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Hotaru no Haka: seriam os japoneses herdeiros da ética samurai?

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"A pessoa não precisa de vitalidade nem de talento. Em suma, basta ter vontade de carregar sozinho sobre os ombros todo o clã." (Yamamoto Tsunetomo em Hagakure, 1779)

Lealdade, disciplina, determinação, limpeza, auto-sacrifício. De quem falamos? Do povo japonês como um todo? Dos samurais? Ou da mesma coisa, tendo em vista que o comportamento dos nipônicos se confunde com a cartilha ética dos guerreiros seculares? Samurai corporativo é um lugar-comum usado à exaustão para descrever o homem de negócios japonês. Seu guia - correlato ao popular Arte da Guerra de Sun Tzu - é o Livro dos Cinco Anéis de Miyamoto Musashi, o mais famoso samurai da história japonesa. A mídia ocidental, azeitada em clichês, não cansa de fazer matérias comparando o comportamento dos japoneses à ética da classe guerreira que teve seu fim decretado por força de lei no século XIX, do desastre de Fukushima (os "samurais atômicos") ao papel soberano da Toyota no mercado americano, quando os asiáticos ultrapassaram o colosso chamado General Motors.

Essa visão é integralmente correta? A imagem dos japoneses como herdeiros dos samurais, cristalizada pelo governo imperial, cinema, mídia e cultura pop, estaria de acordo com a realidade? Não! Mas infelizmente até os japoneses acreditaram por muito tempo nessa ladainha e pagaram caro por isso. Como exemplo desse preço, trarei o caso do filme animado Hotaru no Haka (O Túmulo dos Vagalumes) do estúdio Ghibli, na intenção de mostrar que o desperdício de vidas humanas decorrente dessa deturpação histórica extrapola e muito o caso dos Kamikazes ou dos ataque suicidas em Iwo Jima. Com tal objetivo, será necessário traçar uma breve linha temporal do papel dos samurais na sociedade japonesa desde os primórdios.

Muito do que sabemos hoje sobre a origem dos samurais é turvo, pois realidade se confunde com mitos e folclore. Temos certeza, no entanto, de que eram guerreiros montados que defendiam senhores de terra locais em troca de parcelas das terras conquistadas. Eram arqueiros em montaria, mas com o tempo adquiriram novas formas de combate, como o combate físico, a espada (que se tornou a alma do samurai), a alabarda e mesmo a pólvora dos mosquetes. Sua importância para a sociedade japonesa da época (em torno do século VIII) não consistia apenas em defender e conquistar terrenos, mas garantir a cobrança de impostos dos camponeses, exigidos na forma de arroz. Muitos desses espaços físicos conquistados pelos samurais ficavam nas bordas do Império, áreas pouco exploradas pela distância da planície fértil de Yamato.

Como não existia dinheiro, os samurais se tornaram progressivamente mais poderosos devido ao acúmulo de terras. Eis que no século XIII o Japão sofre tentativas de invasão do mais extenso império (geograficamente) que a história já conheceu, os mongóis sob o controle de Kublai Khan (neto de Gengis Khan, o responsável pela unificação das tribos mongóis). Ao término da mal sucedida tentativa mongol, o Japão mergulhou em um século de guerras civis, responsável pela total desestabilização do poder de Kamakura. Não haviam mais terras para distribuir aos samurais que lutaram contra os mongóis, portanto, para recompensá-los, era necessário tomar as posses de outro senhor. Senhores de terra que foram arruinados pela ofensiva estrangeira e defenderam o Japão não foram recompensados pelo poder central e resolveram deslegitimá-lo, passando a agir por conta própria. Esses fatos pontuais, somados ao processo de erosão social que não cabe aqui, desestruturaram em absoluto o poder central do Japão e alimentaram o caos político e social.

Invasão Mongol - destruição das embarcações pelo tufão mais intenso do século XIII, nomeado kamikaze (os ventos divinos)

Nos desestruturados tempos de guerra civil havia mobilidade social. Toyotomi Hideyoshi, um dos três artífices da unificação japonesa, por exemplo, não tinha origem aristocrática e foi por um tempo o líder militar do país. Justamente ele, por saber como um plebeu poderia ascender em tempos de instabilidade, deu um fim nessa farra a partir de modificações na estrutura social japonesa. Hideyoshi mandou confiscar todas as armas dos camponeses e criou um estrato social dos samurais. Apenas eles detinham o direito de manejar armas. A sociedade japonesa, abaixo da família imperial e da nobreza, foi dividida em quatro classes hierárquicas: Samurais, camponeses, artesãos e mercadores (nessa ordem). Naturalmente, os samurais estavam acima dos demais num país comandado por chefes militares, onde o Imperador não passava de instância simbólica.

