água para o vinho, a promessa oferecida em oito passos pela literatura de auto-ajuda.

Nesse sentido a história tem um pé enraizado na realidade, pois a auto-estima de Takigawa foi minada pela alvejada recebida. Percebemos que ela, na real, continua a mesma pessoa insegura e retraída, que mesmo assim colhia frutos de uma mudança consciente de comportamento. Muitas pessoas buscam as terapias diversas oferecidas pela Psicologia com um propósito transformador. Elas querem sair do consultório como outra pessoa, como se traços de personalidade fossem algo mutável e problemático a ser substituido. Sou tímido e quero me transformar em extrovertido. Ao contrário, a terapia busca trazer qualidade de vida apesar das limitações, procura ensinar a conviver melhor com o que nos é imposto e realizar coisas apesar delas. A auto-ajuda nos diz que somos capazes de mudar tudo, basta querer e tentar o bastante (ainda por cima oferece fórmulas universais, válidas para todo mundo!). Não precisa ser um gênio para perceber o patético desse discurso. Além de ignorar peculiaridade individuais, ignora determinantes que não estão no nosso controle, como as outras pessoas, traços genéticos, economia etc. Nesse sentido, Takigawa é uma personagem muito bem construída, forjando uma expressiva vida social pela boa vontade, sem negar o que se é, sem se tornar um super-homem. Continua fraca, mas faz o seu melhor para ser uma pessoa agradável. (sim, odeio auto-ajuda, não por ser um pedante amante da alta literatura, mas por enxergar que esse lixo mais angustia que ajuda. As pessoas enganadas, é óbvio, não realizam o prometido e se sentem integralmente culpadas pelo fracasso que muitas vezes não lhes cabem totalmente)

Você deságua em mim e eu oceano

Kurosawa muda. Percebe a pequenez da sua perspectiva, confessa ser o autor da pouca vergonha para a sala toda. É espancado, ignorado, ameaçado, mas enfrenta as intempéries em nome de abertura dessa visão. Enfrenta isso e passa a procurar seu espaço no grupo social. Procurar, não vai cair do céu! Nesse sentido o mangá novamente é muito feliz em trazer alicerces firmes do mundo real. Como se dissesse, meu amigo, você passou a porra da sua vida inteira ignorando e desprezando os outros, escondendo suas qualidades, por que diabos você acha que só porque você quer, do dia para a noite, o mundo lhe abraçará? Primeiro você vai ter que derrubar o muro que construiu, pavimentar estradas, e só então almejar colher um ou outro fruto, costurar novas teias de palavras, saliva e afetos. Não todos os objetivos desejados, pois, novamente, isso ignora a livre atuação das demais pessoas, mas alguns certamente. Kurosawa não desistiu depois de apanhar, ser jurado de morte, ser ignorado, ter sua mesa pichada, enfrentou tudo sabendo do preço a ser pago. Foi por isso recompensado...não desistiu no segundo dia para voltar a ejacular no mundo apodrecido que não tem olhos para si. Assim como Nagaoka foi recompensado com uma bela namorada, apesar de ser um otaku, por não fugir da vida! Já Kitahara virava pó enquanto se convertia em combustível de cólera.

O mais legal é que o mangá inclusive traz a perspectiva de castração simbólica. Quando Kurosawa, em sua nova vida, flerta com Sugawa, ele inicialmente compreende o fato (ao menos na visão dele) de que para ela, ele não passava de um conhecido e nada mais. Querer não é poder, por mais que incomode, senhor narcisista. Amadurecer é abrir mão da nossa sensação infantil de onipotência. Portanto, abraçar o real não quer dizer possuir o mundo em suas mãos, ele nunca sai da frente, nos frustra e nos deteriora instante a instante, mas é melhor lutar por algumas quimeras que jogar tudo pro alto, não? Ótimo não converter o protagonista num super-herói.

"No dia do nosso último plano eu vi. Só uma mera olhada. Algo que eu não poderia ver enquanto trancado dentro dessa cabine o tempo todo. Era uma cena linda, mais bonita do que qualquer cena que eu sonhei dentro da minha cabeça... Afinal, sou só um garoto no banheiro feminino brincando de Apanhador no Campo de Centeio"
Aquele momento de lucidez quando se percebe conviver com simulacros

Relendo, creio que falhei miseravelmente em transmitir a qualidade da obra, mas se você leu o mangá, tenho certeza que sabe do que estou falando. Um título amador que deixa no chinelo muito roteirista consagrado do meio editorial japonês. O mangá consegue transmitir sensações de modo incrível, e a mesma imersão que senti ao ler - incapaz de largar antes do término - foi igualmente percebida pelos demais blogueiros que leram. A decupagem dos quadros e o foco expressionista auxiliam nessa transmissão. O desenvolvimento dos personagens, apesar de apenas em quatro volumes, é adequado e profundo, bastante verossímil, com exceção do final que nos traz alguns clichês como a onipresente tsundere, mas nada que incomode. Kurosawa e Kitagawa não apenas não deixaram de ser o que eram como pagaram o preço da mudança. Sugawa, uma das meninas que humilhavam Kitahara, se arrepende dos atos ginasiais e até se coloca a disposição para se desculpar com ela, outro ponto de amadurecimento.

Pessoalmente, encerraria o mangá de modo diferente. Kurosawa e Kitahara tiveram destinos semelhantes, mostrando que não importa o nível de isolamento, é possível recolher os cacos e recomeçar - uma mensagem importante para esse Japão. Eu optaria por um destino trágico da Kitahara, evidenciando que é possível mudar, mas que também é possível, e é inclusive mais fácil e confortável, ficar se retroalimentando de bosta até estourar ou murchar completamente, situação da maioria dos casos reais. Um ser destrutivo, ejaculando a esmo contra o mundo, para usar a metáfora desse mangá.


"No final, tudo o que eu quis era simplesmente não ser odiado por todos, e então, dentro dessa cabine, eu cedi aos desejos de ter conexões com as pessoas."

No fundo, a série mostra os perigos de se enclausurar dentro da própria mente. O ser humano é de natureza social, e a sociedade, lógica e cronologicamente anterior a ele, também cobra isso de cada rebento. Em outras palavras, não é um mangá de masturbação, é um mangá que sinaliza o perigo da fuga do real e consequente virtualização da vida. (o que me deixa puto é que eu sinto mais substância nesse título que eu não consegui captar...compartilhem opiniões e novas visões nos comentários). Pelo tocante escatológico, considero OMK uma obra melhor que o ero-guro de Suehiro Maruo.

