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Karoshi: a arte de morrer trabalhando no mundo business japonês

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"Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro" (Sigmund Freud)

O mundo ocidental assistiu encantado à ascensão econômica nipônica nos anos 70 e se rendeu à eficiência japonesa quando as corporações asiáticas revolucionaram os processos administrativos na década de 80 e escancararam ao mundo como os grandes nomes da indústria americana tinham se tornado decadentes e demasiadamente burocráticos. Just in Time, Kaizen e Kanban se tornaram mantras nas escolas de administração e viraram referência até em livros didáticos de Geografia no Ensino Médio. Toyota era um exemplo de empresa séria, limpa, profissional, o oposto da onerosa e ineficiente General Motors, que repassava aos seus clientes os custos de seu atraso, entregando-lhes carroças pouco confiáveis debaixo de uma carroceria bonitinha. Em tempos de globalização, internacionalização dos mercados e manutenção da insatisfação, os japoneses eram os guias do capitalismo. Do pó a professores de administração de americanos e britânicos em menos de 50 anos.

A surpresa é também causada pelo exotismo. O mesmo responsável por filtrar a informação que flui do arquipélago pelas lentes da atratividade midiática. Quando ouvimos falar de Japão na grande mídia é: uma nova engenhoca tecnológica, um desastre natural de grandes proporções ou alguma matéria quadrada sobre dois ou três pontos da cultura milenar, como a cerimônia do chá e a alimentação saudável. Portanto, restritos em estereótipos, acreditamos que os japoneses tiram carros melhores do nada por graça divina, por superioridade de caráter, quando não, genética. A justificativa para sua supremacia técnica é a fonte em si; são japoneses, isso explica clara e suficientemente o alto nível, não precisamos esmiuçar detalhes, chafurdar em minúcias, nos parece natural que eles, em condições iguais, façam algo melhor que os outros. Vocês sabem, no @Otakismo a ideia é desconstruir esse verniz idílico que passam no Japão. Afinal, tudo que reluz demais, gera inerentemente algumas sombras.

Hiroko Uchino, então gerente de controle de qualidade da Toyota, morreu aos 30 anos de idade em 2002 durante o "expediente" (era 4 da manhã!), após trabalhar quase 500 horas extras em seu último semestre de vida. A empresa, hoje líder do setor automobilístico, na época ainda buscando ultrapassar a GM, alegou que não podia se responsabilizar pelo óbito, tendo em vista que ele estava fazendo um trabalho "voluntário" e não-remunerado (!). Trago esse exemplo simbólico para introduzir o karoshi, a arte de morrer literalmente por excesso de trabalho.

“O momento que sou mais feliz é quando posso dormir” (Hiroko Uchino, ex-gerente de controle de qualidade da Toyota)


Toyota - falemos um pouco do preço a ser pago pela 'qualidade total' do seu veículo  (real ou aspiracional)


O Japão é o único país que possui uma palavra para definir 'morte por excesso de trabalho'. Falamos de karoshi (karo = excesso de trabalho / shi = morte), um quadro clínico extremo, ligado diretamente ao estresse ocupacional, que se reflete clinicamente em morte súbita por sobre-esforço, geralmente resultando em ataque cardíaco ou acidente vascular cerebral. Dois fatos estão sempre relacionados aos casos de karoshi: sobrecarga de trabalho e ausência de sinais prévios da doença fatal.

O primeiro caso registrado de karoshi ocorreu em 1969, quando um trabalhador de 29 anos da área de distribuição de jornais da maior empresa japonesa do ramo morreu por infarto. O problema, no entanto, só foi reconhecido como tal e ganhou a devida atenção na década de 80, o auge da bolha econômica japonesa; inúmeros executivos de alta hierarquia, ainda jovens e sem sinais prévios de alguma doença, simplesmente morreram de modo súbito. O assunto caiu na mídia japonesa e quando isso ocorre, não tem como dissimular. Foi percebido que vários casos ainda nos anos 70 deveriam ser creditados ao excesso de trabalho, e chamou mais a atenção o fato de nenhum caso semelhante ter sido registrado no ocidente industrializado durante o mesmo período.

Em 1982 três médicos publicaram um livro chamado Karoshi, onde, a partir da análise de casos pessoais, eles traçaram alguns pontos em comum: longas horas de trabalho, jornada irregular e mais de três mil horas trabalhadas no período de um ano. A título de comparação, um trabalhador braçal britânico da Revolução Industrial trabalhava 3500 horas anuais e você estuda isso na aula de História como semi-escravidão (substitua o braçal pela pressão do trabalho intelectual numa multinacional japonesa e ganhe dimensões do fato).

Ser adulto no Japão...

Forçado pela pressão pública e diante da indesmentível realidade, o Ministério do Trabalho japonês passou a produzir e publicar estatísticas acerca do problema. Atualmente, o Ministério tem indenizado entre 20 e 60 famílias por ano, de trabalhadores que morrem devido ao trabalho, ou que se suicidam por depressão causada pela rotina profissional, mas críticos dizem que esses números não contempla a ínfima parcela de afetados pela situação. Seriam casos extremos, onde está mais do que provado o excesso.

Um pouco de estatística. 80% dos empregados japoneses cancelariam um encontro caso o chefe solicite hora extra, 90% negam viver sob um equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, 2/3 dos homens japoneses fazem mais de 20 horas mensais de serviço extra NÃO REMUNERADO e 4% fazem mais de 80 horas extras por mês. Uma entrevista com 500 trabalhadores do colarinho branco de Tóquio indica que 46% deles temem que possam eles próprios se tornarem vítima de karoshi, mas a ansiedade é ainda maior entre seus parentes. Check Ups, uma das medidas adotadas pelas empresas para tentar prevenir os casos, são insuficientes para detectar problemas de saúde decorrentes dos excessos ocupacionais, situação que deixa esposas e filhos aflitos com a possibilidade do provedor da casa ser a próxima vítima.

Existem estatísticas comparativas entre a jornada de trabalho do Japão em relação a outros países industrializados. Oficialmente, o japonês trabalha substancialmente mais do que um alemão, mas um número de horas semelhante ao americano, o que deixa claro que o problema nipônico está nas horas extras, na informalidade. 

“É porque tantas pessoas trabalham horas de graça que a Toyota colhe lucros. Espero que parte desses lucros possa voltar para ajudar os empregados e suas famílias. Isso faria da Toyota uma verdadeira líder global.” Esposa de Uchino

O estado do cidadão...
O japonês colocou o seu país no topo do mundo, mas não por acaso. Mais de 12 horas diárias de labuta, seis ou sete dias por semana, sem férias por ano a fio... Como consequência, o Ministério da Saúde publicou em 2007 alguns números relevantes. Naquele ano, 189 trabalhadores morreram pela rotina de trabalho e outros 208 ficaram gravemente doentes pela mesma razão (estamos falando de números oficiais, a realidade extrapola isso em muito!). Outros 921 afirmaram terem se tornado doentes mentais pelo excesso de trabalho, enquanto 201 tentaram ou consumaram o suicídio alegando perturbação mental pela saturação de labor.

O governo japonês, apenas agora reconhecendo de fato a extensão do problema, passou a transmitir às empresas a responsabilidade pelos esforços demasiados dos seus funcionários. "Em 29 de abril de 2008, uma empresa foi condenada a pagar ¥ 200 milhões para um homem com excesso de trabalho em um coma". A lei também busca impor limites para as horas de trabalho extraordinárias e maior assistência médica preventiva e rotineira.

As famílias das vítimas passaram a processar as empresas na esperança de obter ao menos alguma indenização, mas, para recebê-las, precisam provar que a morte foi diretamente decorrente do trabalho, o que custa muito tempo, dinheiro e várias seções judiciais. Muitos acabam desistindo do sou potencial direito pela dificuldade ou mesmo impossibilidade de provar de modo indesmentível. Nesse ponto é difícil condenar Justiça e corporações japonesas, pois as indenizações contemplam também os suicídios supostamente motivados pela sobrecarga profissional. Convenhamos, depressão não é algo muito tangível e uni-fatorial para que possamos, em todos os casos, bater o martelo contra o lado mais forte sem um diagnóstico clínico. Em outros casos, não há exames prévios que garantam o prévio estado sadio da vítima.



Algumas medidas foram oficialmente tomadas por parte das principais empresas do Japão. A Toyota, por exemplo, limita o número de horas extras mensais para 30; A Nissan possibilita trabalhar em casa, a Mitsubishi criou o dia sem hora-extra. Nada adianta se não existir o real comprometimento de todos os lados, ao contrário, leis e canetadas que limitam horas-extras podem trabalhar justamente no sentido oposto. Antes ao menos eles recebiam um pouco pelo excedente, agora nem isso quando ultrapassam o limite autoimposto. Não adianta inventar regras contra o excesso de trabalho se a demanda sobre o trabalhador segue inalterada, se a carga de atividades a qual ele deve dar conta não é humanamente possível de ser realizada no tempo útil. O resultado é degradante: o cara leva serviço para casa, ou pior, fica trabalhando no escuro dentro da própria empresa, uma prática que se tornou comum nos últimos anos. Sem receber pelo excedente que ultrapasse o limite, é óbvio.

Devo deixar claro que excesso de trabalho é um mal contemporâneo, jamais japonês. No início dos anos 70, o psicanalista americano Herbert Freudenberger definiu a Síndrome de Burnout (burnout de consumir por completo, não é um nome francês), uma síndrome de esgotamento físico e mental relacionado à vida profissional. Segundo o nova-iorquino, a síndrome é composta por 12 etapas que podem se suceder, alternar ou ocorrer ao mesmo tempo: Necessidade de se afirmar, dedicação intensificada, descaso com as próprias necessidades, recalque de conflitos, reinterpretação de valores, negação de problemas, recolhimento, mudanças evidentes de comportamento, despersonalização, vazio interior, depressão, síndrome de esgotamento profissional.

