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Haruki Murakami e o niilismo pós-industrial japonês

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"Respirando jazz, divertido, melancólico... Murakami é inteiramente um escritor do Japão moderno, nostálgico de um idealismo em extinção, atônito com a súbita riqueza "
The Washington Post


Stephen Armstrong possui uma descrição interessante para a produção literária de Haruki Murakami. Sua literatura seria semelhante à culinária japonesa: delicada, deliberadamente suave e curiosamente exótica. Se engana quem pensa se tratar de uma suavidade primaveril e idílica. O trunfo de Murakami está em cristalizar com palavras o atual espírito da juventude japonesa, empolgadamente perdido.

Muito influenciado pelo movimento estudantil nos anos 60, Murakami em seus romances flerta com o discurso crítico com relação à mercantilização da realidade japonesa ao mesmo tempo em que se opõe ao tradicionalismo das formas. Temos aqui um espírito híbrido, nascido em Kyoto no ano de 1949 que estudou artes cênicas no Departamento de Literatura da Universidade de Waseda. Haruki explodiu no Japão, onde já vendeu milhões de livros, quando Norwegian Wood foi publicado em 1987. Imediatamente após seu rápido sucesso,  fugiu de seu país natal para a Europa e posteriormente para os Estados Unidos (lecionou em Princeton), retornando apenas em 1995.

Haruki Murakami

Vencedor de prêmios como o Junichiro Tanizaki, Yomiui Literary Prize e Franz Kafka, Murakami é um dos mais importantes e influentes escritores da atualidade. Com obra traduzida em mais de 40 idiomas, suas palavras influenciaram até a grande película de Sofia Coppola, Encontros e Desencontros (Lost in Translation).

O estilo de Murakami balanceia realidade mundana com elementos de Realismo Fantástico (apenas para situar, Realismo Fantástico é uma escola literária forte na América Latina que insere elementos mágicos em cenários realistas, sem causar estranhamento nos personagens e sem a necessidade de oferecer explicações lógicas para tais elementos). Quase sempre explorando a primeira pessoa, Murakami costuma lidar com personagens jovens e perdidos, costurando o texto com elementos do universo pop, seja a música dos Bee Gees ou o garoto propaganda da Kentucky Fried Chicken (KFC). Não poderia ser diferente, pois o palco de suas histórias é um Japão mercantilizado e efêmero, regido pela cultura de massa.

Os intelectuais, adeptos dos rótulos, inserem sua obra no conceito de pós-modernidade. O pós-moderno na literatura seria a rejeição da fronteira entre estilos e níveis de arte. Não há mais divisão entre escrita de elite e texto de massa, mas sim um elemento final resultante do processamento entre ambos. O resultado seria a fragmentação das estruturas narrativas. A consequência seria a rejeição das tradições literárias puras, que além de chatas, não dariam mais conta de representar a realidade.

“Não há nada demais em escrever dessa forma, mas nada obriga a que todos os romances sejam escritos assim. Essa atitude apenas sufoca. Porém, ficção é algo vivo, que demanda ar fresco. Encontrei esse ar fresco na literatura estrangeira” (H. Murakami)
Versão cinematográfica de Norwegian Wood

Dentro dessa divisão, os japoneses o inserem no rótulo de escritor do niilismo pós-industrial japonês, uma sensação generalizada de desamparo perante metrópoles excessivamente mercantis, burocráticas e insensíveis, onde o afeto se apresenta com a escassez dos diamantes. O niilismo está presente na denúncia de anomia da sociedade japonesa. Os protagonistas de Murakami, ao contrário de seus discursos, costumam ser passivos vouyeurs de suas próprias vidas vividas a esmo (seu pensamento alinhado com Hideaki Anno).

O ponto é que a obra de Murakami aponta falhas sem ofertar possibilidades ou alternativas. Nas palavras de Wendy Nakanishi, a obra de Haruki "é caracterizada pela passividade, com sua atmosfera alternando entre uma diversão caprichosa e uma tristeza agridoce". Afinal, quem consegue propor opções para esse Japão? O   mérito de Murakami está mais em dar corpo a uma atmosfera histórica (para quem sabe ser do Japão atual o que Mishima foi do Japão imediatamente pós-guerra) que caminhos aos seus leitores.

Murakami acredita que a nação japonesa ainda é um povo em busca de identidade. Fizeram-nos acreditar que o progresso material os fariam felizes; eles chegaram lá e perceberam que não é bem assim... A crise em 1995 foi um golpe muito forte nas esperanças japonesas, e justamente nesse período as vendas de seus livros  conquistaram sensível aumento. Processo semelhante aconteceu nos EUA quando o 11/9 provou de uma vez que o Fim da História proposto pelo infeliz Francis Fukuyama era uma farsa; também lá os livros de Murakami estouraram em decorrência da crise de segurança do povo americano. Haruki enxergou o mesmo fenômeno também na Alemanha e Rússia.