Você deve pensar: Esse xarope só sabe falar a mesma coisa dos japoneses? Onani Master Kurosawa, Kimi Ga Nozomu Eien, Suicide Club, Paranoia Agent...tudo aqui é uma denúncia de isolamento pela fuga do real?!? Não apenas, mas também. Tomemos o termo virtualização da vida como um platonismo que domina o pensamento japonês atual. Virtualização não se dá apenas no videogame, nos animes, mas também na nossa fantasia, o princípio é o mesmo. Insatisfação com o real e refúgio imaginário, onde as coisas são puras e ideais. Kurosawa era um platônico nato, buscando a mulher ideal para se conectar na sua fantasia, compensando assim esses rascunhos de vagina que o desprezam no mundo real, esse também, um mero croqui povoado por estúpidos rabiscos de amigos. Takigawa estava para Kurosawa como o mundo das ideias está para Platão, o Universo ordenado para Aristóteles, o Paraíso para os cristãos, a sociedade sem classes para o comunista, a qualidade de vida para o capitalista... platonismo puro. O real é uma merda, o bom está no porvir, então eu nego a vida no mundo (em outras palavras, nego o AGORA) em nome da projeção ideal de mundo. Acho que Nietzsche ejacularia no Japão de hoje... (aliás, acho que em qualquer coisa que não nele mesmo)

São vários os fatores que justificam essa sensação, alguns inclusive já abordados em outros textos do blog, mas essa necessidade de conexão social faz ainda mais sentido no Japão. Enquanto o ocidente celebra o individualismo, a autonomia, o agir pessoal, o self-made man americano, o japonês valoriza acima de tudo o grupo, o coletivo, o pertencimento.



Não é possível conceber a vida no Japão apartado do grupo, sem a referência do coletivo. Esse é um vestígio milenar dos tempos de Japão rural, onde o cultivo do arroz demandava comprometimento de um número gigante de pessoas, fato que uniu famílias em prol do objetivo maior...sobreviver. Enquanto que as famílias aristocráticas também se organizavam em clãs enormes e hierarquizados para manter uma concentração de terra maior, e consequentemente, se tornarem mais poderosas.

"a capacidade nipônica para o trabalho árduo e de equipe vem sendo cultivada no país, por necessidade de sobrevivência, há mais de dois mil anos. No início, seus habitantes ocuparam-se do cultivo de arroz irrigado, o qual obrigava a trabalhos conjuntos nas plantações e colheitas, bem como à divisão e distribuição da água." (Yoshimoto, 1992)

Os japoneses são criados no sentido de adequação ao grupo. Devem mimetizá-lo e jamais buscar distinção, originalidade, notoriedade. Você jamais verá um japonês discordando diretamente de uma opinião sua numa reunião de negócios, por exemplo. Ele não afirmará "Não!" ou "Está errado!". Ele tentará contornar a situação, se dobrará para tentar mostrar sua opinião sem negar a exposta pelo interlocutor. O sistema educacional japonês (estou devendo o post sobre ele, né?) é uma ferramenta compulsória de adequação. Ensino robotizado e pasteurizado. Justo agora, quando o Japão está precisando de um choque de empreendedorismo, a educação que os alçaram ao topo do mundo graças à uniformidade da qualidade, se tornou um obstáculo. O líder empresarial japonês não é o gênio egocêntrico, como o cultuado Steve Jobs, mas sim aquele que dá coesão e liga ao grupo, fazendo-o trabalhar como um corpo social que se incentiva.

O conceito de corpo social não é novidade no Ocidente. Defendido por John de Salisbury no séc. XII, a ideia de coletivismo e hierarquia parece uma aberração hoje, mas permanece válido no Japão

O idioma japonês é a prova maior dessa condição coletivista. Enquanto os idiomas ocidentais tem palavras específicas para afirmar seu EU, no japonês existem as mais diversas formas para mencionar a si mesmo. A individualidade se molda de acordo com o outro lado da conversa. O eu que eles usam com o chefe é diferente do eu usado com os filhos ou desconhecidos. A natureza social é quem determina o "eu", e não a própria pessoa. Deve ser fantástico estudar Psicologia Social no Japão...

Se você assistiu Sonhos (Yume em japonês) do Akira Kurosawa - agora é o Kurosawa gênio, não o onanista kkk - fica possibilitado de compreender melhor o primeiro sonho. Quando o menino desobedece a mãe e vai assistir à reprodução das raposas, não é posto de castigo no modo ocidental, que trancafia a criança desordeira dentro de um cômodo da casa, impedindo-o de circular e exercer sua individualidade, e sim no modo japonês...ele é expulso do clã familiar! A mãe o fecha para fora de casa...desobedeceu, tentou bater as asinhas e alçar vôo, será isolado das pessoas, será chutado do ciclo social. O que a criança faz? Chora copiosamente. Não há vida sem pares no Japão.

"se um membro deixar de cumprir suas obrigações, membros de sua família com certeza as assumirão, ou então pagarão um preço muito alto, ou seja, o banimento de todos os membros da família da rede econômica e social da comunidade." (Ouchi, 1986)

Sonhos de Kurosawa - Foi ver as raposas? Pague o preço...
Se não há vida sem integração social no Japão, e o relacionamento por lá está cada vez mais complicado - gerando de hikikomoris a herbívoros - dá para compreender melhor porque a ficção japonesa preza bastante pelo retorno ao real e porque os japoneses estão com uma cultura adoecida. Se isolam na mesma medida em que precisam de calor humano para existir como indivíduos (afinal, sem o outro comigo,  de onde tirar referências para  afirmar o "eu" em japonês? a vida e a individualidade se diluem).

Os fracassados - e não são poucos, as vezes nem culpados - procuram os outros para afirmar sua presença da forma como podem. Evidente, todos eles mergulham nesses simulacros como Narciso. No consagrado mito grego, Narciso mergulha com tudo para alcançar sua própria representação espelhada nas margens de um rio e morre afogado, pois tudo não passava de uma fachada. Assim vivem parte dos japoneses hoje. Procurando suas projeções para se sentirem vivos ao seu modo... uns no Ragnarok, até morrerem sentados na cadeira de uma lan-house. Outros casando com travesseiros moe ou eroges, até morrerem e passarem 10 anos em decomposição na cama pois ninguém se deu conta do falecimento (só o governo, 10 anos depois, tentando descobrir porque fulano não paga suas contas); muitos outros, tentando se conectar aos demais indivíduos em suas fantasias libidinosas, como Kurosawa. Tudo fachada, casca vazia. Tentar agarrar essas ideias vagas é sinônimo de passar varado pelo reflexo falso e afogar-se no desespero da desconexão com a teia social, esta, frágil demais para ser sustentada apenas com sêmen e fantasia, como bem nos ensina Onani Master Kurosawa.

NOTAS:

O PRÓXIMO POST SERÁ UM ARTIGO SOBRE O TEMA YAOI. NÃO COM AS SUBDIVISÕES DO GÊNERO, MAS COM O TIPO DE ANÁLISE QUE É DE PRAXE NO OTAKISMO.

As frases de teóricos que ilustram o coletivismo japonês eu tirei de um artigo chamado Brasil e Japão, sem autor identificado, do site da UFSC.

Quem tem medo do Yaoi?

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"Eu não sou gay, eu só estou apaixonado por essa pessoa que por acaso é um homem"

Dois jovens altos, esbeltos e delgados, queixos pontudos e com ossos da bochecha salientes. Olhos vastos, misteriosos e penetrantes. Comportamento feminino, presença de emoções afloradas e vulnerabilidades típicas do chamado sexo frágil. Falo, é claro, dos bishonen, esses seres andróginos da ficção japonesa que, longe de representar a ala gay ou algum homem idealmente fantasioso, se mostram como a manifestação de um terceiro sexo - que não é o dos anjos - existente apenas nas mentes das mulheres japonesas, essas pessoas veladamente descontentes com os papéis de gênero que lhe são impostos dentro do Velho Yamato.