A diferença reside no fato de que os ocidentais chegam no limite, mas murcham antes de estourar. O problema explode já num estado grave mas não terminal, há possibilidade de reparação. O japonês vai em frente até de fato morrer...

H. Freudenberger

O que os levam ao limite extremo? Há sim fatores culturais, mas não exclusivamente. Seria confortável demais apenas atribuir o problema a distinções de cultura e tocar a bola. Especialistas colocam a culpa sobretudo na racionalização produtiva do Japão pós-guerra. A partir da crítica ao Japanese Production Management (JPM), especialistas atentam para o fato de que as diretrizes empresariais japonesas não caminham apenas no sentido da qualidade total no desenvolvimento e produção do produto; o real diferencial competitivo do Japão está na redução do custo de trabalho via corte de 'resíduos', isto é, tudo o que não é absolutamente imprescindível na produção.

São resíduos de produção: pausa para o xixi, coffee break, tempo de almoço, férias, feriado, deslocamento do funcionário pelas instalações etc. Parar a produção noturna, então, o pior dos prejuízos. Portanto, muito do esforço japonês de corte de custos na produção se dirige ao processo de trabalho, numa intensificação dos preceitos Tayloristas, o cientificismo exacerbado no processo produtivo. É super eficiente projetar a planta da fábrica de modo a facilitar a circulação dos gestores. Mas também é eficiente que o funcionário tenha medo de tirar férias ou mesmo de usufruí-las integralmente. Entendeu como o Japão - sob a estrela da Toyota - puxou o tapete de americanos e europeus? De graça é que não foi... Evidente que um funcionário francês, com 30 dias úteis de férias anuais não vai produzir como um cavalo nipônico.

“As empresas japonesas usaram o silêncio de seus leais trabalhadores como uma arma na competição internacional. Os funcionários estão cansados de serem usados dessa forma” Kiyotsugu Shitara - diretor do sindicato dos gerentes de Tóquio

Tá foda...

O resultado disso em demandas sobre o funcionário (denominado 'colaborador' nos dias de hoje) são jornadas noturnas, horas-extras remuneradas ou não, trabalho 'voluntário', trabalho em casa, trabalho nas férias etc. Para forçar os 'colaboradores' nesse sentido, as empresas japonesas oferecem um piso salarial baixo, mas amplos rendimentos baseados em resultado, os tais bônus meritocráticos (a pouca diferença salarial na hierarquia corporativa japonesa é aparente). Desempenhou, vai ganhar muito dinheiro, mas esse nível de desempenho cobra incontáveis horas de labor excedente. E diferente do que imaginamos, as horas  excedentes são mal remuneradas, o que traz retorno é resultado, percebam a sutileza.

Outro ponto extremamente prejudicial para o funcionário japonês é o deslocamento para casa. Numa cidade superlotada como Tóquio, pouquíssimas pessoas tem bala na agulha para morar perto dos centros de importância, logo, a maioria precisa se deslocar para os afastados subúrbios da cidade, uma viagem demorada, que geralmente leva mais de uma hora, no trânsito caótico ou dentro de um metrô igualmente abarrotado. A cereja no bolo para o delicioso dia útil do japonês. (isso quando o cidadão não precisa dormir num hotel-cápsula ou numa lan-house).



Você diz: tá, entendi que o japonês tem motivos para ficar muito estressado, mas ainda não captei o porquê dele, diferente do americano, chegar ao nível do óbito ao invés de apenas adoecer e pular fora antes de morrer. Com toda a razão, pois segue agora o motivo.

Falei acima sobre jargões administrativos consagrados pelos japoneses, como o Just in Time, Kanban, Kaizen, Defeito Zero, Qualidade Total... o segredo por trás do karoshi, que aliado aos fatores culturais japoneses, está no Kaizen. Ao propor a melhoria contínua com programas de sugestões ou criação de pequenos grupos para a resolução de problemas corporativos, as empresas japonesas inculcaram no seu público interno que seus objetivos são os mesmos da companhia. Não é a toa que uma bebida energética teve como slogan no Japão: "Você pode lutar 24 horas por sua corporação?" (ok, eu sei que o Kaizen prega também a melhoria contínua na vida dos colaboradores, mas prática e teoria, quando confrontadas pela dinâmica dos negócios e pela lógica do capital, muitas vezes não coincidem). Desse modo, vida profissional e pessoal têm suas fronteiras diluídas, tornam-se uma coisa só. O japonês tem mais dificuldade de passar a régua e falar "chega!".

Um eficaz modo de conseguir isso é enfraquecer os sindicatos. Muitos dizem que um dos fatores de sucesso da Toyota é o prévio acordo com sindicatos para evitar de todo o modo a possibilidade de paralisação da produção. Sociólogos japoneses afirmam que na realidade não ocorre um acordo tão honesto como nos vendem. Diferente das automobilísticas americanas, que negociam com as poderosíssimas Unions de Detroit, as empresas japonesas subjugam os sindicatos por vias formais e informais. A incidência de greves diminuiu menos por precaução empresarial do que por "fascismo corporativo" (termo da sociologia japonesa), que transforma o sindicato em fantoches, meras fachadas que tendem a acatar os interesses empresariais em detrimento do bem estar social dos trabalhadores. (que fique claro, estou falando de Japão, não faço ideia de como as empresas japonesas se comportam em outros países)

Os japoneses estão sendo forçados a pensar mais sobre seus próprios interesses, algo que eles não estão acostumados a fazer. As pessoas estão vagarosamente percebendo que existem meios legais para se defenderem caso se sintam prejudicadas”  Yoichi Shimada -professor de direito da Universidade de Waseda



Estafa física e emocional, mesmo no Japão, chega em um ponto onde torna o funcionário improdutivo, mas isso não quer dizer que as empresas japonesas estão muito engajadas nisso. A concorrência barata e qualitativa de sul-coreanos e chineses, além da recessão da economia nacional e as crises econômicas de EUA e zona do euro jogam uma pressão maior nas empresas japonesas.

É verdade que a demanda por exportações japonesas está caindo, mas justamente por isso a insegurança cresce, afinal, inúmeros funcionários estão sendo demitidos. Se antes os japoneses trabalhavam muito para dar conta do crescimento, hoje continuam fazendo... para não perder o emprego. Anteriormente, ao menos, estabilidade era uma característica intrínseca do mundo corporativo nipônico.

Isso complementa o assunto sobre os herbívoros. Nova masculinidade? Retorno às raízes? A molecada está fugindo dessa vida lamentável em grandes corporações, abrindo mão de altos rendimentos e promoções por um mínimo de qualidade de vida.
Matsushita? Honda? Go hell!

Além do herbivorismo, outra prática que ganhou força no Japão foi o Slow Life, movimento criado na Itália com alguns valores para uma vida bem vivida no mundo atual. Com o crescimento no número de pessoas que preferem uma vida mais calma do que uma existência calcada na competição, velocidade e eficiência, o Ministério do Meio Ambiente do Japão reconheceu e mencionou o termo em seu Relatório Oficial Ambiental de 2003. Alguns valores do Slow Life são: slow pace, slow food, slow wear, slow industry etc.

" No final do Século XX, o Japão valorizava e buscava um estilo de vida "rápido, barato, conveniente e eficiente", que proporcionasse prosperidade econômica. Porém, esse estilo também causou problemas tais como a desumanização, doenças sociais e poluição ambiental" Declaração Slow Life" adoptada pela cidade de Kakegawa em 2002:

Carl Honore tem um livro com valores semelhantes, chamado Devagar, onde mostra, por estudos de caso, como é possível ter uma vida rentável sustentada sobre os valores da desaceleração, e como muitas pessoas estão optando por isso mundo afora. Segue a sinopse:

Carl Honoré mostra que a cultura da velocidade teve início durante a Revolução Industrial, foi impulsionada pela urbanização e cresceu desenfreadamente com os avanços da tecnologia no século XX. Com o mundo em plena atividade, o culto à velocidade nos impeliu ao colapso. Vivendo no limite da exaustão, estamos sendo constantemente lembrados por nossos corpos e mentes que o ritmo da vida está girando fora de controle. Este livro traça a história de nossa intensa relação de pressa com o tempo, e atrela as conseqüências e charadas de viver nesta cultura acelerada, criação nossa. Por que estamos sempre com pressa? Qual a cura para a falta de tempo? É possível, ou até mesmo desejável, desacelerar? Percebendo o preço que pagamos pela velocidade implacável, as pessoas em todo o mundo estão reivindicando o tempo delas e desacelerando o passo - vivendo mais felizes e, conseqüentemente, de forma mais produtiva e saudável. Uma revolução 'Devagar' está acontecendo.



Finalizo o post mencionando um joguinho sinistro, uma espécie de Prince of Persia às avessas, chamado Karoshi - Suicide Salaryman. Seu objetivo é...morrer! É um Puzzle ao contrário, onde você precisa quebrar a cabeça para resolver os enigmas de cada fase e conseguir, enfim, o tão esperado suicídio. Eu heim!




Fontes e Saiba Mais:
Recession Puts More Pressure on Japan's Workers - (Ian Rowley and Hiroko Tashiro)
Japanese salarymen fight back - (Martin Fackler)
Karoshi-Death from overwork: Occupational health consequences of the Japanese production management - (Katsuo Nishiyama and Jeffrey V. Johnson)
Karoshi and the Economic Crisis - (Denelle)
Jobs for Life: Japanese employees are working themselves to death - (The Economist)
http://agricultoresdesofa.blogspot.com/2011/07/o-movimento-slow-life.html

Hikikomori, o eremita do Japão contemporâneo

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"Eu não sei o que faço. Nada de importante. É tão ruim ficar em seu quarto?"

Os eremitas cristãos são aqueles que desejam profundamente um distanciamento do mundo tal como vivem as pessoas ordinárias (não clérigas) e buscam na oração uma aproximação com Deus. No Japão, comportamento semelhante é verificável numa parcela da juventude, mas motivado por razões e objetivos em absoluto distintos. Trata-se dos hikikomori, pessoas que deixaram de enxergar atrativos na sociedade, rejeitam a relação com o mundo exterior e se isolam em seus quartos, dedicando toda a sua energia vital em mangás, jogos eletrônicos e interação virtual. Impactados pela crise econômica japonesa do início dos anos 90, o movimento é comumente denominado 'Parasitismo social', 'A geração perdida' e 'Os milhões perdidos'.