Capa nacional de Minha Querida Sputnik

O legado de Murakami, ainda em construção, é universal apesar de japonês, uma vez que o cotidiano do jovem nipônico, em tempos de globalização, já não é mais tão diferente do dia-a-dia de jovens em outras sociedades pós-industriais como os EUA e o Reino Unido, ou mesmo em certos pontos dentro do Brasil ou Coréia do Sul. A tônica de sua obra é a perda de algo e seu vazio decorrente. Seja na perda de uma pessoa física, de uma ideologia, de uma época, os livros de Murakami sempre retratam jovens solitários em busca de algo para preencher um vazio que as conveniências da onipresente indústria são incapazes de suprir. Sua produção não é apenas japonesa, é atual. Dialoga com uma juventude global que, próspera, precisa de estímulos contínuos, pois se parar por um minuto que seja, desmoronam pela fraqueza dos alicerces. Agora entendo (quando li, alguns anos atrás, não havia compreendido) a abordagem crua da sexualidade em seus livros. Se não há significados ou objetivos a vista, um encontro quente com alguém pode ajudar a conquistar mais uma noite de sono tranquilo. E amanhã a gente vê o que faz...

No Japão Murakami divide opiniões. Quase unanimidade entre os jovens (alguns até decidem estudar em Waseda para viver o clima universitário narrado em Norwegian Wood), Haruki é muito criticado por um ala mais conservadora que o taxa de ocidentalizado demais, pop e até trash, preferindo os caminhos literários de Kawabata, Oe, Mishima e Tanizaki. Quando mencionei que ele fugiu do Japão por alguns anos, ele fugiu mais especificamente da elite literária do país. Ele não fugiu das tradições japonesas, mas de um círculo literário que defende a pureza restritiva da cultura. Murakami é confessor odiador dos livros de Yukio Mishima.
"Se está na plena escuridão, tudo o que pode fazer é sentar e esperar, até que seus olhos de acostumem com o escuro" Murakami

Haruki Murakami

Mesmo tendo seu nome ventilado como um provável ganhador de um prêmio Nobel, Murakami não é bem vindo no universo intelectual japonês. Entretando eu enxergo certa sinergia na visão de mundo entre Haruki e alguns dos que o criticam. Se a forma dele é pop ocidentalizada, sua visão de mundo condena justamente uma cultura que prega o poço do materialismo enquanto esquece propositalmente as atrocidades da guerra.

Suas criações são assumida e abertamente ocidentalizadas. Filho de pais literatos, cresceu lendo Pulp Fictions e escritores americanos como Scott Fitzgerald, ouvindo música ocidental (Norwegian Wood é uma música dos Beatles; Dance, Dance, Dance remete aos Beach Boys), sobretudo Jazz. Antes de começar a viver da pena, foi dono de um bar de jazz em Kokubunji (Peter Cat), o que lhe legou uma coleção com mais de 6 mil discos do estilo, influencia direta em sua escrita.

Murakami não escreve só romances. São de sua autoria também Underground (livro que tenta entender o ataque ao metrô de Tóquio pela seita Aum através do passado japonês - lançado em português só em Portugal) e Do que eu falo quando falo de corrida (lançado no Brasil pela Alfaguara). No mercado nacional, ainda pela Alfaguara temos Após o Anoitecer, Minha Querida Sputnik, Kafka a beira-mar e Norwegian Wood. Pela Estação Liberdade temos Dance, Dance, Dance e Caçando Carneiros. A Editora Objetiva lançou Norwegian Wood e Minha Querida Sputnik (já esgotados na versão da Objetiva mas ainda disponíveis pela Alfaguara). Os livros são bem caros, mas contam com tradução direta do japonês!

Haruki Murakami

Li Kafka a Beira-Mar e o famoso Norwegian Wood uns anos atrás. O primeiro trabalha com o gênero fantástico, o segundo não. Confesso que não gostei do modo como ele trabalhou os elementos mágicos, fiquei com a impressão que em certos momentos eles cumpriram a função de Deus ex machina mais do que seu sugerido papel (acostumado com o padrão Buzzati de fantasia, realmente não achei grande coisa). Kafka surpreende mais pelas pílulas de erudição que oferece durante a jornada. Norwegian Wood é um livro que prefiro reler antes de tecer comentários, principalmente agora que estou mais familiarizado com o universo do qual Murakami fala, mas sem dúvidas é um obra interessante. Conhecer a literatura de Murakami é entender um pouco mais os anseios e temores da juventude japonesa, que sempre tem algo a nos ensinar, já que eles vivem no que o Brasil tanto almeja chegar.

"Procuro uma casa com comida deliciosa, publico a matéria na revista e apresento-a a todos. Vá aqui. Experimente tal coisa. Mas qual a necessidade de se fazer isso? Não deveriam todos comer o que quisessem? Por que precisam da indicação de alguém até para achar um lugar para comer? Por que necessitam que alguém lhes ensine a escolher o menu? Sabe, as casas apresentadas nessas revistas vão decaindo no serviço e na qualidade à medida que ficam famosas. Isso acontece com oito ou nove entre dez, sabia? É porque se perde o equilíbrio entre oferta e procura. É isso que fazem as pessoas como eu. Cada vez que encontram algum lugar, vão destruindo-o com bastante esmero. Quando acham um branco puro, deixam-no todo sujo. As pessoas chamam isso de informação. A informação sofisticada nada mais é do que passar uma rede por todo o espaço do cotidiano sem deixar escapar nada. Estou cansado disso. Cansado de estar fazendo isso.” (Murakami)

Fontes:
 Ten things you need to know about Haruki Murakami (Stephen Armstrong)
Nihilism or Nonsense? (Wendy Jones Nakanishi)
Ouvindo a canção do vento - Jefferson Teixeira

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