Yaoi é um gênero do entretenimento japonês que dimensiona suas histórias em torno de relacionamentos homossexuais masculinos, geralmente com conteúdo sensual ou mesmo erótico. Importante: Feito por mulheres, para mulheres...praticamente todas heterossexuais! Não pretendo com esse post fazer divisões cartesianas de sub-gêneros dentro do yaoi, isso é acessível em qualquer site do assunto, mas a ideia é contar um pouco da história do gênero, os fatos que o engendraram, como ele se manifesta, como se espraiou pelo mundo, sua relação com o movimento gay para, enfim, traçar algumas conclusões.

Gravitation

No Japão, o erotismo gráfico não é um privilégio exclusivamente masculino como foi por muito tempo no ocidente (foi, pois agora que para as mulheres a satisfação sexual deixou de ser uma possibilidade aceitável para ser um direito inalienável, a pornografia com foco no público feminino ganha terreno por aqui também). Existem mais de 30 revistas de mangás femininos - as ladies comics - oferecendo tórrida sensualidade escondida por trás de castas capas de cores em tons pastéis, que, em um ano, vendem milhões de unidades para uma base de leitoras calculada em centenas de milhares de cabeças (nos anos 90, mais de 1,2 milhões de unidades vendidas mensalmente). É natural que o erotismo do público feminino apresente distinções para aquela dirigida ao público masculino.  Enquanto os homens preferem grafismos explícitos e essenciais para satisfação visual pura e simples, a mulher aprecia mais as firulas, o contexto, as reflexões, os comentários, as descrições, o implícito; não que isso elimine das ladies comics possíveis cenas de sadomasoquismo ou com certa escatologia que podem chocar pelo contraste entre a capa pudica e o conteúdo virulento.

A base de leitoras concentrada entre a faixa dos 15 aos 35 anos emite um sinal de frustração na intimidade do casal (ou nos planos de um dia desejar formar um). O yaoi é um filme a ser revelado, onde o negativo exposto contra a luz deixa claro um profundo mal-estar na sexualidade do Japão, bem como no modelo relacional homem-mulher proposto naquele arquipélago.

“Não agüento meu cotidiano comum. Não quero terminar como funcionária de um escritório qualquer: sair da escola, ser admitida em uma empresa, casar com um dos funcionários é uma vida sem nenhuma excitação, não?"  (depoimento de anônima)


 Um pouco de história. O termo yaoi nasceu nos anos 80 a partir da aglutinação dos termosyama nashi (sem apogeu ou climax), ochi nashi (sem queda ou final) e imi nashi (sem significado) como a definição de um mangá que abre mão das regras narrativas dos quadrinhos. O gênero não nasceu com essa temática homoerótica, ele se dirigia às criações das jovens japonesas que produziam dounjinshis diversos e, na ânsia de dar corpo às fantasias e imaginações, acabavam se esquecendo de dar um rumo lógico à história. O termo inicialmente era usado para brincar com artistas amadores de mangá e produtores de paródias de séries famosas (paródia, em japonês, não tem o sentido sarcástico que pode possuir em português ou inglês, no caso, é apenas para citar o amadorismo da criação).

Conforme as garotas foram brincando de rascunhar mangás, as histórias frequentemente desaguavam nos amores proibidos enquanto elas se esqueciam de amarrar a história, e dessa falta de reflexão somada a crescente escolha pela homossexualidade masculina para contar seu relato, o termo yaoi acabou sendo re-significado para isso que conhecemos hoje.

O yaoi se consolidou trazendo intensas relações amorosas entre jovens e gentis garotos, alienados do cotidiano, com traço do desenho estilizados e amplo foco na dimensão psicológica dos atores. Muitos doujinshis trazem a tortura e o assassinato como uma representação de um amor obsessivo e destrutivo. Quando se apropria de séries famosas, geralmente escolhem títulos com uma ampla gama de personagens com essas características a serem trabalhados. Os principais alvos, também pela época de crescimento do yaoi, foram Captain Tsubasa, Saint Seiya (principalmente depois da estilização do traço dos personagens pelos character designers de Rosa de Versalhes), Yu Yu Hakusho e Slam Dunk.


Yaoi é uma realidade virtual, um desejo fantasioso e projetivo, uma forma de demonstração de amor puro e definitivo, frequentemente exposto por frases como "eu não nasci para ser gay, eu te amaria se fosse fosse menino ou menina". E então você me pergunta: por que raios um gênero de mulher, para mulher, sobre mulher, tratado pelo olhar feminino, é feito com um casal masculino gay?!? Muito se questiona sobre isso nos estudos de mídia asiáticos e principalmente nos boards da internet.

Valores como castidade e perpetuação da inocência propostos para a mulher ideal são tão fortes,  a sociedade japonesa é tão arraigadamente patriarcal, que uma cena erótica com mulher é inconveniente e vergonhosa aos olhos das mulheres, que cresceram ouvindo os repúdios pela manifestação sexual feminina.  A subversão estaria no choque contra as convenções masculinas da sociedade, acusadas de reificar corpo e alma femininos pelo olhar masculino, tornando-os meros objetos do desejo macho. É um protesto silencioso contra valores milenares encrespados. Humilhar o homem, coisificá-lo para o prazer visual feminino é um ato subversivo. A mulher vira papel ativo nas narrativas e joga o patriarcal para o papel passivo. É a reversão da ótica social, destrói essa fórmula absorvida pela mídia de usar a mulher como mero alvo da luxúria masculina. As mulheres conseguem dar abertura para seu próprio prazer erótico-visual quando o que está na frente não é alguém do seu sexo sendo violada, consensualmente estuprada. (se você já viu algo da pornografia japonesa, sabe do que estou falando)

"O yaoi quebra muitos dos estereótipos culturais sobre como os relacionamentos deveriam ser. Esperam das mulheres que elas joguem ou apresentem um certo papel. Uma leitora de yaoi não tem que se associar com uma personagem feminina. Você escolhe aquele com o qual se identifica." Lillian Diaz-Przybyl editora da Tokyopop 
"Para as meninas, sexualidade é uma coisa vergonhosa a ser temida, não algo que pode ser explorado de forma franca e assertiva. Artistas usam as vozes de personagens masculinos para expressar desprezo pela timidez e passividade sexual das mulheres e, no entanto, ironicamente, ao fazê-lo, elas forçam os leitores a olhar para os padrões injustos que a sociedade japonesa impõe às mulheres."



