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Ero-guro e o cenário underground dos mangás

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imagem: http://dreamers.com/autores/17/suehiro%20maruo


  "O poeta francês Jean Genet escreveu: Sujeira abomina sujeira. Genial." Suehiro Maruo

Cabelos pontudos, olhos grandes e expressivos, cenas de ação e fantasia recheadas de superação, companheirismo e pitadas de amor. Jogue tudo isso fora, dispa-se dos estereótipos e entre no esgoto, mergulhe nu pelo lodaçal da cultura pop japonesa e chafurde na merda. Entregue-se ao escatológico e ache certo prazer nisso, como o protagonista do Cheiro do Ralo (de Lourenço Mutarelli) ao perceber que o aroma do simbólico ralo fedorento tornara-se sua atmosfera, finalmente sem dele fugir, aspirando cada baforada enviada diretamente do inferno. Isso é o que deve ser feito para compreender um nicho do cenário underground dos quadrinhos japoneses: o ero-guro.

O Japão é reconhecido pelo gigantismo editorial a serviço de uma população ávida por leitura que, como os americanos, tem nos quadrinhos uma manifestação nacional típica e muito apreciada. Os grandes geradores de caixa são os tradicionais títulos de Shonen e Shojo publicados nas grandes revistas semanais, caso da Shonen Jump, Young Jump e semelhantes. Seus grandes clássicos, historicamente, possuem a capacidade de cristalizar o espírito de uma época, dialogando diretamente com a juventude japonesa, e também por isso com capacidade de se tornar inesquecível. É nítido como a personalidade da Serena (Sailor Moon) é um retrato das meninas japonesas dos anos 80, despreocupadas, desmioladas, adoráveis, com uma crença cega e otimista no futuro, ainda que pouco dedicadas em construí-lo.

Se Naoko Takeuchi ficou milionária por traduzir a realidade aparente do seu período em nanquim, coube aos artistas enfiar a mão na merda e dar uma misturada para que as pessoas se lembrassem das fétidas  fossas que correm embaixo de cada quarto cor-de-rosa da pujante sociedade japonesa, cobrindo com sangue e dejetos os espectros até então invisíveis daquele povo.

A tolice adorável de Serena, um retrato da juventude oitentista (imagem: http://members.fortunecity.com/elbereth1/Sailormoonp2.htm)

É o caso do mangaká Suehiro Maruo (nascido em 1956), que abraçou o Ero Guro Nansensu (Erotic Grotesque Nonsense) como forma de tangibilizar sua visão de mundo. O Ero Guro Nansensu descreve um movimento artístico japonês dos anos 20 e 30 que perspassou principalmente pela literatura e arte pictórica. O Ero-guro focava seus esforços justamente na exposição do erotismo, corrupção sexual e decadência como um todo, servindo de abrigo para as expressões mais grotescas da sexualidade humana, abrindo as portas para o sadismo, masoquismo e toda uma série de parafilias. A influência maior vem do decadentismo europeu do século XIX. (É valido lembrar que guro não é gore!)

O Ero Guro Nansensu foi um fenômeno cultural burguês do período entreguerras que se propôs a explorar o bizarro, o ridículo, os desvios, encontrando eco na cultura popular do Período Taisho (1912-26), onde a atmosfera cultural japonesa remetia ao hedonismo e niilismo da Berlim no período Weimar (1919-33). A região de Ginza em Tóquio era o reflexo do caleidoscópio de influências européias no arquipélago, onde coexistiam cafés com estilo parisiense, cervejarias no padrão da Baviera e óperas italianas em meio aos traços da arquitetura japonesa típica.

Sapporo Beer Hall - cerveja já é mais consumida que sakê no Japão (imagem: http://www.photographersdirect.com/buyers/stockphoto.asp?imageid=2395284)
"A celebração do erotic (ero) em grandes proporções constitui uma rejeição a opinião do Período Meiji de que sexualidade é inadequada para exibição ou representação pública, a menos que esteja de acordo com os estreitos critérios da 'moral civilizada'. A ascenção do grotesque (Guro) anuncia um descontentamento semelhante pelos padrões estéticos predominantes, com seu foco em padrões tradicionais de beleza e encobrimento dos lados mais obscuros da existência. Finalmente, a valorização do absurdo (nansensu) assinalou um descontentamento com a repressão causada pelo acolhimento da moral e das convicções epistemológicas." Tradução livre de G. Pflugfelder

É nesse movimento artístico que alguns japoneses do ciclo underground buscaram inspiração. A exploração do Ero-guro nos mangás não tem apelo popular, pois seu conteúdo é obsceno; grotesco como o nome já adverte. Suas histórias com frequência (mas não obrigatoriamente!) abraçam temas como o canibalismo, coprofilia, pedofilia, zoofilia, vouyerismo, incesto e todas aquelas outras palavras terminadas em filia que nós nem imaginávamos existir. Seu conteúdo, extremamente visual e de roteiro geralmente simples, é apreciado apenas por aqueles aptos a se enfiar no submundo da humanidade, sem tapar o nariz ou fechar os olhos. Ou para aqueles que não querem cimentar o ralo, traduzindo para o underground tupiniquim.