Hikikomori era um termo japonês usado para descrever pessoas que se retiravam para o campo após a aposentadoria, mas foi re-significado pelo psiquiatra Tamaki Saito como um estado agudo de isolamento social e doméstico. Descreve hoje pessoas de 15 a 40 anos que evitam a todo custo o contato social - mesmo visual - trancando-se em seus quartos por meses ou anos a fio, literalmente. Grupo majoritariamente masculino (80%), muitos acima dos 30 anos, os hikikomori estão se tornando a nova doença social do Japão contemporâneo.


O número de pessoas afetadas pelo problema é demasiadamente impreciso, tanto pela desonestidade de alguns pesquisadores, que fraudam números para fazer alarde, quanto pelas famílias vitimadas que escondem a situação do governo, da escola e da sociedade como um todo. Saito chamou atenção para o caso usando números superiores a um milhão de cabeças. Posteriormente, análises estatísticas cruzadas mostraram que o número apresentado era fraudulento, sem base científica. Estimativas mais sóbrias indicam uma variação de 50 mil a 350 mil de pessoas realmente afetadas. O Ministério da Saúde do Japão estima 70 mil pessoas atingidas pelo fenômeno.

Um aspecto notável no caso dos hikikomori é o quão pouco se faz necessário para empurrar a pessoa ladeira abaixo. Quase todos os casos de reclusão são ativados por alguma espécie de fracasso pessoal, como uma demissão,  não ser aprovado no vestibular, não conseguir uma namorada ou quimeras do gêneros. A primeira geração já está na faixa dos 40 anos, ainda vivendo na casa dos pais e sem experiência profissional.

Na última década, o fenômeno se tornou uma epidemia social. Como a anorexia, que fica restrita ao lado ocidental do globo, a síndrome do isolamento doméstico é talvez outro exemplo dentre as quais prosperam em determinada região num dado período histórico. É fato que alguns dos hikikomori sofrem desordens mentais como esquizofrenia e depressão, mas a maior parte dos vitimados não é diagnosticada com alguma doença psíquica ou neurológica. É necessário tomar o cuidado de distinguir causa de efeito colateral. Uma coisa é um problema mental que levaria o cidadão a se isolar em seu quarto, outra são as consequências, os sintomas de se passar tanto tempo isolado num cubículo sem contato pessoal, num verdadeiro processo de atrofia cerebral.


Um fator cultural ajuda a agravar a situação: vergonha. Tanto os hikikomori quanto suas famílias não costumam procurar ajuda. O enclausuramento do filho é considerado uma vergonha para a família que, na impossibilidade de encontrar meios efetivos e toleráveis de auxílio, acabam deixando o filho em casa na vã esperança de que ele melhore por si só de forma espontânea. Admitir publicamente o fracasso social do filho seria assumir a incapacidade de educá-lo como um japonês, um ataque visceral à honra familiar.

Como consequência, o estilo de vida característico dessas pessoas se limita a dormir durante o dia, varar madrugadas na frente do computador ou televisão. Geralmente obcecados por games e MMORPGs, os únicos laços sociais que recebem manutenção são os da internet, sempre protegidos pela máscara do avatar. Conforme o tempo e a idade avançam, diminuem as chances de uma reinclusão social, tendo em vista que as habilidades sociais, se um dia existiram, se atrofiam dia após dia. Hikikomori que ficaram mais de um ano reclusos em seus quartos geralmente emergem sequelados para o resto da vida. Mesmo que consigam sair da toca (e muitos não saem!), não conseguirão mais manter relações sociais que não sejam imediatas nem um emprego em período integral, na dura concorrência por uma boa vaga no Japão.

"Claro que quatro anos de reclusão podem causar sérios prejuízos à mente de uma pessoa. E o mais fatal desses prejuízos é na comunicação com terceiros..." (Tatsuhito Sato - personagem hikikomori do mangá Welcome to the NHK!)
Tatsuhiro Sato

Evidente que isso não é um problema apenas para atingidos diretamente e seus familiares. O Japão como um todo sai arranhado numa época onde sua economia já sangra há duas décadas e ninguém sabe como costurar o corte. O país já conta com uma baixíssima taxa de natalidade e com uma das mais envelhecidas populações do mundo. Se a conta da previdência não bate de modo orgânico, o que dizer quando considerável parte desses jovens pouco faz para produzir essa riqueza (herbívoros) e um grupo menor, de modo ainda mais extremo, não apenas deixa de produzir como também passa a depender de um estado já deficitário nesse sentido, que se desdobra para tentar amenizar os resultados desastrosos de seus excessos. A taxa de recusa à escola, isto é, de garotos que abandonam os estudos e deixam de ir ao colégio, simplesmente dobrou desde o estouro na bolha há duas décadas. Falamos de Japão, lá ninguém abandona os estudos para trabalhar, a motivação é sempre de ordem da inabilidade social.

O estereótipo do hikikomori é do cara que fica realmente 24 horas trancado em seu quarto e seus pais deixam a refeição na porta - alimentando-o como um animal doméstico - três vezes ao dia. Isso existe, mas geralmente eles esporadicamente se aventuram fora de casa uma vez por dia ou por semana, para comprar comida nas lojas de conveniência. Desse modo, ele não precisa que a mãe cozinhe sua comida (apenas que pague seu bentô, claro) nem se expõe à uma refeição em público. Importante, essas presepadas ocorrem sempre de madrugada. As atendentes dessas lojas trocam poucas palavras - quando trocam - com os clientes e desse modo o hikikomori também não precisa encarar belas estudantes ginasiais/colegiais nem assalariados em seus ternos (que estão, é claro, dormindo), resquícios de uma vida que não lhe pertence mais.


Quarto de um hikikomori

Algumas pessoas enxergam no hikikomori uma variação extrema e restrita do fenômeno otaku, que já ganhou proporções de massa:

“Mas o que difere os otaku dos hikikomori? Qual é o limite entre a dedicação maníaca aos quadrinhos e a vida solitária fruto de uma escolha consciente? Embora o isolamento social seja um aspecto comum aos dois casos, os hikikomori protegem-se fisicamente dentro de seus quartos, enquanto os otakus isolam-se subjetivamente dentro de um universo midiático." (Chirstopher Ullhaas e Carola Bimbi no artigo Geração Mangá)

“O hikikomori afunda e, sem trabalho psicoterápico, o retorno à sociedade parece impensável. Já o otaku é ativo, criador.” Michael Manfé



Os estudos do assuntos convergem em traçar três pilares fundamentais que sustentam essa doença social. Essas três forças sociais seriam: A desregrada expectativa sobre a classe média jovem, pressão acadêmica abusiva e a estrutura familiar da nova família japonesa. Milhares de jovens não dão mais conta do alto nível de perfeccionismo exigido nas tarefas cotidianas, acarretando um tsunami de baixa estima, e esse comportamento isolacionista é uma das facetas resultantes.

A expectativa sobre o jovem japonês é um fardo pesado e cobrado demasiadamente cedo. Ela cobra adaptação e sucesso na vida por apenas uma rota aceitável, da educação prestigiada, um traço inconciliável com o atual estado da economia japonesa. A nova economia global demanda um novo tipo de profissional, comunicativo, empreendedor, livre pensante e pró-ativo; enquanto o sistema educacional japonês segue preparando os japoneses com habilidades técnicas cada vez menor importantes, deixando na boca de muitos deles um sabor de inadequação e desamparo. A situação é problemática, pois sem a técnica você não é ninguém num país que oferece educação compulsória de alto nível para a maioria da população, logo, habilidades pessoas cada um que desenvolva por si só. Comunicação interpessoal é uma habilidade pouco dominada por parte desses jovens, e as famílias nipônicas, cada vez menores e mais alienadas em si, o oposto da tradicional família japonesa numerosa e coletivista, não conseguem mais ajudar seus filhos nesse sentido. (e tem gente afirmando que a ocidentalização do Japão é só aparente...)

"Se você tem um filho que destoa da média, isso é motivo de grande vergonha. Por isso, os pais preferem ocultar o problema e não tomar nenhuma atitude para não se sentir humilhados" Kyoko Nakagawa (psicóloga)



O sistema educacional japonês ensina mais a memorizar do que a pensar, resultando numa sociedade que se baseia menos no raciocínio crítico que na adequação ao grupo e às regras. Muitos casos são antecedidos pelo ijime (bullying), a humilhação diária destinada àqueles que se destacam da coletividade, como ser gordo demais, inteligente demais, com dificuldades de aprendizado ou mesmo que se destaque em modalidades esportivas. Nenhum japonês tem o direito de se destacar no grupo - positiva ou negativamente - destoar dos demais sem virar um potencial alvo de gozações e humilhações. Além disso, o ritmo desse sistema é exasperante desde cedo. A pressão começa ainda no ensino ginasial, que determina, por rendimento, em qual escola o aluno cursará o colegial, que consequentemente determinará quais universidades ele conseguirá disputar, e por fim, isso determina em qual empresa ele conseguirá um emprego. O aluno japonês já sofre com cargas desumanas de estudo desde o início da adolescência. O governo, percebendo os excessos no seu sistema, até puxou o freio, limitando as aulas aos sábados, por exemplo. Que diferença fez? Explodiu no arquipélago cursinhos preparatórios para o ensino médio, que os alunos frequentam após o curso integral em seus colégios públicos. A competição é ferozmente estimulada desde o princípio, ninguém pode comer poeira dos concorrentes de 13 anos...

O fator familiar, sobretudo a relação mãe-filho, é outro grande responsável pela condição degradante desses seres humanos. Ao proteger e sustentar eternamente seus rebentos, as famílias japonesas alimentam a situação. A relação mãe e filho, especialmente os homens, no Japão é muito distinta e falarei disso em outro post.