“As mídias falam da libertação da mulher há pelo menos 25 anos, mas só muito recentemente é que essa liberação é constatada em fatos. A principal conseqüência dessa liberação da mulher é a perda de suas referências sociais. As jovens no Japão são como um cavalo que voltou a ser selvagem. Não mais se parecem com as mães, mas também não sabem o que fazer de sua liberdade em uma sociedade ainda dominada por homens. A sociedade não espera mais que elas sejam apenas boas esposas e boas mães, porém isso não significa que elas tenham conquistado seu lugar no mundo do trabalho. Elas são livres, é verdade, mas não com igualdade. Grande parte de sua energia, reprimida por muito tempo e novamente liberada, passou para o fenômeno dos fanzines. Este tornou-se para essas adolescentes um meio de exprimir sua personalidade profunda. O gênero yaoi é, penso eu, uma reação à opressão sexual dos homens. É uma revolta contra a imagem estereotipada da mulher na mídia. Com esse gênero, elas reivindicam outras representações sexuadas além das que lhes são propostas.” (Furukawa Masuzo, fundador da Mandrake)

Esse florescer para certos aspectos da individualidade está sendo uma características das últimas gerações de japoneses. Essas japonesas não vêem nada de errado em flertar com a homossexualidade masculina, experimentar o fascínio do inexperimentável. A escolha, como nos mostra Barral, passa longe de ser inocente. A idealização do desconhecido traz em seu bojo a recusa da banalidade da relação homem-mulher tradicional. "Através do yaoi, elas exprimem que a vida do casal, a maternidade, o modelo de relação proposto por seus pais, não as fazem sonhar; essa vida é incompatível com o desejo de liberdade que experimentam. Ao escolher o modelo masculino da homossexualidade desenhada é garantir a inalterável paixão absoluta, elas estão seguras que sua história de amor ideal não terminará de forma banal: casaram, tiveram filhos e terminaram por parecer com seus pais".

O problema está em confrontar valores milenares numa sociedade tão rígida em seus princípios, que não aceita críticas diretas, tampouco repensa certos atos. O yaoi é a forma silenciosa de resistência aos valores dominantes. Lá vou eu de novo com a mesma história. O yaoi é a versão feminina de virtualização da expressão amorosa. As garotas também estão perdidas e também fazem parte da espécie homo virtuens, ao usar os homens como alter ego. Penso, não existe uma curiosa semelhança entre yaoi e moe, no que tange a idealização de relacionamentos puros? Encherei o saco de vocês novamente com o assunto fuga do real e refúgio no imaginário/virtual. O que muda é a camada de verniz, a estrutura do sentimento é a mesma. E olha o que roteiristas de talento fazem com uma juventude...
“Imagens de homossexualidade masculina são as únicas onde nós podemos ver os homens amando alguém em condição de igualdade. Esse é o tpo de amor que nós queremos ter."

“Tomando por tema as relações homossexuais masculinas, elas podem desenhar, ao mesmo tempo, tudo o que quiserem de seu centro de interesses número 1 – os homens -, sem voltar à realidade contando as clássicas relações homem-mulher, que para elas fazem parte de um cotidiano muitas vezes monótono (ainda que imaginário), que termina invariavelmente com “eles se casaram e tivera muitos filhos”. Apesar de tudo, um homem permanece um ser misterioso, incompreensível, para uma mulher jovem. Os mangás yaoi são a expressão dessa busca.” (Yonezaka, fundador Comiket)

Não podemos ficar tapados e olhar para a questão apenas pelo vértice acadêmico de confrontação aos valores e blá blá blá, ao custo de  ignorar o que fundamenta o estilo, a sexualidade em si. O aspecto voyeur é indissociável do assunto.  O desejo pelo prazer sexual é um dos pilares da existência humana. Na sociedade japonesa, forjada com forte influência confucionista, as mulheres tem medo de expressar sua sexualidade e do rótulo de promíscua.  Isto é, repressão, não aniquilação dessas pulsões sexuais, então, a exposição midiática da sexualidade vira uma válvula de escape para essas pulsões reprimidas. Amor e sexo são os temas que circundam o yaoi (não venha me falar de amizade!), um padrão consagrado e esgarçado na produção do conteúdo midiático de massa como um todo. O yaoi, ao usar o corpo masculino, permite o prazer visual sem vergonha e a culpa do êxtase sexual (tamanho o reforço negativo que elas sofreram nas mãos da moral nipônica). Os personagens são sempre muito bonitos, como são as meninas nos shonen ou hentais. O termo, inclusive, foi novamente reconstruído de forma agora totalmente erótica: YAmete Oshiri ga Itai (Stop, my ass hurts).


Todo mundo gosta de mencionar a dita sentimentalidade feminina, que não ama com os olhos, aquela coisa superior...blah, esquecemos a natureza mais simples da questão. O yaoi abarca uma série de sub-gêneros e atinge um público incrivelmente amplo (de meninas de 12 anos a mulheres casadas de 35), e parte dele tem um objetivo mais sexual do que a moral inicialmente nos faria supor que possa partir de uma mulher (e vários títulos mais hardcore são muito picantes). Seguindo a mesma lógica da pornografia lésbica, geralmente apreciada pelo público masculino, para algumas mulheres dois homens são melhores do que um, ainda mais quando suprime a presença de uma pessoa do mesmo sexo que o dela, com a qual inequivocadamente serão feitas comparações, provavelmente com saldo negativo para a espectadora. Além disso, existe a possibilidade de se identificar tanto com o papel de dominador quanto de dominado, e mudar de papel a qualquer momento.

Mais simples do que isso, o yaoi é diferente e foge da mesmice, além de ser muito acessível e agradar diversos gostos distintos com sua ampla variedade de abordagens. No Japão, é possível comprar uma revista do gênero com muita discrição em qualquer ponto de venda; a internet, então, deixa o público separado do conteúdo por apenas alguns cliques, além de garantir o completo anonimato e não deixar rastros físicos de seu consumo com o simples limpar de um histórico (não precisa guardar a revista no fundo do armário, sob o risco de ser achado pelo maridão ou pela mãe curiosa, nem a expõe ao constrangimento de ler no metrô).

Sailor Moon e Tuxedo Mask

Outro ponto relevante para a realidade japonesa foi o fato da indústria cultural ter subestimado a sexualidade feminina e ter entregue apenas relacionamentos quadrados e irreais como aquele entre Serena e Tuxedo Mask em Sailor Moon. Ok, isso vende muito, mas só isso também não dá. O yaoi faz o contraponto dos estereótipos dos mangás comerciais femininos (menina kawaii e romântica, menino rude ou cavalheiro demais). Para finalizar o argumento, novamente Yonezaka: 
“Os mangás comerciais destinados às jovens acentuam demais o romantismo cor-de-rosa, e tendem a considerar suas leitoras como cinderelas à espera paciente de seus príncipes encantados. É essa ruptura entre os mangás comerciais e a expectativadas leitoras que explica, em grande parte, a razão de as adolescentes se voltarem progressivamente para os fanzines dos mangás yaoi.”

Yukito e Toya - Sakura Card Captors

Outro argumento, esse muito mais complexo e não menos interessante, coloca o consumo do yaoi na lógica da pós-modernidade, estrutura de pensamento acadêmico que bombou no Japão oitentista. Fala-se muito em história doce e romântica, amor intocável e platônico (ou em Platão, para iniciados xaropes), inacessibilidade do sexo praticado pelo gênero oposto e oposição aos valores tradicionais, mas se esquecem de posicionar as obras no mesmo contexto de toda a cultura pop japonesa. Toda história repete o cenário cíclico de angústias e paixões que sempre culminam num beijo (ou algo a mais) - previamente recusado por um dos lados, apesar do interesse mútuo - responsável por selar o compromisso. E só. Para a maioria das leitoras, isso basta. Uma forma bem pós-moderna de consumir narrativas (nesse país do Light Novel) e sinal do esvaziamento do significado humano e profundo das narrativas (como eram nos tempos modernos, por essa perspectiva), que passam a ser produtos descartáveis para satisfação imediata, sem necessidade de  trazer maiores significados embutidos (lembrem, sem clímax, final ou significado, apenas prazer momentâneo). Aqui, novamente o moe e o yaoi compartilham semelhanças notáveis. Você, querido, que ridiculariza o yaoi mas curte K-ON, a estrutura narrativa e a motivação de consumo são as mesmas, só muda a roupagem! Mas esse não é o foco do post...

