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O fenômeno kawaii

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Kawaaaiii neee

"Nunca acredite em alguém acima dos trinta."

No Japão, a atração pelo kawaii é uma força onipresente e poderosa. Os japoneses nascem e crescem respirando uma atmosfera saturada de algodão doce. Publicidade, mascotes, displays digitais...até a capa do celular de um executivo em seu terno plúmbeo. Tudo está inundado pela cultura kawaii. Mas, que diabos é kawaii?

Traduzir termos do japonês é sempre uma tarefa ingrata. O inglês tem uma que se aproxima um pouco: Cute. Já vi brasileiro traduzindo até como "filé" na intenção de tornar o termo mais familiar do público leigo. Não poderia ter errado mais, pois certamente alguém que leu pensou que a Cléo Pires é kawaii. Preciso de parágrafos pra explicar o significado desse termo na cultura japonesa, com o certo risco de não esgotá-lo.

O kawaii é algo que permeia o bonitinho, pequenininho, simples, mesmo tolo. É algo pueril, que remete à infância. O kawaii celebra comportamentos sociais e aparência física que tendem à doçura, adorabilidade,  genuinidade, inocência, pureza, gentileza, vulnerabilidade, fraqueza e inexperiência. Um estilo infantil e delicado, ao mesmo tempo que atraente e bonito.

imagem: http://miscelanya.wordpress.com/category/uncategorized/

A gíria kawaii é de longe a mais utilizada no Japão moderno. Segundo Sharon Kinsella, pesquisadora da Universidade de Cambridge, o fenômeno kawaii como o conhecemos se iniciou em meados dos anos 70, quando surgiu concomitantemente o crescimento da moda fashion infantilizada com uma moda entre as adolescentes japonesas de escrever cartas e bilhetes com letras arredondadas e pueris. O interessante é que esse comportamento não partiu da mídia, geralmente acusada de criar todos os modismos infanto-juvenis, mas sim de uma escrita underground durante o processo de romanização dos textos japoneses.

O japonês tradicional é escrito verticalmente, com variações na espessura do traço no processo de escrita. As jovens japonesas então passaram a desenvolver a kawaii handwriting, horizontalizada, da esquerda para a direira, feita com lapiseira para manter o traço uniformemente fino, arredondado, infantilizado, além de mesclar o texto com o idioma inglês, com katakana, corações, estrelinhas e emoticons aleatoriamente desenhados. Era um traço muito difícil de ser lido, mas os fins justificavam os meios. As escolas proibiram, professores não corrigiam provas com essa caligrafia, mas o modismo evoluiu de modo orgânico até virar um fenômeno nacional nos anos 80. Alguns exemplos de infantilização: Sexo virou Nyan Nyan Suru (miau, miau; miar ou algo semelhante) ou Kakkoii, que passou a ser pronunciado propositalmente errado como katchoii, pronúncia de um bebê incapaz de dizer a palavra corretamente.

O uso liberal dos traços sugere uma rebelião dos jovens contra o tradicionalismo do idioma e a cultura milenar japonesa, abraçando a cultura ocidental, vista como algo mais despojado e interessante na época (sobretudo a americana e a francesa). O estilo mais livre permitia uma relação mais íntima com a linguagem e facilitava a expressão dos sentimentos. Tanto que muitos slogans e refrãos são escritos em inglês ou francês. Quando o hábito começou a ser assimilado por estudantes mais velhos, percebeu-se que o ato estava menos ligado à uma inabilidade em escrever do que a uma expressão juvenil, contida no contexto onde os japoneses, influenciados pela mass-media e pelo universo publicitário, passaram a jogar a cultura tradicional para escanteio entre os anos 60 e 70.

Tuxedo Sam (imagem: http://www.nycupcake.com/?attachment_id=5000)

Quem conhece o fenômeno kawaii deve estar estranhando o foco em caligrafia juvenil quando a situação é muito mais ampla. Com razão, a caligrafia é a gênese do monstro. A situação tampouco se limita ao modo de se vestir, com roupas infantis, tons pastéis e chuquinhas no cabelo. Kawaii é um modo de falar, um estilo de vida,  um comportamento jovem. Exato, o kawaii não se expressa apenas na aparência, mas no comportamento das meninas (e em menor escala, também dos meninos).