"O gatilho que aciona esse comportamento varia enormemente, mas a sensação de não conseguir corresponder à expectativa da família ou da sociedade está sempre presente no hikikomori" Tamaki Saito (psiquiatra)



Os hikikomori são aqueles que não aguentam a pressão de concorrer pelos melhores postos sociais e se resignaram em suas condições miseráveis, numa espécie de retirada estratégica. "Por sentirem que falharam com a sociedade, ou que esta falhou com eles", dentro de uma nação que não vê com bons olhos a expressão dos sentimentos, esse grupo prefere guardar para si seus afetos e afetações, enquanto guardam a si mesmo em seus quartos. Lá, ao menos, há espaço para o florescimento da autonomia e da individualidade reprimida pela sociedade.

Não foi por acaso que os casos pipocaram na segunda metade da década de 90, quando a economia entrava em recessão e esfarelava o sistema de emprego vitalício consagrado nos anos 70 e 80. Mas será mesmo que esse fenômeno é uma derivação exclusiva da sociedade japonesa? Muitos especialistas acreditam que não. Na Coréia do Sul, país que também nutre fortes relações com o pensamento confucionista e tradição de laços familiares, também há casos extremos de isolamento, quase sempre ligados ao vício com games eletrônicos. Saito afirma que casos de reclusão social são mais numerosos em países ocidentais de forte tradição familiar (Itália e Espanha) que individualista (EUA).

O psicanalista Lucio Artioli diz que o fenômeno hikikomori é o rótulo japonês daquilo que Freud cunhou como neurose obsessivo-compulsiva. Atingindo com maior incidência os homens, afetados pela impotência psíquica decorrente de algum fracasso passado que resultou em um trauma, não seria de se estranhar casos semelhantes por todos os lados do planeta. Mas o fato é que diferente de todos os outros países, que enfrentam problemas pontuais, no Japão a numerosa realidade ganha contornos mais perversos. Não há, na verdade, um consenso sobre isso e as opiniões sobre a universalidade do problema divergem.

"A sociedade japonesa não tem espaço para as diferenças – é como um trem de um único vagão. Quem não consegue embarcar nele fica na plataforma para o resto da vida" - Yutaka Shiokura (jornalista)


Em outras nações, jovens que não se sentem bem na própria pele adentram em subculturas urbanas, na toxicomania. No Japão, onde ainda se preza muito a uniformidade, a aparência e a reputação, casos como o Hikikomori são inevitáveis. Jovens, envergonhados de si mesmos, se escondem da sociedade, camuflando assim seu fracasso, real ou percebido.

Em 2007 o governo japonês implantou um sistema público de assistência ao hikikomori. Assistentes sociais - em geral estudantes de psicologia - estabelecem contato com o hikikomori de diversas formas, como cartas, telefonemas e tentativas de diálogo pela porta, no intuito de retirá-los da toca e reintegrá-los na sociedade. Essas assistentes geralmente são mulheres (estatisticamente mais efetivo) que tentam primeiro ouvir uma resposta (geralmente o hikikomori ignora o contato ou apenas manda-a ir embora), para, talvez, em alguns meses, conseguir levá-lo ao cinema ou a um parque, visando sua futura inserção no mercado de trabalho (governo oferece vagas de estágio para as vítimas em recuperação). Grupos privados que prestam o serviço cobram até 8 mil dólares por ano pelo serviço de algumas visitas. Infelizmente, a taxa de recuperação é inferior a 30%.

A década de 30 desse século reservará uma situação inédita para a primeira geração de Hikikomori. Homens de 65 anos, sem experiência profissional e com habilidade sociais negativas, passarão a testemunhar  a morte dos seus pais provedores. Como sobreviverão?

"Há famílias que mantêm filhos nessa situação por quinze ou mesmo vinte anos. No fim, eles acabam se transformando em bichos de estimação que você alimenta três vezes por dia. Mandá-los embora, muitas vezes, é a única forma de forçá-los a voltar à vida." Masayuki Okuyama, publicitário, criador da Associação de Pais de Vítimas de Hikikomori (atualmente conta com 10 mil membros)


Para dar dimensão do nível do problema, e das tentativas desesperadas de solução, cito o exemplo da Avex. A empresa criou uma série de vídeos chamados "Just Looking" (temos um exemplo acima), no intuito de ajudar homens não acostumados a conviver com mulheres a estabelecer contato visual com elas. Os 50 vídeos foram vistos centenas de milhares de vezes no site da empresa e hoje estão no Youtube.

"Os pais de hoje são mais exigentes porque a queda na taxa de natalidade japonesa signfica que eles têm menos filhos a quem empurrar suas esperanças. Depois da Segunda Guerra Mundial, só conheciam um certo tipo de futuro como um profissional assalariado, e agora falta-lhes a imaginação e a criatividade para pensar sobre o mundo de uma maneira nova." Mariko Fujiwara (diretor de pesquisa no Instituto Hakuhodo da Vida e Viver em Tóquio)

O assunto é conhecido no Brasil por ser abordado de modo recorrente pela cultura pop. NHK ni Youkoso! (Welcome to the NHK!) é uma light novel, adaptada para anime e mangá (está sendo publicado pela Panini) que tem como premissa a vida de um hikikomori, e aborda outros assuntos espinhosos da realidade japonesa como o lolicon, os suicídios combinados pela internet, vício em games online etc. Após cheirar uma carreira, o hikikomori Sato postula uma teoria conspiratória onde a NHK (Nihon Housou Kyoukai - Sociedade de radiofusão do Japão) na verdade é uma fachada para os verdadeiro planos do grupo, que na realidade se chama Nihon Hikikomori Kyoukai (Sociedade dos Hikikomori do Japão) e embute o espírito otaku nas pessoas transmitindo bons animes, até convertê-los no verdadeiro significado do H. Em cima disso vemos uma história de redenção dos personagens, de um modo bem descompromissado. Não acredite que o mangá retrata mesmo um hikikomori... nenhum se relacionaria com a Misaki de modo tão assertivo. Blogs parceiros dedicaram posts específicos ao título, onde o descrevem melhor e mais detalhadamente. No Elfen Lied Brasil temos uma análise do volume 1 do mangá, enquanto o Netoin! fez um apanhado geral da série.

As atuais gerações multimídia são diariamente condenadas por sua passividade e alienação diante das mazelas do mundo. Seriam apenas frígidos herdeiros dos verdadeiros contestadores. Me pergunto até que ponto esse frívolo cruzar de braços é descompromissado. Realmente, ninguém mais se envolve em decapitar déspotas, tomar os meios de produção ou se engajar na democracia e cobrar seriedade. Mas o Japão pode servir como uma grande vitrine futurista para o mundo, ao escancarar o que acontece quando o não agir e a falta de envolvimento típicos das novas gerações podem provocar às estruturas da economia e sociedade como um todo. Como cupins a devorar madeira, invisivelmente apodrecendo os alicerces dia a dia, até nos darmos conta de que a casa precisa de uma reforma ou mesmo que está condenada. Como um câncer, essa postura alienada poderá trazer, num futuro quem sabe breve, profundas mudanças societais nessas nações que, maduras até demais, já apresentam pontos de bolor.




FONTES:
Shutting Themselves In – Maggie Jones
Hikikomori - Investigations into the phenomenon of acute social withdrawal in contemporary Japan. - Michael J. Dziesinsk
Nonprofits in Japan help 'shut-ins' get out into the open – Michael Hoffman
Geração mangá - Christoph Uhlhaas e Carola Bimbi
Multidão de solitários – Ariel Kostman
De costas para a vida – Thaís Oyama
Hikikomori de restaurante – Leonardo Coelho
An original remedy for the socially excluded

A influência do pop americano na obra de Osamu Tezuka

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“Por que os japoneses apreciam tanto os mangás? Parece que os estrangeiros estranham essa mania. Por que os estrangeiros passaram tanto tempo sem ler mangás? Um dos motivos é que eles não tinham um Osamu Tezuka no país deles.” (Editorial do Jornal Asahi, 10/02/1989)

É provável que o nome Osamu Tezuka não provoque a menor reação em todas as pessoas que não estão minimamente integradas com a cultura pop japonesa. É quase tão certo que entre os fãs dela, a gigante maioria o conhece apenas pelo nome, talvez saibam que o Astro boy é dele. Não poderia esperar algo mais natural, já que Tezuka não é um contemporâneo e muito do seu melhor data de um tempo onde o Japão não exportava nem relógios de plástico, que dirá cultura. Aos desinformados, apresento-lhes: Osamu Tezuka, Deus do mangá (Manga no Kami-sama) e pai da animação japonesa comercial. A figura mais importante da cultura pop japonesa está sendo homenageada nesse dia 17 de dezembro por um círculo de blogueiros que desenvolverão, cada um, um texto (ou vídeo) sobre algum aspecto de sua carreira. A maioria analisará alguma obra dele, enquanto alguns desenvolverão uma matéria sobre algum assunto específico, como eu. Darei foco no meu artigo à influência da cultura pop americana na formação e desenvolvimento do Tezuka-sensei, mas não vou me furtar a dar uma base geral para que esse texto tenha vida em si também.

Aclamado como o Walt Disney japonês, Tezuka é o responsável pela consolidação estética e estrutural do mangá moderno. Pincelando brevemente, ele é o responsável por aspectos que hoje definem e distinguem a produção japonesa das demais: personagens com olhos grandes e aguados, corpos esbeltos, cabelos armados, envolvidos em histórias com altas cargas de dramaticidade, tudo isso contido em páginas decupadas cinematograficamente. Na animação, da qual também não é pioneiro, mas deu os rumos mercadológicos para a indústria, é dele o uso de cores contrastantes (por razões de economia e adaptação aos aparelhos televisores japoneses P&B da época), ainda presentes nas caríssimas animações atuais do Japão como estilo próprio de uma indústria. Resumindo, Tezuka foi o artista que revolucionou o pop japonês em termos criativos, mas também o empresário workaholic que viabilizou a brincadeira ao criar um modelo de negócios sustentável (economicamente, na época ainda não existia eco-chatice) que tornou esse segmento da economia japonesa em algo lucrativo e capaz de trabalhar como um embaixador do Japão moderno e sua cultura mundo afora.