K-ON!

Enfim, o yaoi é um grande resultado do contexto global, onde a produção da informação/mídia saiu da posse totalitária dos produtores de conteúdo; eles compartilham esse posto com as pessoas ordinárias, os fãs (fandom), que muitas vezes passam a ditar os próximos passos do stardom (quando não o escraviza; malditos sejam, otaku moezeiros). Com o advento das novas mídias, sobretudo a internet, o resultado foi a proliferação da comunidade yaoi entre pessoas geograficamente muito distantes, situação que explodiu em subculturas e despertou maior interesse de estudo sistemático da situação, além é claro, do interesse de muitas pessoas em ganhar dinheiro com isso.

Como dito, o fenômeno surgiu entre garotas amadoras mas logo foi absorvido pelo mainstream. A primeira revista yaoi profissional foi a bimestral June (referência à Jean Genet, pois a pronúncia de June se assemelha a Genet em japonês), lançada em 1978. O mercado editorial trouxe artistas amadoras de sucesso para os primeiros passos, como Ozaki Minami (famosa por mexer com Captain Tsubasa) e Kohga Yun (Saint Seiya). Ao contrário do que nós, ocidentais, possamos pensar, o yaoi não é um fenômeno escondido no armário, ele é bem aberto. Kinokuniya, a maior livraria de Tóquio, tem uma seção só disso. Suas leitoras, que vão de estudantes ginasiais a funcionárias públicas, frequentam fóruns virtuais, escrevem artigos, trocam links, discutem títulos, marcam encontros e inclusive vão a eventos exclusivos do tema, como o Tokyo Harumi.

Algumas se declaram viciadas, a maioria apenas alega ser um passatempo. Mas o fato é que a postura de quase todas é muito ativa, seja na produção, distribuição ou mesmo transformação do yaoi. Não apenas lêem, mas criam seus próprios textos ou mangás yaoi, na condição de audiência ativa. O valor do yaoi, então, estaria menos na qualidade da obra em si, mas sim na reformulação ou questionamento dos papéis sociais. As leitoras sentem-se abençoadas pela possibilidade de poder, pela primeira vez, olhar para o mundo com uma perspectiva própria, não patriarcal e machista (ainda que, insisto, essa postura é duvidosa).

Sailor Starlights
Seria irresponsável da minha parte tocar esse assunto sem falar no universo gay. Se o yaoi é um movimento quase que estritamente feminino, como os gays reagem a isso? Por um lado, os movimentos gay e feminista estão de mãos dadas na crítica ao domínio do pensamento heterossexual e suas imposições sociais que limitam a livre expressão sexual das minorias (se é que posso chamar as mulheres de minoria). Por outro lado, críticas foram feitas contra o yaoi pela popularização dessa representação falsa dos homossexuais, que seriam sempre lindos, carinhosos, delicados e profundos; o yaoi, para alguns gays, seria apenas outra forma de agressão ao homem homossexual. Mesmo os que nada tinham contra o yaoi, também não consumiam. A pornografia gay que os agradava era muito mais próxima da visão hetero masculina - visual e explícita - que feminina.

O yaoi ajudou a consolidar entre as japonesas uma idéia fantasiosa sobre os gays, junto de revistas femininas como CREA e SPA, defensoras do homem gay como um companheiro, dono de qualidades ímpares não presentes nos heteros. O gay, segundo essas publicações, consegue separar intimidade de sexualidade melhor que o hetero. Filmes como Okoge e Twinkle transmitem a mensagem de que gays oferecem o tipo de amor, respeito mútuo e consideração incapazes de serem fornecidos pelos heterossexuais. Em Twinkle, um casal (mulher hetero e homem gay) simulam um casamento fachada para fugir das pressões familiares e sociais por um casamento. O gay encontra um homem, mas o casal de fachada está apaixonado e não se liberta dessa condição. (eu não vi o filme, apenas transmito a descrição). 


As leitoras/produtoras de yaoi fazem questão de deixar claro: Elas distinguem muito bem homossexual de homossexualidade. O primeiro, seria o praticante, o gay real, enquanto o segundo seria, para a perspectiva delas, a fantasia.

Slash Fiction


Você pensa 'coisa de japonês'. Está enganado, meu colega. É inevitável traçar paralelos entre o yaoi e o Slash Fiction, movimento setentista americano, predominante entre o fandom feminino e heterossexual, que imaginava relações sexuais envolvendo personagens homens do universo ficcional, como seriados e filmes. Iniciado pelo fandom de Star Trek, mas depois absorvido pelos fãs de X-Men, Babylon 5, Blake's 7 e outros, o fenômeno ganhou destaque no meio acadêmico, onde também foi justificado como uma forma de independência contras os limites impostos pela cultura patriarcalista e pela reconfiguração da identidade masculina, colocando os desejos femininos como centro (até o Jenkins escreveu sobre isso). Um episódio da sétima temporada de Supernatural se chamará Slash Fiction, com uma suposta insinuação homoerótica entre os irmãos Sam e Dean.

O público de slashé muito crítico quando analisa o maistream, as noções patriarcais de gênero e sexualidade, e a si mesmo. Slash recebeu mais atenção dos acadêmicos que do mundo gay, que considerou os fanzines a expressão da frustração feminina, mas acharam legal o ataque à heterossexualidade compulsória. Diferente do yaoi, o slash se manifesta em textos cursivos ou ilustrações, não em quadrinhos.

Apesar disso, também pela homofobia ocidental, slash fiction é desprezado pelos apreciadores de ficção científica; até hoje as fãs do gênero estão presas no armário, precisando justificar seu hobby. Frequentemente são perseguidas pelo Copyright, pois os donos dos direitos autorais se recusam a ver seus personagens envolvidos nesse tipo de ilustração (enquanto no Japão fazem vista grossa, pois doujinshi é uma forte sustentação da vida útil dos títulos). Essa tensão definitivamente não existe no público yaoi. Este é mainstream, aquele, nicho. Uma diferença do yaoi para o slash é que o japonês foca em garotos ou jovens e o ocidental em homens adultos e maduros, geralmente. A juventude é celebrada por ambos os sexos no Japão.

Slash fiction e yaoi são eventos coincidentes, não nasceram de mãos dadas ou por influencias diretas; claro que estão inseridos no mesmo contexto mundial e em semelhantes contextos culturais, mas foram movimentos espontâneos e autóctones. 