Meninas com comportamento kawaii aparentam a maioria dessas características: passividade, vulnerabilidade, carência, desamparo, impotência. São doces, GENUÍNAS (essa palavra é importante) e simples. Entortam os joelhos, fazem biquinho, olham de baixo para cima desnorteadas, batem o pé e falam com voz doce, beirando a tolice. Mesmo no colégio, onde são forçadas ao processo de padronização com os uniformes de marinheira, dão um toque infantilizado numa presilha, num modo de amarrotar a meia. Essas jovens que se vestem com roupas virginais, agem e falam como criança são chamadas de burikko (fake-children).

Hello Kitty Kawaii Paradise (imagem: http://www.ant-network.com/4030/hello-kitty-theme-park-in-odaiba-called-hello-kitty-kawaii-paradise/)

Apesar da cultura kawaii não ter sido criada pelo universo business, foi por ele logo descoberta e rapidamente assimilada no início do boom consumista dos anos 70. Propagandas, embalagens, mangás, games, softwares de design incorporaram-na e deu-se início à era dos Fanshi Guzzu (Fancy Goods), os produtos kawaii. Seus ingredientes fundamentais: tinha que ser pequeno, arredondado, macio, tons pastéis, traço não-japonês (no sentido tradicional), aspecto sonhador e estiloso. Claro, geralmente estampando algum personagem igualmente arredondado e infantil, derivado de um mamífero, sem orifícios, sem extremidades, sem sexo, confuso, inseguro e desamparado.

O minimalismo é importante na criação de um personagem kawaii. Deve-se excluir tudo o que é descartável na transmissão da amabilidade do personagem. Braços, boca, pescoço, qualquer coisa que dilua aspectos kawaii. Reduz o desnecessário para estourar aquele traço simples e redondinho que faz os japoneses suspirarem "kawaaaaaiiii", naquele misto de derretimento e desejo de posse. Pensando por uma ótica de mercado, menos é mais. A Hello Kitty tem que caber até na presilha de cabelo. Os caras entendem de design...

As empresas japonesas, com dificuldades de criar diferenciação na oferta do produto/serviço pela forte concorrência, sempre recorrem à estética kawaii. As companhias aéreas ANA e JAL não conseguem diferenciar a oferta, o que fazem? A primeira pinta a fuselagem do 747 com Pokémons, a segunda com o Mickey. Taxas bancárias são controladas pelo governo, como tentar de destacar? Usando o Snoopy como garoto propaganda (Só a Sanrio, criadora da Hello Kitty, já fez negócios com 23 instituições bancárias). A coisa se universalizou tanto que muitos dos produtos e orgãos do governo são representados por esses bichinhos. Alguns exemplos:

Camisinha kawaii (imagem: http://www.sampsonstore.com/neovision/condom/product/details.is?cat_id=160&product_id=378)

Escavadeira kawaii (imagem: http://www.flickr.com/photos/littlegirllost1/favorites/page70/)

Prefeitura de Chiba kawaii
Tanque de gás kawaii

747 kawaii (imagem: http://pt.wikipedia.org/wiki/Kawaii)

Acho que agora deu para ter uma dimensão melhor da situação. Mas o que dá sustentação para isso? Essa infantilização da aparência que causa espanto no ocidente é justamente o que atrai o japonês. O que dá suporte à cultura kawaii é a noção romântica da infância como período puro, intocável, sem maldade.Yuuko Yamaguchi, gerente geral do departamento de character-design da Sanrio, diz que a estética kawaii cristaliza a vontade do japonês de nunca querer crescer, de permanecer no estágio infantil, de não abrir mão da candura, uma vez que a vida de adulto no Japão, mais do que em qualquer outra cultura, é um tempo extremamente penoso, de muitas responsabilidades e pressões.

A sociedade e a família japonesa, tendo consciência do espinhoso cotidiano dos adultos japoneses, consideram a infância um momento da vida absolutamente idealizado, portanto permitem aos seu rebentos momentos de felicidade idílica antes que eles cresçam e encarem o quase desumano estilo de vida japonês. Cria-se um ciclo vicioso, onde a criança, após uma infância artificialmente açucarada, sucumbe quando encara a dura realidade da vida adulta, e, sofrendo sindrome de Peter Pan, considera que ser adulto é intolerável, criando para seus próprios filhos a mesma tenda idílica para que eles aproveitem os únicos anos da vida que supostamente valem a pena.