Osamu Tezuka

Tezuka não era nenhum mangaká virtuoso, se você entende isso como alguém que desenha como Takehiko Inoue, era apenas suficientemente capaz de contar histórias com desenhos. No início ele emulou os traços americanos com seus personagens arredondados, e aos poucos desenvolveu seu estilo único. Apesar da sua paixão pelo mangá, Tezuka os produzia em escala industrial na intenção de levantar fundos para criar uma animação do mesmo nível da Disney.

O intuito desse post é demonstrar como a cultura de massa dos EUA influenciou diretamente a produção do Tezuka, de seus antecessores e, consequentemente, de tudo o que veio depois dele. Pessoalmente, enxergo três níveis de influência dos EUA na obra dele: a direta, absorvida de modo franco das produções americanas com as quais ele teve contato pessoal; a indireta, introjetada de modo derivado, a partir da influência de artistas japoneses que o antecederam e beberam na fonte americana quando ele ainda era uma criança; e por fim a abstrata, resquícios de pensamento ocidental adquiridos em todos os pontos de contato dele com o Ocidente, da guerra à literatura, que resultaram até em denúncias de racismo. Mais do que isso, demonstrar como a influência de Osamu é híbrida. Ele não fez nome apenas emulando a cultura americana, já que a cultura japonesa é base das suas inovações, como exemplificarei mais afrente. 


Pop Art

A cultura pop americana foi a tsunami que preencheu os buracos deixados pelo vazio do pós-guerra e da urbanização. Hollywood, Broadway, Disney e Coca Cola - entre outros - se tornaram embaixadores do estilo de vida americano, e isso foi particularmente forte nos países derrotados na guerra que se voltaram para o lado capitalista do globo. Com a palavra, o fotógrafo vienense Gottfried Helnwein narrando uma realidade austríaca muito estreita com o pós-guerra japonês:

“Todos estavam tentando se livrar do passado rapidamente – enterrar tudo – suas histórias, suas identidades e suas memórias. A geração dos nossos pais era, espiritualmente, um tipo de morto. E dentro desse vácuo de nossa infância, a América jorrou Coca Cola, jeans, carros que pareciam naves espaciais, filmes, histórias em quadrinhos e rock’n’roll. A América apresentou um mundo mítico de maravilhas modernas e milagres. Havia belos anjos rebeldes como Elvis, Jimmy Dean, Brando e garotas de beleza desigual – coisas que nós nunca havíamos visto antes no nosso chamado mundo real. E, para mim e para muitos de meus amigos, isso foi também um encontro com um homem que provavelmente é nossa maior inspiração: Pato Donald. O impacto desse choque cultural foi enorme.”
Reze ao Deus Pato Donald

Antes do Pacífico ficar pequeno demais para dois impérios e da censura japonesa proibir qualquer produção cultural do inimigo, no entanto, o jovem Tezuka cresceu num lar excepcionalmente liberal e moderno para os padrões japoneses da primeira metade do século XX. Sua mãe era atriz de teatro Takarazuka e seu pai o presenteava com quadrinhos japoneses e estrangeiros e sessões de cinema regadas com Hollywood. Personagens como Gato Felix, Betty Boop, o Marinheiro Popeye, Oswald Rabbit e Mickey Mouse fizeram parte de sua infância. É o momento de introduzir a influência direta dos EUA na formação cultural do jovem Tezuka.

Tezuka era um cinéfilo incorrigível que cresceu assistindo às comédias de Charlie Chaplin. Hollywood invadiu sua vida após o término da Guerra quando os filmes americanos tomaram os cinemas japoneses e as produções dos anos 40, até então inéditas devido à censura, encantaram o pai do mangá. Entre seus títulos favoritos estão: O eterno pretendente, Que espere o céu (seu preferido), Um anjo caiu do céu, Meu amigo Harvey, As belas da noite, O homem de sete vidas, Neste mundo e no outro etc. Os anos 40 da cinematografia yankee são conhecidos pelo cinema noir mas também nesse época produziram muitas comédias e filmes de fantasia que seduziram o japonês. Durante alguns anos, ainda na condição de mangaká, frequentou o cinema com tamanha assiduidade que dizia assistir mais de 365 filmes por ano. Em alguns momentos, chegou a assistir até 10 filmes por dia. Isso sem dúvida ajudou a alimentar seu desejo de produzir sua própria animação. Nas suas palavras (tradução livre): 

“Por que os filmes americanos são tão diferentes dos japoneses? Como eu posso desenhar quadrinhos que fazem as pessoas rirem, chorarem ou se excitarem como naquele filme?”

Bambi (1942)
Tezuka apreciava cinema, mas amava os desenhos animados, principalmente as produções Disney. Ele diz que assistiu Bambi mais de 80 vezes. A Branca de Neve "apenas" umas 50 vezes. Em algumas ocasiões ele passou o dia inteiro na sala de cinema assistindo repetidamente a mesma animação. Bambi foi lançado em 1942 nos EUA mas só chegou ao Japão em 1951. O apelo bucólico e animal o sensibilizou. Após assisti-lo muitas vezes, ele passou a desenhar os personagens dentro do cinema. Mais para frente, já sabendo a sequência de cenas só de ouvir a trilha sonora, Tezuka acompanhava o filme de costas, procurando na audiência as emoções, na busca por compreender em que situações o público ria ou chorava.  

Existe uma razão para o cinema americano - animado ou não - ter impressionado o japonês de modo tão impactante. Na época o cinema japonês ainda não conhecera seus melhores dias e o americano era pioneiro, quase sempre contando com verbas de produção inimagináveis no arquipélago asiático (principalmente quando falamos de animação). Com a censura, a memória cinematográfica do povo japonês estacionou nos anos 30. Quando os bons filmes dos anos 40 (para muitos, a melhor fase do cinema americano) desaguaram de uma vez nos cinemas japoneses, o impacto foi ainda maior.

Mickey Mouse

Não apenas o movimento de desenhos ou fotografias influenciou o Deus do mangá, antes de tudo, é evidente, os quadrinhos exerceram esse papel de forma decisiva. Walter Disney e Max Fleischer (Betty Boop, Popeye) foram as principais bases americanas que ajudaram a criar seu estilo inicial: olhos e traços faciais em geral bastante exagerados para transmitir emoções (expressividade) e corpos arredondados. George McManus, produtor de tirinhas de jornal Bringing Up Fathers (Pafúncio e Marocas no Brasil) também teve participação direta na formação cultural do jovem Osamu. Essas tirinhas, ainda que americanas, tinham apelo global por tratar de um contexto de modernização compartilhados pelos dois países.

Tagosaku to Mokube no Tokyo Kenbutsu - Rakuten Kitazawa

O segundo nível de orbitação ao redor dos quadrinhos americanos ocorre quando Tezuka se inspira diretamente em artistas japoneses que beberam na fonte dos Estados Unidos, seja apenas devorando suas produções importadas, seja aprendendo diretamente no país, em tempos de amizade ou tolerância diplomática entre Washington e Tóquio. 

Rakuten Kitagawa nos anos 20 foi o primeiro a usar o termo mangá em seu sentido moderno. A originalidade do seu trabalho pode ser parcialmente creditado às publicações americanas como a Puck (publicação com sátiras políticas, caricaturas e cartoons, o primeiro sucesso americano nas revistas de humor), The Katzenjammer Kids, The Yellow Kid e nos trabalhos de Frederick Burr Opper (famoso por Happy Hooligan e cartoons politizados). A obra de Kitagawa ilustrada acima se chama Tagasuku e Mokubé passeiam em Tóquio, e narra a saga de dois camponeses que migram para um centro urbano. Influência direta dos quadrinhos estrangeiros, uma paródia sobre o choque cultural enfrentado pelo Japão da época.

Ippei Okamoto é outro exemplo de artista japonês (autor de Shin Mizu Ya Sora e Ipei Zenshû) extremamente lido no Japão, inclusive por Tezuka, que trouxe várias influências do mundo todo, inclusive dos EUA, para o mangá. Ele que introduziu Bringing Up Father e Mutt and Jeff ao público nipônico. Shishido Sako, autor de Speed Taro, por exemplo, estudou os cartoons nos EUA e é reconhecido por Tezuka como um dos primeiros a trazer as técnicas cinematográficas aos quadrinhos, ainda nos anos 30. Shimada Keizo, um dos mais conhecidos produtores de mangá do pré-guerra foi abertamente influenciado pelos quadrinhos do Gato Felix.

“O Mangá nasceu com o choque cultural do oriente com ocidente, do velho e do novo, foi um caso de espírito japonês e aprendizado ocidental” Paul Gravett
Donsha (Rakuten Kitazawa) - influência direta do cartoon americano, página colorida de página inteira)

A terceira esfera de ação dos EUA é menos tangível, mas não menos presente nos títulos do sensei. Começo citando a própria guerra direta com a América que alterou profundamente a visão de mundo do menino Tezuka, que nasceu e cresceu no Japão militarista. Osamu perdeu muitos amigos na guerra e viveu o horror dos bombardeios aéreos. Isso alterou para sempre sua visão de missão na Terra. Seu objetivo passou a ser sempre ajudar as pessoas. Formou-se em Medicina mas nunca chegou a colocar em prática o ofício, e, na condição de Mangaká, enxergou a necessidade de transmitir otimismo e bom astral nas suas histórias, as quais (boa parte) soavam até uma positividade cega, mas profundamente necessária no depressivo Japão devastado - física e moralmente. O tom das suas histórias foi amplamente determinado por fatores políticos do seu país em relação aos EUA.