Os samurais, defendidos pela distinção de classe, passaram a viver de renda e a portar insígnias e direitos que os distinguiam dos demais. Como dito, apenas eles tinham o direito de portas espadas (usualmente duas), não podiam casar com pessoas de classes distintas (os samurais de classe mais alta também não podiam casar com samurais menos favorecidos) e gozavam de benefícios bem feudais, como o Kiri Sute Gomen, o direito de passar a fio de espada qualquer indivíduo de uma classe inferior que não o respeitasse como tal. Percebam que falo de um minoria privilegiada.

Ieyasu Tokugawa - unificador
Devo ressaltar que essa rígida estrutura social só foi possível porque o Japão, farto de sangue, conseguiu unificar um projeto político respeitado - mesmo que pela força - por todos. Regras só são respeitadas quando reconhecidamente possuem legitimidade por aqueles que devem segui-las. Acontece que, se o país agora estava estruturado socialmente, isso é sinal que não haviam mais guerras civis! O Japão da dinastia Tokugawa conheceu 250 anos de paz absoluta. O que fazer, então, com uma classe privilegiada, sugadora de renda, cuja única função é se preparar para lutas que não ocorrem mais? A cultura de paz alterou a identidade dos samurais quando eles perceberam que suas únicas habilidades já não eram mais necessárias.

O treinamento de corpo e alma deixou de ser satisfatório e muitos deles passaram a se dedicar à poesia, ao ensino das técnicas marciais (o início das escolas e estilos de artes marciais japonesas data desse período) ou mesmo viraram burocratas ou comerciantes ilegais. Também filosofaram bastante sobre assuntos como honra, morte, beleza, suicídio ritual etc. Para justificar sua posição social acima dos demais, apesar de sua inutilidade onerosa, faziam isso de modo apaixonado e estético. Como afirma Thomas Conlan:
"O comportamento do guerreiro tornou-se estilizado. A importância das artes marciais e crenças associadas aos samurais é uma invenção do século XVII. Quando havia paz no Japão e surgia a pergunta: 'temos esse oficiais com espadas que são pagos. Para quê eles servem? Não temos guerras!'. Por isso tentaram criar esse código de conduta."


Hagakure

Entre os séculos XVII e XVIII, vários pensadores começaram a escrever obras como bulas de como o samurai devia viver, ressaltando conceitos como honra pessoal, dominio das artes marciais, fidelidade cega, auto-disciplina e exemplo societal. Esse conjunto de ideais é o 'Caminho do Guerreiro'. Não existe uma cartilha definitiva de como um samurai deve atuar, e sim uma série de escritos, que divergiam de região para região, mas que injetavam anabolizantes nos preceitos do Bushidô. O Hagakure, escrito por Yamamoto Tsunetomo no início do século XVIII, é o exemplo mais consagrado de uma dessas produções, contando com códigos de conduta e mesmo detalhes de aparência do samurais.
"(O Hagakure) Tem descrições incríveis de como um samurai deve agir. Ele deve ser absolutamente limpo, ele deve cortar as unhas de certa maneira, deve carregar ruge na bolsa, pois pode morrer. E ao morrer não pode parecer pálido ou assustado, deve ter o rosto de alguém que escolheu a morte" - John Nathan

Não sei se já ficou claro, mas percebam como o comportamento samurai que reconhecemos hoje foi um adorno artificialmente forjado em tempos de paz! Quando o Hagakure foi publicado, ela já reinava por mais de oito décadas no arquipélago. Conlan exemplifica como os samurais dos tempos da guerra tinham uma postura muito mais pragmática em relação ao sacrifício:

"Um documento do século XIV dizia 'Atacamos o inimigo, mas sofremos baixas e fugimos'. Sem vergonha, sem morte. Não querem morrer à toa."

Samurais
A classe samurai, no entanto, levou os códigos de conduta a sério. Com a Restauração Meiji, e sua consequente dissolução da sociedade hierarquizada e proibição do porte de espadas, o samurai como classe foi definitivamente extinto da sociedade. O pensamento construído em torno deles não. O sistema compulsório de ensino transmitiu para a totalidade dos indivíduos os valores samurais, a divindade do Imperador e a superioridade da raça japonesa, herdeira dos deuses. Nas palavras de Karl Friday:
"O exército imperial japonês tomou os samurais como o principal símbolo para forjar um código ou uma cultura para seus soldados. O Exército distorceu isso. São valores japoneses, e somos todos samurais"
Cômico que o exército imperial era composto majoritariamente por  camponeses, enquanto o Código do Guerreiro samurai, usado pelo Estado para lavar cabeças frescas, era uma ferramenta de distinção social daqueles 10% de guerreiros do período feudal. Tanto que a diferenciação social  fica clara em trechos do Hagakure como: "Um samurai deve usar um palito de dentes mesmo que não tenha comido. Nunca demonstre as privações pelas quais você é obrigado a passar."