"Eu não aguento mais!!" (imagem: http://blogs.asiantown.net/)

Jovens japoneses prestes a entrar na vida adulta, em sua maioria classificam essa nova fase da vida como um período desanimador, árido demais. Temem mais que tudo o peso das responsabilidades (com a família, sociedade, espaço público, política), do poder, da solidão, da perda dos sonhos e da resignação. Possuem uma visão muito nebulosa tanto do futuro quanto da sociedade japonesa. A vida adulta, diferente do ocidente, não é vista como um período de liberdade e emancipação pessoal, muito pelo contrário, a fase é vista como décadas de claustro que limita as potências individuais, apaga os sonhos e força o indivíduo a aceitar seu destino miserável.

A cultura kawaii é uma rebelião juvenil, uma recusa de cooperação com os valores sociais vigentes e com a realidade japonesa. Diferente da juventude ocidental que usa a insinuação sexual como meio de afirmação de maturidade e independência, os jovens japoneses caminham no sentido oposto, enfatizando sua imaturidade e incapacidade de lidar com as responsabilidades da vida adulta.

É ÓBVIO que a situação não se restringe a um mundo de confete e se espraia por campos sexuais. O padrão kawaii é o padrão de beleza dos japoneses, inclusive dos pais de família. Nada mais natural que o cidadão adorar a beleza infantilesca daquela cantora pop poucos anos mais velha que sua filha. Cantoras pop, aliás, que tentam enquanto podem simular menos idade do que realmente possuem (até não conseguirem mais e serem forçadas ao ostracismo). Beeem diferente do ocidente, onde as mulheres forçam a barra na tentativa de mostrar mais maturidade e sensualidade do que realmente possuem (Miley Cyrus, Britney Spears e outras adolescentes que bancavam o mulherão). O fenômeno Lolicon (Lolita Complex) é um problema social no Japão, e práticas inusitadas são frequentes, como o Enjo Kosai ou a venda de roupas íntimas usadas de adolescentes por correio.

Harajuku Fashion (imagem: virtualjapan.com)

Nota-se uma preferência masculina por esse padrão, mas as mulheres abraçam-no apenas para agradar o olhar dos homens? Não. Há uma intensa vontade de permanecer livre e fresca. As jovens japonesas tem paura só de pensar no papel social da mulher japonesa, madura e casada. Elas olham para o casamento de seus pais e desenvolvem uma única certeza: aquilo é tudo o que elas não querem para o futuro. Tanto que há dados sobre uma intensificação do interesse pela estética kawaii entre as mulheres prestes a casar. Falarei sobre isso de modo mais aprofundado quando explorar o tema yaoi.

Não é por acaso que o uniforme colegial de marinheira é o item nacional de fetichização sexual. Recorda-se que eu frisei a palavra 'genuína' lá em cima? O uniforme colegial simboliza para o japonês a verdade de sentimentos, uma fase da vida onde a mulher ainda não perdeu seus aspectos individuais para se moldar nos papéis sociais que lhe cabem, para passar o resto da vida esbanjando cinismo e dissimulação como preço do conformismo que tatuaram na testa. (esse é um fator, há outros que não cabem no assunto)

Fuku (imagem: http://joolyone.blogspot.com/2011/03/school-uniforms.html)

Japonesas feministas afirmam que a cultura kawaii é nociva por remeter ao histórico papel de submissão da mulher no país, encorajando o comportamento passivo em detrimento do assertivo e independente, condições ardua e recentemente conquistadas no arquipélago pelas mulheres.

A resistência ao kawaii não para por aí. Jovens que não se identificam com isso, como punks e roqueiros consideram-na uma estupidez boçal. Intelectuais criticavam não apenas a passividade da geração oitentista que fugia de qualquer responsabilidade, como o hedonismo individualista e consumista no qual se refugiavam, esses herdeiros da geração de 68 que fez Tóquio tremer nos protestos estudantis. Curioso que foram justamente esses estudantes que primeiro deram sinais de regressão, quando se rebelaram contra os métodos universitários e passaram a ler mangás em detrimento dos velhos clássicos. O movimento artístico Superflat vai atacar justamente a massificação da cultura sob a estrela da cultura pop japonesa, e nomes como Takashi Murakami e Yoshitomo Nara vão apontar seus dedos diretamente para a obsessão pelo kawaii que impregnou por toda a cultura japonesa.

A estética kawaii que antes era importada (Pingu, Snoopy); via globalização, ecommerce e subculturas na internet, passa a produto de exportação e encontra forte eco na Coréia do Sul, Taiwan e outros países asiáticos. Enquanto a juventude japonesa fugia do futuro que não projetava, bem como do presente que deixava de viver.

FONTES:
Cute Inc. - Mary Roach
Cuties in Japan - Sharon Kinsella
In Japan, cute conquers all - Brian Bremmer
Otaku - Étienne Barral

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