Os próximos dois exemplos são mais verificáveis, já que nítidos em seus quadrinhos. Trata-se da visão de mundo Ocidental, absorvida pelo Tezuka via EUA. A euforia da modernidade, presente de modo aberto em Metropolis na forma de grandes construções e multidões humanas, por exemplo, vem mais dos quadrinhos americanos de George McManus e menos do filme alemão homônimo de Fritz Lang, que Osamu alega não ter assistido.

O racismo em relação aos negros era uma realidade pestilenta mas comum do período. Os americanos tinham um Apartheid informal nos EUA;  Inglaterra, França e Alemanha - os outros países ocidentais que mais jorravam cultura no Japão dos séculos XIX e XX - detinham colossos coloniais no continente africano. Claro que a imagem que esses países tinham da África era bem pejorativa, inclusive sustentada por pseudo-ciências que servia de legitimação moral dos seus abusos. O próprio Japão tinha suas teorias de superioridade da raça japonesa. Ocorre que a representação do negro nos quadrinhos de Tezuka segue o padrão das HQ's americanas, com traços e atitudes excessivamente estereotipados e depreciativos, segundo algumas opiniões.  Tezuka era um humanista nato e escrachar o traço é característica intrínseca desse tipo de quadrinhos. Como nunca li nada dele que retrate africanos ou pessoas do sudeste/sudoeste asiático, não posso dizer se é discrepante ou não, apenas transmito a percepção de alguns. O fato é que o negro em seus quadrinhos são muito semelhante aos negros desenhados nos EUA,  e na América o distanciamento racial era aberto e assumido. Talvez Tezuka tenha absorvido sedimentos raciais, ainda que de modo inconsciente, da produção ocidental. Gostaria da participação de quem já leu Jungle Emperor, ou outro mangá que os retrate, desse sua opinião nos comentários. (Por enquanto, pois em breve a Editora NewPop publicará Kimba no Brasil, ainda no primeiro semestre de 2012!!)
Nativos africanos na obra Jungle Emperor
Como resultado dessa bagagem, mas não apenas, Tezuka pôde revolucionar a produção de quadrinhos no seu país. Com histórias mais longas e divididas em capítulos, algo inexistente na época; introdução de grafismos distorcidos pela ação, como casas entortando na passagem de um carro veloz; layoutização diferenciada; onomatopeias e falas acoplados num storyboard, o mestre mudou o rumo da nau enquanto tentava fazer cinema com os recursos disponíveis. No Japão, com o final da guerra, o mangá precisou recomeçar quase da estaca zero, mas seu renascimento foi essencial tendo em vista que após anos de sofrimento com Guerras e com o Grande Terremoto de Tóquio, a população japonesa precisava imediatamente de entretenimento. A solução momentânea foram os mangás de aluguel (Kashihon/kashibon), num momento onde o mangá tinha preços proibitivos e os escassos recursos do país destruído pela guerra tinham destinos mais urgentes (sua disponibilidade era determinada pelas forças de ocupação dos EUA).

Em 1946 foi editada Shin Takarajima (Nova ilha do tesouro), inspirada no livro de Robert Louis Stevenson (escritor escocês mais conhecido pela obra O médico e o Monstro), primeira obra grande do então desconhecido e jovem desenhista Osamu Tezuka, sob roteiro de Shichima Sakai. Ainda sem o mangá consolidado como linguagem, a obra de estréia vendeu cerca de 400-500 mil unidades (1 ano após o término da guerra!). O que justifica? A decupagem cinematográfica absorvida do cinema e dos comics americanos trouxe para o mangá uma revolução, em ritmo, estilo e dinâmica que passavam a impressão ao leitor de estar assistindo um filme de ação, algo muito diferente dos quadrinhos estáticos produzidos no Japão até então. Na verdade Shin Takarajima é um storyboard de animação com balões de falas, produzido por um jovem que sonhava em ser animador mas ainda não tinhas os meios para tal, e, frustrado, o fez em mangá, revolucionando sem querer a cultura pop japonesa.

"Eu nunca vi uma história em quadrinhos como essa. Tudo o que você vê é um carro correndo por duas páginas. Então, por que isso me deixou tão excitado? E senti como se estivesse dirigindo esse carro (...). Esse é um quadrinho estático impresso em papel mas esse carro ESTÁ correndo a toda velocidade! É como se eu estivesse assistindo a um filme." (Fujiko A Fujio, criador de Doraemon)

Shin Takarajima

Olhando agora, Shin Takarajima não parece nem um pouco dinâmico. Talvez não fosse nem na época, com exceção de algumas páginas destoantes, notoriamente com movimento do carro. Tezuka não foi o primeiro a trazer a linguagem cinematográfica aos quadrinhos no Japão, e temos que lembrar que os japoneses não tinham assistido Cidadão Kane naquele momento, sua visão de algo cinematográfico ainda estava preso nas produções pré-guerra dos anos 40. A revolução não está apenas na obra em si mas também no contexto que a recebeu.

O engraçado é a evolução da indústria japonesa devolvendo suas crias aos americanos pela transformação da estrada numa via de mão dupla. O aclamado filme O Rei Leão da Disney (1994) é um plágio muito forte da animação Kimba, o Leão Branco de 1966 (Jungle Emperor), apresentando uma semelhança muito grosseira, tanto de argumento quanto de personagem (o longa foi exibido nos EUA no mesmo ano de produção). Diferente de Tezuka, que abertamente assumia que se inspirava no padrão Disney, emulando alguns padrões enquanto adicionava outros elementos originais, a Disney se recusou a assumir que copiou, ou ao menos que se 'inspirou' no clássico japonês, alimentando fortes críticas e protestos no Japão, onde a população local sabia que conhecia aquilo de algum lugar. Excluindo a dupla Timão e Pumba, que já existiam, muito pouco é original nessa produção tão vangloriada. Tezuka já havia falecido quando O Rei Leão foi lançado, mas a viúva alegou que ele se alegraria com o fato da Disney ter se inspirado em uma obra sua, quando o caminho sempre fora o contrário. Aos descrentes, vou postar abaixo as imagens comparativas que achei compiladas no blog muitapimenta!

Desculpe-me se eu destrui sua infância, mas créditos aos que merecem! Disney é foda, mas aqui pisou na bola ao declarar originalidade onde só há papel carbono.

Tezuka não foi absorvido apenas pela cultura massificada dos EUA. Ninguém menos que Stanley Kubrick, o 'diretor do século XX', responsável por clássicos como Laranja Mecânica e Lolita, ficou tão impressionado com o anime Astro Boy de Tezuka que o convidou para ser diretor de arte da película 2001, uma Odisséia no Espaço, um dos mais consagrados filmes já produzidos. O mestre do pop japonês recusou o convite do mestre do cinema americano para continuar tocando seus trabalhos no Japão. Um cara que agrada esteticamente um dos melhores, se não o melhor, diretor do país que inventou a linguagem cinematográfica não é pouca coisa, percebam.

Quero deixar muito claro, é verdade, que não só de Estados Unidos se alimenta o imaginário sem fundo do criador de Astro Boy. Os americanos só ganham status de grandes exportadores de cultura - seja de qual nível for - apenas com o fim da segunda grande guerra. Antes os europeus eram até mais prestigiados e seus quadrinhos fizeram muito sucesso também no Japão, servindo de combustível para os três ciclos anteriormente explicados. Revistas como a Japan Push, de origem inglesa, as francesas Le Rire e L’assiette au Beurre e a alemã Bilderbogen ocuparam também um papel central na formação dos quadrinhos japoneses. A 'escola' franco-belga, grande rival dos quadrinhos americanos, popularmente conhecidas no Brasil pelo clássico belga 'As aventuras de Tintim', foram significativos. Hergé, sobretudo.

Teatro Takarazuka
Não posso finalizar o texto sem desconstruir o lado oposto. É importante saber que Tezuka tem um pé enraizado na cultura ocidental, mas ele é japonês, trouxe elementos da cultura nativa para seus quadrinhos e virou um mito por criar um híbrido de qualidade, não por copiar os outros. Críticos culturais ocidentais caem no erro de minimizar sua nacionalidade e achar que ele é apenas uma cria do gigantismo cultural americano e europeu.

Exemplifico: é verdade que Disney e Fleischer usavam olhos grandes para transmitir sentimentos com mais facilidade, mas Tezuka não se inspirou apenas nisso. Morou desde cedo na cidade de Takarazuka, e sua inspiração vem mais do teatro Takarazuka, criado na cidade por um empresário em 1913, onde apenas mulheres atuam em todos os papéis (sua mãe era uma atriz), encenando peças que misturam um padrão da Broadway com cabarés franceses e teatro tradicional japonês. Os olhos dessas atrizes eram maquiados para torná-los propositalmente grandes, enquanto as luzes dos refletores em abundância criavam a sensação de olhos lacrimejantes. As meninas da CLAMP não me deixam mentir. Uma produção dos anos 90 - Sakura Card Captors - com olhos que não são apenas extensos enquanto opacos (como os ocidentais), mas possuem um brilho herdado de Tezuka por décadas. O engraçado é que o Teatro Takarazuka nasceu também de fonte ocidental (representação de musicais como E o Vento Levou...), então é um hibridismo novamente presente.

Sakura Kinomoto

Outro equívoco típico dos ocidentais crentes que o mundo aspira à ocidentalidade (os mesmos  acreditam que as asiáticas operam os olhos para se parecerem conosco, pois devemos ser irresistíveis demais, milênios de cultura se curvam à nossa superioridade cultural e genética ¬¬')  é dizer que Tezuka trouxe os assuntos ambientais e naturais por influência da ideologia Tarzan. Tezuka quando criança colecionava insetos, na escola chegou a criar um clube de estudos sobre eles. Seu principal hobby era penetrar nos campos e matos de Takarazuka para colher insetos e sua relação com a natureza vem daí. Se a ideologia Tarzan o seduziu na estrutura Disneyficada, é porque ele, como japonês e indivíduo, já tinha uma sólida relação com o ambiente natural e com os animais. A produção americana DIALOGOU com seus valores já consolidados e o agradou. Seu senso de preservação e respeito certamente não foi construído pelos Estúdios Disney.