Não espanta a truculência das tropas japonesas em combate quando, mesmo claramente derrotadas, avançavam contra metralhadoras, preferindo a morte à rendição, como os ensinou a cartilha estilizada dos tempos de paz.

"Identificamos a consciência nos poemas de despedidas que eles escreviam e em outras coisas que, bem ou mal, recriavam, ou os conectavam, a algo do passado e que para eles era real." - John Nathan

Kamikaze
Não estou negando os valores e conduta dos samurais dos tempos de guerra, muito menos negando sua influência na construção identitária do povo japonês, mas acho essencial desvendar o que há por trás dessa história e os paradoxos de chamar o povo japonês como um todo de herdeiro de uma classe distinta e superior. Eu sei que antes, diante da mobilidade social, samurai era quem pegava em armas e demonstrava habilidade. Mas qual estereótipo foi usado para a propaganda, o samurai do século XIII ou o samurai do século XVIII? Justamente a construção minoritária.

"Um guerreiro deve ser cuidadoso e ter aversão à derrota. Se não tomar cuidado principalmente com as palavras, pode dizer coisas como: "Sou um covarde", "Quando a hora chegar provavelmente vou correr", "Que medo", ou ainda "Que dor". Essas palavras não devem ser ditas nem mesmo de brincadeira, tampouco num impulso ou quando se fala durante o sono." (Hagakure)
Hotaru no Haka - a capa do filme é a menina, de fralda e capacete, batendo continência. Preciso falar algo a mais sobre o período?

Como eu disse no início do texto, o moedor de carne resultante dessa dupla deturpação histórica não é verificável apenas em ataques desesperados ou na brutalidade da guerra. Hotaku No Haka exemplifica como o desvio conceitual não é apenas uma ferramenta aplicável em combate, mas uma estrutura de pensamento compartilhada pelos civis da época.

A animação - muito diferente do padrão Ghibli, dos tempos onde o Japão ainda tinha dinheiro para arriscar - narra a história dos irmãos Seita e Setsuko. O pai deles é convocado pela Marinha e nunca mais volta, enquanto a mãe morre devido a um bombardeio americano. O Filme mostra a tentativa de sobrevivência do jovem Seita cuidando de sua pequena irmã, num país devastado pela guerra e pela fome, e onde a miséria não se restringe à economia, mas abarca também a miséria humana. A brutalidade dos tempos de guerra, responsável por calejar a sensibilidade das pessoas que passam a ver qualquer absurdo como normal.

Grave of the Fireflies - título em inglês

Spoiler: O problema é que Seita é o responsável claro pela morte da irmã. Com a perda dos pais, ele deveria, se o objetivo era sobreviver com a irmã, se submeter às humilhações da tia. Como o fazendeiro de quem ele queria comprar comida disse, engula seu orgulho, peça desculpas e volte para os cuidados dela, pois em tempos de guerra é assim que se sobrevive. Seita, como um samurai, não tolerou o ataque da tia a sua honra pessoal e saiu da casa dela com a irmã, indo morar em condições insalubres. Se as condições já eram precárias para famílias com uma mínima estabilidade, o que dizer de duas crianças ao relento?



O pobre Seita, um gigante em coragem, que conseguia controlar seus próprios sentimentos em relação à morte da mãe e ao sumiço do pai para não assustar a irmã, foi uma vítima do período. Behavioristicamente preparado para pensar e agir como um samurai - aquele dos tempos de paz, não o real -, perdeu o que lhe era mais caro e, por fim, acabou se perdendo. Não apenas nas guerras do Pacífico as vidas dos japoneses foram jogadas na lixeiras, mas também em sua própria casa. Tomando o Hagakure como meio de vida, Seita seguiu suas lições: "O Caminho do Samurai é encontrado na morte. Entre ela ou qualquer outra coisa, não há dúvida: a escolha deve ser a morte."


Alguém ainda vê vaga-lumes hoje em dia?


@Otakismo



Fontes e Saiba mais:
Os Japoneses - Célia Sakurai
Os Samurais - History Channel (foi a base histórica do post)
Hagakure - Yamamoto Tsunetomo
O livro dos cinco anéis - Miyamoto Musashi

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