Korean Dorama

Falei de cultura pop, não posso ficar preso ao Japão, pois tudo que eles fazem vira conteúdo de exportação. Na Coréia do Sul, país de moral tradicional arraigada que considera a homossexualidade um desvio, uma anormalidade, o yaoi se popularizou a partir de 1995. Nos EUA o yaoi foi introduzido pelos títulos Fake e Gravitation, conquistando amplo sucesso entre o público gay. Lá, já existem duas convenções especializadas na temática yaoi, como o YAOI-con na Califórnia, que reune cerca de 1.500 pessoas. No Brasil, convido-os a visitar a sepultada rede social Orkut (uma ótima fonte de dados secundários para pesquisas do nível) e dar uma olhada nas comunidades de yaoi. Milhares de pessoas com postura ativa semelhante às japonesas (não em produção, mas em debate - também não em nível). Recomendando títulos, escolhendo casais favoritos e até ensinando como esconder os arquivos no computador compartilhado para que ninguém descubra seu hobby. Claro que há muitas ciladas do Bino entre os tantos fakes de personagens kawaii femininos -  deve ter macho pra caramba - mas certamente uma parte considerável (quem sabe a maior parte?) é realmente de meninas, essas pequenas Cinderelas que não podem assumir publicamente que gostam de Gravitation, então criam fakes e pastas chamadas "PROVAS" para arquivar a bomba atômica. Dois depoimentos coletados no público Orkut:

"Além de esconder os arquivos em pastas e talz... vc tb pode mudar o nome dos arquivos. Colokar alguma coisa, tipo, inves de "Gravitation" coloka trabalho escolar!ashshuashuahuhau!Eu fazia isso. Ai ninguem mexia pq o nome ja dizia o q "era"! ^^"

"Tenho dois irmãos mais velhos que mexam no pc e tem minha mãe,
só dá pra mim ler de manhãzinha quando todos ainda tão dormindo e minha mãe fica la embaxo. (tem dois andares a casa). Ou quanto não tá ninguém em casa, coisa que é
muito dificil."


Alguns dados sobre a penetração do yaoi no ocidente. Em 2005, foram achadas 785 mil páginas em inglês sobre yaoi, 49 mil em espanhol, 22.400 em coreano, 11.900 em italiano e 6.900 em chinês, país que limita severamente a pornografia. O Yahoo! possui uma categoria de busca exclusiva de conteúdo yaoi.

Há adaptações na produção ocidental, o yaoi feito nos EUA costuma ocorrer nas faculdades para evitar problema legais, apesar da aparência dos personagens não convencer (o japonês ocorre na escola mas também as vezes parece ocorrer no jardim da infância). Mas o público é o mesmo, 85% mulheres, a maioria heterossexual. Nesse ponto reside um dos problemas, parte do yaoi consumido pelas estudantes japonesas é crime em outros países, por envolver insinuação ou consumação sexual entre menores, o que é legalizado no Japão no formato mangá, mas em quase nenhum outro país do mundo. É, baixar um doujinshi japonês pode ser crime, senhorita! Entender o sucesso do yaoi no ocidente é problemático, tanto pelo caráter ilegal de muitos sites quanto pelo fandom menor de idade, que tornariam pesquisas eticamente questionáveis no politicamente correto meio científico.

Diferente desse lado do mundo, no Japão a pornografia também é consumida pelo público feminino e a homossexualidade não é tratada como tabu, como em países de moral judaico-cristã. Não que o Japão seja um paraíso para os gays, mas pelo menos nesse sentido de exposição, eles são bem mais liberais. Lá, o tema homossexualidade transita livremente pela cultura de massa e pelos quadrinhos femininos, inclusive os infanto-juvenis. Cristiane Sato, autora do livro Japop, menciona o estranhamento de Naoko Takeuchi, a mãe das Sailors, por ser constantemente questionada por jornalistas e críticos culturais ocidentais sobre suas personagens de sexualidade duvidosa numa animação voltada para as crianças (caso das Sailor Starlights, de aparência masculina que se transformam em divas usando cano alto ou da relação estranhíssima entre as sailors Urano e Netuno)...o mesmo estranhamento que o americano sentia ao ver os japoneses direcionando esse conteúdo para crianças, é sentido pela asiática que não entende o que há de mais nisso. O Japão tem um histórico de explorar a homossexualidade - e a androginia - nas artes e literatura há séculos.

Sailor Urano e Sailor Netuno

Gostaria de, finalmente, trazer à baila algumas considerações finais. Essas reflexões datam, em sua maioria,  do anos 90. As coisas mudaram bastante na última década, mas os títulos sobre o assunto ainda não foram traduzidos para o inglês ou francês para que fossem disseminados culturalmente. É bem provável que certos fatos já estejam obsoletos e mesmo o cenário maior esteja datado (por exemplo, é sabido que o gênero cresce entre o público gay). Outro ponto importante, o yaoi está sendo descaracterizado por alguns títulos ultimamente, perdendo sua essência quando as produtoras criam séries com inúmeros capítulos e volumes (não estou falando que é bom ou ruim, apenas constato a mudança). Tanto que algumas leitoras já demonstram insatisfação com o padrão yaoi e denunciam um suposto olhar masculino em sua produção - algumas até migraram para o yuri.



Como reflexão final, onde convido-os a comentar, quero colocar em xeque esse princípio da igualdade pretensamente ventilado pelo yaoi. Takemiya Keiko, autora de Kaze To Ki No Uta (The Song of the Wind and the Trees) argumentou que o gênero foi o primeiro passo no sentido de um verdadeiro feminismo. Será? Sakakibara Shihomi, produtora de yaoi, se considera um homem gay num corpo de mulher. Mencionam a apologia ao mundo masculino idealizado, desejo de nascer homem, desejo de amar um homem COMO um homem (ou melhor, como um igual, sem qualidades pré-definidas de gênero, pois a mulher sempre seria a submissa, então, sendo homem, poderiam gozar de outro papel sexual mais justo - ou seria gozar do poder que o homem ainda tem hoje?). A socióloga feminista Ueno Chizuko diz que:
"a homossexualidade masculina era um dispositivo de segurança que permitiu às meninas a operação dessa coisa perigosa chamada 'sexo' de uma certa distância do seu próprio corpo. Eram as asas que as habilitaram a voar. As mulheres são libertas da posição de serem unilateralmente violadas e ganham a perspectiva do infrator, daquele que assiste."

Já uma leitora/produtora coreana chamada Seowon Choi diz "Nós também podemos fazer dos garotos nossos brinquedos". Eu fico com a impressão que o desejo não é apenas a igualdade, mas sim a troca dos papéis. O yaoi não traz a perspectiva de igualdade entre os personagens, pelo contrário, um dos seus pilares é a estrutura de seme/uke, em outras palavras, a relação binária entre dominador e dominado, inquisidor e submisso, chefe e empregado, professor e aluno. Uma situação notável nas produções feitas com base em franquias consagradas é justamente a inversão dos papéis. Quanto mais viril o personagem na trama original, mais submisso, vendido e feminilizado será no yaoi, ao passo que, quanto mais secundário e insignificante, maior sua chance de se converter no protagonista dominador que sodomiza o até então manda-chuva do título. Uma representação bastante direta dos desejos femininos, de reconhecimento do seu sexo no seio da sociedade nipônica. Agora, testemunhamos um pedido por igualdade ou um desejo de inversão da mesa?