Osamu Tezuka

Tezuka, como nosso querido Roberto Gomez Bolanõs, o Chespirito, nunca subestimou sua audiência. O mexicano trouxe a 'alta cultura' para as crianças ao repaginar clássicos da literatura, cinema, folclore, mitologia e personalidades históricas na forma de entretenimento descompromissado para as crianças. Ainda enquantro pré-púberes, nós, latino-americanos, tivemos a oportunidade de conhecer Shakespeare, Goethe, Cervantes, Classic Hollywood, Da Vinci, Chopin, Sansão e Dalila, entre outros, pela visão do pequeno Shakespeare latino. O público japonês - não apenas as crianças, no caso - igualmente teve essa oportunidade ao receber em seus mangás de Adolf Hitler e Buda à Fausto de Goethe pelas lentes de Osamu Tezuka (O chirrin cherrion do Diabo é Fausto também hahaha). Como se ele já não tivesse criado poucos personagens, ele demonstra que entreter não é tratar o público como boçais, dá pra entreter com um leão albino, um robô humanóide ou com Buda.

Como define Cristiane Sato no artigo "A cultura popular japonesa: animê" do livro Cultura pop japonesa organizado pela Sonia Luyten: "Ainda hoje é difícil mensurar o impacto que Tezuka e sua obra causaram na cultura japonesa do pós-guerra. A animação no Japão evoluiu tanto em técnica quanto em forma desde então, mas na essência nada de novo foi criado que não tivesse sido feito antes por ele. Questões éticas entre robótica e humanidade, terror para crianças e desenhos eróticos para adultos, a androginia, dramas de vida e morte em histórias aparentemente ingênuas e cômicas - tudo o que hoje caracteriza o animê na aparência e no conteúdo foi antes testado pelo visionário Tezuka."




ATUALIZANDO: Em menos de 30 minutos, a tag #TezukaDay  chegou nos TT's Brasil.



E você me pergunta... tá, mas como eu concorro aos mangás prometidos e participo dos concursos do #TezukaDay? Eu te respondo, Vá a um blog parceiro ou espere que eu dê um CTRL + C nas instruções de alguém, porque realmente estou por fora da organização do evento. Mas todas as informações estão no face: http://www.facebook.com/tezukaday

Quais os outros blogs participantes? Acho que quase todos os parceiros aqui do lado ->
Após eu ler os textos dos colegas, indicarei alguns. Siga-me no Twitter que darei RT em todos.



Fontes:
O grande livro dos mangás (Alfons Moliné)
Japop – O poder da Cultura pop japonesa (Cristiane Sato)
Manga: sixty years of Japanese comic (Paul Gravett)
Otaku: A Origem do Mangá Parte 2  (Jorge Willian Vozdvijensky)
Manga Updates
Japanese culture and popular consciousness: Disney’s The Lion King Vs. Tezuka’s Jungle Emperor (Yasue Kuwahara)
God of comics: Osamu Tezuka and the creation of post-World War II manga (Natsu Onoda Power)
Osamu Tezuka - História em mangá (Toshio Ban & Tezuka Productions)

Tóquio em quatro visões: Do Monte Fuji ao Império de néon

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Existem cidades eternas no globo terrestre. Todas as cidades possuem suas características, distinções ou mesmo uma personalidade, mas há algumas poucas que extravasam essa situação para se tornar um ícone mundialmente reconhecido; objeto de veneração dos seus conterrâneos, alvo de idealização dos forasteiros. Nova Iorque está eternizada na canção de Frank Sinatra. A 'cidade que nunca dorme' também é reconhecida no cinema de Martin Scorsese ou Woody Allen, mestres da cultura americana, que, por suas lentes, apresentam ao mundo as delícias e os percalços da principal metrópole dos Estados Unidos. No hemisfério sul, o Rio de Janeiro continua lindo,  e o abraço do Cristo Redentor abençoa a todos, homenageadores e homenageados, de Tom Jobim ao Maracanã.

Algo semelhante poderia ser feito, por qualquer pessoa, com outros poucos exemplos como a Cidade Luz ou a Cidade Eterna, que sequer precisam ser identificadas pelo nome para transmitir sua opulência histórica e fazer suspirar mesmo os mais lunáticos. Um desses poucos exemplos é a cidade de Tóquio no Japão. Tóquio, que sequer é uma cidade no sentido fronterístico do termo, é especial como poucas. Diferente das demais, que cristalizaram uma imagem bastante sólida - o romantismo de Veneza, o glamour parisiense, a eternidade do Cairo -, Tóquio é uma cidade mutante. Isso fica evidente pelo próprio nome recém adquirido (apenas em 1868 o Imperador Meiji alterou o nome de Edo para Tóquio). Esse constante processo de alteração ocorre ao abraçar o que há de mais múltiplo na padronizada sociedade japonesa e no mundo. Tóquio é uma cidade que não pode ser capturada em descrições, Tóquio flui, escorrega, nos foge. Paramos para contemplá-la, perplexos, e ela já mudou, zombeteira. Não a reconhecemos mais enquanto ela nos desafia: Decifra-me ou devoro-te.



Com esse post não pretendo descrever os diferentes bairros da capital japonesa e suas particularidades, mas traçar um panorama histórico dessa cidade que fascinou e assustou nativos e estrangeiros no século XX, com sua voraz e não necessariamente equilibrada capacidade de adaptação. Pretendo demonstrar que o maior centro metropolitano do mundo também teve seus respectivos Sinatras ou Jobims. O onipresente - e ativo - vulcão conhecido como Monte Fuji, cravado nas proximidades da cidade (de onde é possível vê-lo em dias limpos), era figura constante na representação da cidade enquanto Edo, mas no último século passou a dividir atenções com locomotivas, anúncios publicitários e constelações de néon, sem esquecer dos grandes parques, Ministérios, templos, bolsa de valores e domínios imperiais num verdadeiro caleidoscópio de tradição e modernidade. Visitar Tóquio é sem dúvidas uma experiência estética muito alicerçada no visual.

Resolvi criar meu próprio recorte fenomenológico da maior cidade nipônica e dividir sua história recente em quatro medidas cronológicas, atribuindo à um autor de cada um desses períodos a missão de lhes contar um pouco sobre sua experiência com Tóquio. Tenha em mente que essa divisão cartesiana e didática abre brechas para possíveis incoerências ou mesmo contradições devido a própria natureza complexa e estilhaçada do objeto abordado. Falo de padrões gerais. Com tal missão, convoco quatro artistas - nem todos japoneses - para lhes contar, via progressão histórica, um pouco do legado recente de Tóquio: O ilustrador Katsushika Hokusai nos introduzirá o exotismo cotidiano da Edo no século XIX; o cineasta Yasujiro Ozu nos mostrará um Japão em pleno processo de ocidentalização na primeira metade do século XX; o também cineasta Wim Wenders encontrou uma Tóquio eufórica e irreconhecível nos anos 80; por fim, o escritor (diretor de cinema, ex-apresentador de tv etc) Ryu Murakami escancara de modo desgostoso uma cidade despersonalizada, afogada em excessos e responsável por drenar as pessoas para um pântano de sexo, consumo e solidão, e nada mais, nas últimas duas décadas. Tóquio personalizou todos os conflitos vividos pela nação japonesa nos últimos tempos, e, conhecer sua história, também pela visão das pessoas que nela vivem ou com ela sonharam, é um modo simplificado de materializar e tentar compreender de modo indireto o inacessível espírito do homem japonês.


Na segunda metade do século XVIII nasceu no Japão o grande artista de ukiyo-e, talvez o mais conhecido dentre os poucos artistas nipônicos reconhecidos no Ocidente, sobretudo pela influência que sua produção teve na obra de mestres impressionistas europeus como Van Gogh, Monet, Gauguin, Degas e Toulouse Lautrec. Natural de Edo, antiga nome da cidade de Tóquio, Hokusai revolucionou a produção do ukiyo-e ao não ficar preso aos temas recorrentes dessa espécie de arte gráfica - como a reprodução de gueixas e atores, isto é, uma temática em essência aristocrática - para retratar a natureza japonesa e a vida cotidiana dos populares.



A palavra mangá nasceu com Hokusai. No início do século XIX, ele produziu uma série de quinze volumes onde consta a reprodução do dia-a-dia das pessoas de Edo, onde os traços destoantes delas eram distorcidos de modo cartunesco, enquanto elas realizavam tarefas tipicamente japonesas. Seu trabalho mais conhecido, entretanto, são as 36 vistas do Monte Fuji. Hokusai era fascinado pela magnificência do grande vulcão símbolo do território japonês. Em sua fixação pelo Fuji, compartilhada por todos os poetas japoneses do seu tempo e de antes, Hokusai procurou eternizar o já atemporal Fuji em diferentes ângulos, estações e situações. Importa para esse texto a referência sem igual, basilar, fundamental, majestosa, onipotente e, principalmente, japonesa da natureza do arquipélago no homem nipônico. Não era a 'Residência dos Deuses' que estava cravada em alguma localidade, Edo que a contornava, tamanha sua inquestionabilidade. Uma referência antiga como os deuses e legítima como o Imperador.