Midori por Suehiro Maruo (imagem: http://vasta.blogsome.com/)

Se engana quem pensa que o Ero-guro visa o choque pelo choque ou a mera satisfação sexual de pessoas com distúrbios sexuais (pelo menos não nas mãos de seus principais representantes). A vida profissional do grande mestre desse estilo, Suehiro Maruo, deixa isso claro.

Maruo, o Marquês de Sade dos mangás, teve uma infância pobre e nunca foi adepto do estudo, aproveitando seu tempo na escola para desenhar, onde ficou maravilhado com a estética japonesa e alemã dos anos 20 e 30. Passou um tempo na cadeia nos anos 70 por roubar discos (Pink Floyd e Santana), período este aproveitado para aprimorar sua técnica e consolidar sua visão de mundo. Foi recusado pela Shonen Jump (de Dragon Ball, Yu Yu Hakusho e outros tantos) por enviar para análise uma história erótica e sanguinolenta. Foi também recusado no submundo da pornografia, pois realmente pouca gente estava disposta a, digamos, se animar com seu festival de sadismo doentio. Sua genialidade consiste em encontrar para si um lugar ao Sol, longe da mass-media e do universo pornô: a vanguarda artística.

Cabe aqui uma breve explicação para sua fascinação pela estética germânica. As autoridades japonesas do Período Meiji tinham um apreço grande pela dinânica prussiana (e consequentemente alemã) de conduzir as instituições públicas. Tomaram deles as bases para produzir a Constituição, o exército, o sistema educacional (sobretudo o superior) e até a arquitetura do Parlamento. Além disso a Alemanha fervilhava culturalmente nessa época, e nomes como George Grosz (telas, influenciador dos nascentes quadrinhos japoneses)  e Gerhart Hauptmann (dramaturgia), além dos óbvios filósofos (Schopenhauer, Nietzsche) serviam de inspiração e base de debates para as elites japonesas da época. A cultura japonesa estava muito alinhada com a alemã nesse período pré-guerra. Gostar de uma indica, quase que necessariamente, gostar da outra.

O Sade japonês (imagem: http://quadrinhosartesequencial.blogspot.com/2010/05/dos-quadrinhos-de-frank-miller-para-os.html)

A obra de Maruo - quase 30 livros em 20 anos, 3 deles publicados no Brasil  pela Conrad - muito apreciada pelas mulheres, em geral se passa no período Showa (1926-89). Seu impacto é visual, mas é possível notar uma forte profundidade em sua obra, que exclui qualquer chance de catalogar sua produção como meros hentais. Com algumas passagens reflexivas, e muitas referências filosóficas visuais, a obra de Maruo não é para qualquer um. Sade, Allan Poe, Freud, Bataille, Ernst e Salvador Dalí são só alguns nomes à quem ele faz referências indiretas para quem é capaz de percebê-las.

Ele possui um conjunto de características e fixações que o diferenciam. Talvez a mais óbvia seja a presença dos extremos. Suas histórias sempre flertam com a tênue (inexistente?) linha que divide prazer e dor, o horror do erótico. De maneira gráfica, o extremo está sempre batendo cartão com a relação entre as cores clássicas do mangá: o branco (inocência) e o preto (perversão), onde sempre o homem em tons pretos submetem as fêmeas animalizadas, de pele alva, aos seus caprichos psicopatas. Uma visão bastante curiosa sobre os papéis dos gêneros na esfera sexual.

Capa de DDT: Seria David Bowie, o camaleão, na posição em que morreu São Sebastião? Uma referência à sexualidade do escritor Yukio Mishima que teve sua primeira experiência sexual com o quadro de São Sebastião de Guido Reni e até se fotografou na mesma pose?

Suehiro denuncia, via exploração da juventude, uma sociedade que celebra as aparências enquanto esconde suas imoralidades embaixo do tapete. Para isso usa um conteúdo virulento que contrasta com a suavidade do seu traço.