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Referências e Saiba mais:
Girls And Women Getting Out Of Hand: The Pleasure And Politics Of Japan's Amateur Comics Community - (Matthew Thorn)
The World of Yaoi: The Internet, Censorship and the Global “Boys’ Love” Fandom (Mark McLelland)
Yaoi Manga: What Girls Like? (Kai-Ming Cha)
It's A Yaoi Thing (Gia Manry)
Male homosexuality in Japanese women's media - (Mark McLelland)
Reading YAOI Comics: An Analysis of Korean Girls Fandom - (Sueen Noh)
Otaku - Étienne Barral

(Foi tenso procurar imagens para esse post >_<)

Hotaru no Haka: seriam os japoneses herdeiros da ética samurai?

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"A pessoa não precisa de vitalidade nem de talento. Em suma, basta ter vontade de carregar sozinho sobre os ombros todo o clã." (Yamamoto Tsunetomo em Hagakure, 1779)

Lealdade, disciplina, determinação, limpeza, auto-sacrifício. De quem falamos? Do povo japonês como um todo? Dos samurais? Ou da mesma coisa, tendo em vista que o comportamento dos nipônicos se confunde com a cartilha ética dos guerreiros seculares? Samurai corporativo é um lugar-comum usado à exaustão para descrever o homem de negócios japonês. Seu guia - correlato ao popular Arte da Guerra de Sun Tzu - é o Livro dos Cinco Anéis de Miyamoto Musashi, o mais famoso samurai da história japonesa. A mídia ocidental, azeitada em clichês, não cansa de fazer matérias comparando o comportamento dos japoneses à ética da classe guerreira que teve seu fim decretado por força de lei no século XIX, do desastre de Fukushima (os "samurais atômicos") ao papel soberano da Toyota no mercado americano, quando os asiáticos ultrapassaram o colosso chamado General Motors.

Essa visão é integralmente correta? A imagem dos japoneses como herdeiros dos samurais, cristalizada pelo governo imperial, cinema, mídia e cultura pop, estaria de acordo com a realidade? Não! Mas infelizmente até os japoneses acreditaram por muito tempo nessa ladainha e pagaram caro por isso. Como exemplo desse preço, trarei o caso do filme animado Hotaru no Haka (O Túmulo dos Vagalumes) do estúdio Ghibli, na intenção de mostrar que o desperdício de vidas humanas decorrente dessa deturpação histórica extrapola e muito o caso dos Kamikazes ou dos ataque suicidas em Iwo Jima. Com tal objetivo, será necessário traçar uma breve linha temporal do papel dos samurais na sociedade japonesa desde os primórdios.

Muito do que sabemos hoje sobre a origem dos samurais é turvo, pois realidade se confunde com mitos e folclore. Temos certeza, no entanto, de que eram guerreiros montados que defendiam senhores de terra locais em troca de parcelas das terras conquistadas. Eram arqueiros em montaria, mas com o tempo adquiriram novas formas de combate, como o combate físico, a espada (que se tornou a alma do samurai), a alabarda e mesmo a pólvora dos mosquetes. Sua importância para a sociedade japonesa da época (em torno do século VIII) não consistia apenas em defender e conquistar terrenos, mas garantir a cobrança de impostos dos camponeses, exigidos na forma de arroz. Muitos desses espaços físicos conquistados pelos samurais ficavam nas bordas do Império, áreas pouco exploradas pela distância da planície fértil de Yamato.

Como não existia dinheiro, os samurais se tornaram progressivamente mais poderosos devido ao acúmulo de terras. Eis que no século XIII o Japão sofre tentativas de invasão do mais extenso império (geograficamente) que a história já conheceu, os mongóis sob o controle de Kublai Khan (neto de Gengis Khan, o responsável pela unificação das tribos mongóis). Ao término da mal sucedida tentativa mongol, o Japão mergulhou em um século de guerras civis, responsável pela total desestabilização do poder de Kamakura. Não haviam mais terras para distribuir aos samurais que lutaram contra os mongóis, portanto, para recompensá-los, era necessário tomar as posses de outro senhor. Senhores de terra que foram arruinados pela ofensiva estrangeira e defenderam o Japão não foram recompensados pelo poder central e resolveram deslegitimá-lo, passando a agir por conta própria. Esses fatos pontuais, somados ao processo de erosão social que não cabe aqui, desestruturaram em absoluto o poder central do Japão e alimentaram o caos político e social.

Invasão Mongol - destruição das embarcações pelo tufão mais intenso do século XIII, nomeado kamikaze (os ventos divinos)

Nos desestruturados tempos de guerra civil havia mobilidade social. Toyotomi Hideyoshi, um dos três artífices da unificação japonesa, por exemplo, não tinha origem aristocrática e foi por um tempo o líder militar do país. Justamente ele, por saber como um plebeu poderia ascender em tempos de instabilidade, deu um fim nessa farra a partir de modificações na estrutura social japonesa. Hideyoshi mandou confiscar todas as armas dos camponeses e criou um estrato social dos samurais. Apenas eles detinham o direito de manejar armas. A sociedade japonesa, abaixo da família imperial e da nobreza, foi dividida em quatro classes hierárquicas: Samurais, camponeses, artesãos e mercadores (nessa ordem). Naturalmente, os samurais estavam acima dos demais num país comandado por chefes militares, onde o Imperador não passava de instância simbólica.

Os samurais, defendidos pela distinção de classe, passaram a viver de renda e a portar insígnias e direitos que os distinguiam dos demais. Como dito, apenas eles tinham o direito de portas espadas (usualmente duas), não podiam casar com pessoas de classes distintas (os samurais de classe mais alta também não podiam casar com samurais menos favorecidos) e gozavam de benefícios bem feudais, como o Kiri Sute Gomen, o direito de passar a fio de espada qualquer indivíduo de uma classe inferior que não o respeitasse como tal. Percebam que falo de um minoria privilegiada.

Ieyasu Tokugawa - unificador
Devo ressaltar que essa rígida estrutura social só foi possível porque o Japão, farto de sangue, conseguiu unificar um projeto político respeitado - mesmo que pela força - por todos. Regras só são respeitadas quando reconhecidamente possuem legitimidade por aqueles que devem segui-las. Acontece que, se o país agora estava estruturado socialmente, isso é sinal que não haviam mais guerras civis! O Japão da dinastia Tokugawa conheceu 250 anos de paz absoluta. O que fazer, então, com uma classe privilegiada, sugadora de renda, cuja única função é se preparar para lutas que não ocorrem mais? A cultura de paz alterou a identidade dos samurais quando eles perceberam que suas únicas habilidades já não eram mais necessárias.

O treinamento de corpo e alma deixou de ser satisfatório e muitos deles passaram a se dedicar à poesia, ao ensino das técnicas marciais (o início das escolas e estilos de artes marciais japonesas data desse período) ou mesmo viraram burocratas ou comerciantes ilegais. Também filosofaram bastante sobre assuntos como honra, morte, beleza, suicídio ritual etc. Para justificar sua posição social acima dos demais, apesar de sua inutilidade onerosa, faziam isso de modo apaixonado e estético. Como afirma Thomas Conlan:
"O comportamento do guerreiro tornou-se estilizado. A importância das artes marciais e crenças associadas aos samurais é uma invenção do século XVII. Quando havia paz no Japão e surgia a pergunta: 'temos esse oficiais com espadas que são pagos. Para quê eles servem? Não temos guerras!'. Por isso tentaram criar esse código de conduta."


Hagakure

Entre os séculos XVII e XVIII, vários pensadores começaram a escrever obras como bulas de como o samurai devia viver, ressaltando conceitos como honra pessoal, dominio das artes marciais, fidelidade cega, auto-disciplina e exemplo societal. Esse conjunto de ideais é o 'Caminho do Guerreiro'. Não existe uma cartilha definitiva de como um samurai deve atuar, e sim uma série de escritos, que divergiam de região para região, mas que injetavam anabolizantes nos preceitos do Bushidô. O Hagakure, escrito por Yamamoto Tsunetomo no início do século XVIII, é o exemplo mais consagrado de uma dessas produções, contando com códigos de conduta e mesmo detalhes de aparência do samurais.
"(O Hagakure) Tem descrições incríveis de como um samurai deve agir. Ele deve ser absolutamente limpo, ele deve cortar as unhas de certa maneira, deve carregar ruge na bolsa, pois pode morrer. E ao morrer não pode parecer pálido ou assustado, deve ter o rosto de alguém que escolheu a morte" - John Nathan

Não sei se já ficou claro, mas percebam como o comportamento samurai que reconhecemos hoje foi um adorno artificialmente forjado em tempos de paz! Quando o Hagakure foi publicado, ela já reinava por mais de oito décadas no arquipélago. Conlan exemplifica como os samurais dos tempos da guerra tinham uma postura muito mais pragmática em relação ao sacrifício:

"Um documento do século XIV dizia 'Atacamos o inimigo, mas sofremos baixas e fugimos'. Sem vergonha, sem morte. Não querem morrer à toa."

Samurais
A classe samurai, no entanto, levou os códigos de conduta a sério. Com a Restauração Meiji, e sua consequente dissolução da sociedade hierarquizada e proibição do porte de espadas, o samurai como classe foi definitivamente extinto da sociedade. O pensamento construído em torno deles não. O sistema compulsório de ensino transmitiu para a totalidade dos indivíduos os valores samurais, a divindade do Imperador e a superioridade da raça japonesa, herdeira dos deuses. Nas palavras de Karl Friday:
"O exército imperial japonês tomou os samurais como o principal símbolo para forjar um código ou uma cultura para seus soldados. O Exército distorceu isso. São valores japoneses, e somos todos samurais"
Cômico que o exército imperial era composto majoritariamente por  camponeses, enquanto o Código do Guerreiro samurai, usado pelo Estado para lavar cabeças frescas, era uma ferramenta de distinção social daqueles 10% de guerreiros do período feudal. Tanto que a diferenciação social  fica clara em trechos do Hagakure como: "Um samurai deve usar um palito de dentes mesmo que não tenha comido. Nunca demonstre as privações pelas quais você é obrigado a passar."

Não espanta a truculência das tropas japonesas em combate quando, mesmo claramente derrotadas, avançavam contra metralhadoras, preferindo a morte à rendição, como os ensinou a cartilha estilizada dos tempos de paz.

"Identificamos a consciência nos poemas de despedidas que eles escreviam e em outras coisas que, bem ou mal, recriavam, ou os conectavam, a algo do passado e que para eles era real." - John Nathan

Kamikaze
Não estou negando os valores e conduta dos samurais dos tempos de guerra, muito menos negando sua influência na construção identitária do povo japonês, mas acho essencial desvendar o que há por trás dessa história e os paradoxos de chamar o povo japonês como um todo de herdeiro de uma classe distinta e superior. Eu sei que antes, diante da mobilidade social, samurai era quem pegava em armas e demonstrava habilidade. Mas qual estereótipo foi usado para a propaganda, o samurai do século XIII ou o samurai do século XVIII? Justamente a construção minoritária.

"Um guerreiro deve ser cuidadoso e ter aversão à derrota. Se não tomar cuidado principalmente com as palavras, pode dizer coisas como: "Sou um covarde", "Quando a hora chegar provavelmente vou correr", "Que medo", ou ainda "Que dor". Essas palavras não devem ser ditas nem mesmo de brincadeira, tampouco num impulso ou quando se fala durante o sono." (Hagakure)
Hotaru no Haka - a capa do filme é a menina, de fralda e capacete, batendo continência. Preciso falar algo a mais sobre o período?

Como eu disse no início do texto, o moedor de carne resultante dessa dupla deturpação histórica não é verificável apenas em ataques desesperados ou na brutalidade da guerra. Hotaku No Haka exemplifica como o desvio conceitual não é apenas uma ferramenta aplicável em combate, mas uma estrutura de pensamento compartilhada pelos civis da época.

A animação - muito diferente do padrão Ghibli, dos tempos onde o Japão ainda tinha dinheiro para arriscar - narra a história dos irmãos Seita e Setsuko. O pai deles é convocado pela Marinha e nunca mais volta, enquanto a mãe morre devido a um bombardeio americano. O Filme mostra a tentativa de sobrevivência do jovem Seita cuidando de sua pequena irmã, num país devastado pela guerra e pela fome, e onde a miséria não se restringe à economia, mas abarca também a miséria humana. A brutalidade dos tempos de guerra, responsável por calejar a sensibilidade das pessoas que passam a ver qualquer absurdo como normal.

Grave of the Fireflies - título em inglês

Spoiler: O problema é que Seita é o responsável claro pela morte da irmã. Com a perda dos pais, ele deveria, se o objetivo era sobreviver com a irmã, se submeter às humilhações da tia. Como o fazendeiro de quem ele queria comprar comida disse, engula seu orgulho, peça desculpas e volte para os cuidados dela, pois em tempos de guerra é assim que se sobrevive. Seita, como um samurai, não tolerou o ataque da tia a sua honra pessoal e saiu da casa dela com a irmã, indo morar em condições insalubres. Se as condições já eram precárias para famílias com uma mínima estabilidade, o que dizer de duas crianças ao relento?



O pobre Seita, um gigante em coragem, que conseguia controlar seus próprios sentimentos em relação à morte da mãe e ao sumiço do pai para não assustar a irmã, foi uma vítima do período. Behavioristicamente preparado para pensar e agir como um samurai - aquele dos tempos de paz, não o real -, perdeu o que lhe era mais caro e, por fim, acabou se perdendo. Não apenas nas guerras do Pacífico as vidas dos japoneses foram jogadas na lixeiras, mas também em sua própria casa. Tomando o Hagakure como meio de vida, Seita seguiu suas lições: "O Caminho do Samurai é encontrado na morte. Entre ela ou qualquer outra coisa, não há dúvida: a escolha deve ser a morte."


Alguém ainda vê vaga-lumes hoje em dia?


@Otakismo



Fontes e Saiba mais:
Os Japoneses - Célia Sakurai
Os Samurais - History Channel (foi a base histórica do post)
Hagakure - Yamamoto Tsunetomo
O livro dos cinco anéis - Miyamoto Musashi
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