Outras fixações que não podem ser ignoradas são os animais e o olhos. Em suas histórias são corriqueiros os personagens usando tapa-olhos, perdendo seus globos oculares, obtendo prazer estimulando os olhos alheios ou mesmo usando olhos de animais em seus atos doentios (em clara referência ao História do Olho de Georges Bataille). Confesso não ter entendido essa referência quando primeiro tive contato com uma hstória do Maruo, mas uma breve pesquisa logo elucidou a situação:

"Antes de História do Olho de Bataille e Sopa de Merda de Maruo, outro personagem também se desorbitou, perdeu os olhos: O Édipo de Sófocles, punido com a cegueira por haver feito sexo com a mãe. Freud, ao interpretar esse mito, associou a perda da vista à punição da criança que foi olhar seus pais a fazerem sexo. Bataille e Maruo adotam esse mito e o desdobram: simbolicamente, gozar com os olhos e penetrar pupilas desorbitadas é romper o tabu do incesto; portanto, voltar a origem, à estaca zero. Isso, admitindo-se, como postulam Freud e Lévi-Strauss, que o tabu do incesto, a interdição do sexo entre parentes sanguíneos, constituem a sociedade e a cultura." Claudio Willer

imagem: http://flying-teapot.blogspot.com/2008/12/suehiro-maruo-maruo-graph-exibition-i.html

Suehiro é apenas o principal nome de um circo repleto de artistas consagrados. Alguns deles são Shintaro Kago ("aquele que transforma merda em ouro"), Jun Hayami (aquele que nos mostra as perversões - estranhas e frequentes - daqueles que nós vemos e convivemos diariamente), Waita Uziga (adepto do humor negro e da exploração de temas como, distopias, corrupção e abuso de autoridade), Toshio Maeda (autor de Urotsukidoji, famoso no Brasil) e Henmaru Machino (O Magritte do Ero-guro, participante do movimento Superflat - certa fixação com animais).

Nomes como o de Horihone Saizou não repercutem fora do Japão pela ampla exploração de gêneros tolerados pelas leis japonesas mas proibidos na maioria dos países, como o lolicon e o shotacon.

Junko Mizuno é uma japonesa que ganhou notoriedade pelo estilo Gothic Kawaii, a mistura de bases kawaii com elementos de horror, violência e cunho sensual, tudo dentro de uma atmosfera psicodélica cheia de cores. Devido a internet, já virou fenômeno global e sua arte ilustra toda uma gama de produtos:

Junko Mizuno (imagem: http://ajani.ca/blog/?p=235)

Mizuno's T-shirt (imagem: www.nerdssomosnozes.com)

Particularmente não sou fã do gênero, tendo pesquisado mais pela curiosidade de saber o que acontece nos esgotos da cultura popular que me alimenta desde a infância. Reconheço que a obra de alguns nomes podem sim serem chamadas de arte, e que certos títulos extrapolam o junk para virar cult. Tenho interesse pela obra de Maruo e Mizuno, mas ele morre por aí. Já entendi o contexto que alimenta tanta bizarrice, e isso é o suficiente. Além do mais, o interesse nos dois é intelectual e artístico, pois a exposição da sexualidade na verdade me causa o efeito contrário...não é legal ou estimulante ver pessoas decepadas ou sem os olhos copulando...(se duvida, ou se é curioso, joga alguns desses nomes citados acima no Google imagens com filtro desativado e veja por si só).

Dentro do assunto, me agrada mais a abordagem do Marquês de Sade ou do cineasta Pier Paolo Pasolini. O italiano, em seu chocante Salò ou 120 dias de Sodoma, adapta a história de Sade ao período Fascista, onde jovens italianos conhecem o inferno nas mãos de alguns figurões poderosos e fazem um passeio nada agradável pelos três círculos: Das taras, da merda e do sangue. Segue um show de humilhações, violência e submissão criado com a intenção clara de chocar a audiência. Creio que no estômago o efeito foi o mesmo, mas Saló me fez pensar por um pouco mais de tempo que Maruo.

120 dias de Sodoma (Pasolini) - (imagem: http://exileonmoanstreet.blogspot.com/2010/04/pasolinis-salo-unbanned-in-australia.html)

Resumindo: Não recomendo o ero-guro para ninguém e só recomendo Maruo para quem tem real interesse em cultura japonesa ou na temática de Sade.

"Dizem que meu modo de pensar não pode ser admitido. E o que tem demais? Bem louco é aquele que deseja prescrever aos outros um modo de pensar. Não foi meu modo de pensar que provocou minha desgraça, e sim o modo de pensar dos outros." Marquês de Sade

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