Em Hokusai reconhecemos o Japão do período Edo (ou período Tokugawa - 1603/1868). Um país voluntariamente apartado do mundo, quase sem relações diplomáticas e sem intercâmbio cultural com outras nações. Fase onde toda a bagagem cultural historicamente adquirida das civilizações chinesa, coreana, asiáticas e europeias, em conjunto com a própria cultura local, pôde fermentar e se manifestar como um dos períodos mais férteis da cultura japonesa. Esse contexto que está talhado nas principais obras de Hokusai. Vidas notoriamente japonesas, em relação direta com o ambiente circundante, natural por excelência. O povo japonês desenvolveu sua existência, seus hábitos e temores da relação que criou com o mundo natural, ao mesmo tempo belo e hostil, do território nipônico. O grande cartão postal do país não é um monumento humano, como a Cidade Proibida ou o Kremlin, mas um vulcão. Sua casa Imperial não é simbolizada por armas ou escudos, e sim pelo delicado crisântemo. Quase todos os seus sobrenomes, adquiridos obrigatoriamente com a abertura política, remetem à natureza. (você pode conferir nesse link os 100 sobrenomes japoneses mais comuns e seus significados)

É possível afirmar que a Edo dos tempos de Hokusai marca um dos últimos tempos em que a cidade era reconhecível por seus moradores. Em 1868 veio a Restauração Meiji, responsável por devolver o poder do país às mãos do Imperador e pela abertura política e econômica. Edo é rebatizada e Tóquio, seu novo nome, é cravada como capital do novo Japão. O pequeno país insular do leste asiático passa por um paulatino e acentuado processo de modernização e ocidentalização ao seguir de modo didático os passos dos EUA e da Europa ocidental. O responsável por eternizar esse processo ao longo de décadas no campo das artes foi o 'mais japonês dos diretores', um dos três grandes pilares do cinema japonês, o mestre Yasujiro Ozu. Nas palavras do prestigiado cineasta alemão Wim Wenders, no seu filme-homenagem chamado Tokyo-Ga:


"Se, no nosso século, ainda houvessem coisas sagradas, se houvesse algo como um tesouro sagrado do cinema, então, para mim, este seria o trabalho do diretor japonês Yasujiro Ozu. Ele fez 54 filmes. Filmes mudos na década de 20, filmes em preto-e-branco nas décadas de 30 e 40, e, por fim, filmes coloridos até a sua morte em 12 de dezembro de 1963, no seu 60º aniversário. Com recursos extremamente parcos e reduzidos ao mais essencial, os filmes de Ozu repetidamente contam a mesma simples história, sobre as mesmas pessoas, vivendo na mesma cidade: Tóquio. Esta narrativa, cobrindo um período de quase 40 anos retrata a transformação da vida no Japão. Os filmes de Ozu lidam com a lenta deterioração da família japonesa, e, assim, com a deterioração da identidade japonesa. Mas eles o fazem não apontando com desalento ao que é novo, ocidental ou americano, mas lamentando, com um sentimento verdadeiro de nostalgia, o que perdem ao mesmo tempo. Embora sejam absolutamente japoneses, esses filmes são, ao mesmo tempo, universais. Neles, eu pude reconhecer todas as famílias de todos os países do mundo, assim como os meus pais, o meu irmão e eu mesmo. Para mim, nunca antes e nunca desde então, o cinema esteve tão perto de sua essência e do seu propósito. Apresentar uma imagem do Homem no nosso século, uma imagem conveniente, verdadeira, válida, na qual ele não só se reconheça, mas na qual, acima de tudo, ele possa aprender sobre si mesmo."

Tóquio era um termo recorrente nas películas de Ozu. Para captar isso, não é preciso nem assistir aos seus filmes, basta olhar os títulos de alguns: Era uma vez em Tóquio (Tokyo monogatari), Coral de Tóquio (Tokyo no korasu), Um hotel em Tóquio (Tokyo no yado), Crepúsculo em Tóquio (Tokyo boshoku). Ainda que seu objetivo não fosse retratar a capital japonesa de forma objetiva, e sim usá-la como um canal para falar sobre a complexidade humana, a vinculação homem-cidade se tornou inevitável conforme Tóquio mudava de face como um adolescente recém ingresso na puberdade.




Importante ressaltar, Yasujiro não era natural de Tóquio, como Scorsese é de Nova Iorque. Vindo do interior, Ozu não morou lá até a idade adulta. Disso podemos inferir que ele inicialmente construiu uma visão da cidade mesmo antes de senti-la. Situação pertinente para nós brasileiros que olhamos para Tóquio, curiosos e impressionados, excitados e perplexos, mas incapacitados de compreender realmente o espírito  da megalópole japonesa, esse pequeno monstro que aflige mesmo os nativos da Terra do Sol Nascente.



Encapadas pela cidade em permanente remodelação, onde casas de madeira e fiação elétrica, trens e kimonos, whisky e sakê, fábricas escarrando sua negra fumaça e campos convivem em - talvez - harmonia (você perceberá nos prints), as histórias de Ozu sempre manifestam questões universais. Velhice, nostalgia, conflito de gerações, solidão e degeneração são questões-chave em suas produções. No clássico Ohayo (Bom dia), por exemplo, essa mescla de ocidental e oriental fica evidente. Crianças usam roupas ocidentais, falam inglês (sankyu [thank you] ou i love you) e fazem questão de ganhar um televisão devidamente alimentada pela rede elétrica que macula de forma inevitável a aparência da região, mas para assistir ao japonesíssimo sumô. Por trás desse pano de fundo contextual do Japão, está a obra de um dos melhores realizadores da história. Assistir aos seus filmes apenas para valer-se da compreensão de um contexto histórico seria um desperdício irremediável. Seria ignorar as questões humanas que dão espessura aos filmes, ainda mais intensas em Tokyo monogatari que em Ohayo, e jogar ralo adentro o bom senso estético de Ozu, que constrói cada plano com o esmero e a sensibilidade típica do extremo oriente.



Wenders, em sua citação, conseguiu sintetizar a tônica da obra do 'mais japonês dos realizadores'. Tudo permeia uma temática central: a família japonesa e sua desintegração, acentuada pela modernidade. A dissolução da instituição família, se desastrosa no ocidente individualista, atribui tons catastróficos na coletivista sociedade nipônica. Catastróficos, mas jamais apocalípticos. Pouquíssimas famílias são felizes nos filmes de Ozu, no entanto, esse processo de dissolução deixa todos tristes, mas nunca desolados. Como bons japoneses, eles sentem falta das coisas como eram, lamentam o incômodo da certeza de que as coisas nunca mais serão como antes, mas compreendem que é desse jeito que a banda toca. Não há desespero humano, apenas a apresentação do absurdo da vida e a consequente resignação.

"Então por que os adultos falam coisas desnecessárias? 'Boa tarde', 'Bom dia', 'Boa noite', 'O tempo está bom!' 'Ah, é mesmo' Para quê? Só por hábito. Não é verdade? Só conversa fiada. 'Sei, sei'. Tudo falso!" (fala de uma das crianças rebeldes de Ozu em Ohayo, que não entende mais o tradicionalismo japonês)




Tal situação fica evidente com um caso indispensável, seu grande clássico, Era uma vez em Tóquio. No filme, gravado oito anos após o término da guerra, um casal residente no interior resolve visitar Tóquio para encontrar os filhos bem sucedidos que não viam há anos, bem como testemunhar, quem sabe pela última vez, o crescimento dos netos. Ao chegar na assustadora capital, o casal se vê jogado para escanteio pelos filhos, ocupados e desinteressados demais para dar-lhes a devida atenção. Na condição de estorvo, os idosos entendem a natureza da sucessão geracional. São pais atônitos que não entendem mais o Japão em choque com filhos que nunca compreenderam certas raízes do mesmo país (um século atrás, crianças conviviam sob o mesmo teto com pais, avós e bisavós). Estão todos patinando na gelatina que era o Japão em rápido processo de modernização, clamando por respeito e admiração do ocidente enquanto abria mão de milênios de gesso cultural.

No início do filme, como bem observado por Kiju Yoshida, Ozu nos mostra um diálogo trivial do casal que não encontra o travesseiro inflável enquanto se preparam para a viagem. Uma cena aparentemente tola, que mostra não apenas a simplicidade do cotidiano, mas também a cumplicidade e a intimidade do casal. Ela fará bastante sentido no decorrer do filme, quando Tóquio se apresentar para eles de modo inexplicável, incapturável. 



Ozu proibia seus atores de atuar de forma dramática, fazia muito mais sentido aos seus olhos os gestos comuns e os diálogos do dia-a-dia (quando o teatro brasileiro vai aprender que atuar bem não é gritar e virar um Super Saiyajin no palco?). Seus filmes fugiam dos eventos excepcionais; sem grandes paixões, crimes ou amores a pipocar na tela do cinema. Como legítimo japonês, sua palavra está muita vezes subentendida no silêncio. A explosão de emoções se dá no solitário cômodo, com lágrimas escorrendo pela face do japonês imóvel, calado e resignado, olhando para o horizonte, ou  deitada no futon, após o apagar das luzes, como em Tokyo monogatari.

Se as pessoas gostam da ficção justamente pela evasão e pelo extraordinário, Ozu não deveria ganhar nome nem mesmo entre os japoneses, alguns podem pensar. Mas seu cinema demonstra um dia-a-dia sempre igual enquanto diferente, em plena metamorfose. Uma espécie de espiral decrescente que tende a zero. Os dias aparentam igualdade com o ontem e projetam um amanhã semelhante, mas não é assim que o tempo nos arranha. Pouco a pouco algo vai ser perdendo. Seja a fulgaz infância, como em Tokyo no yado, os filhos que pouco a pouco são drenados pelas próprias vidas, como em Tokyo monogatari, ou o Japão como um todo, talvez o mundo, que deixou de ser como deveria, que os deixou para trás, abandonados na estação (signo recorrente) como em quase toda a filmografia de Ozu.



Contrariando o senso comum, Ozu fez tudo isso não se tornando cada dia mais prolixo em sua linguagem cinematográfica. Enquanto muitos diretores se tornam 'verborrágicos' conformem ganham experiência e verbas cada vez maiores, Ozu trilhou o sentido contrário. Evidente que adaptou-se aos filmes falados e coloridos, mas com o passar do tempo, Ozu simplificou cada vez mais seus meios visuais de expressão. Suas tomadas em movimento, rotineiras nos primeiros filmes, foram tolhidas gradualmente até ele chegar ao ponto de fixar uma câmera no chão - sempre com a mesma lente de 50mm - e trabalhar o close up no ator, ao nível dos olhos de alguém que está sentando no chão, na postura tradicional com a qual sentam os japoneses dentro do lar. No entanto, algo que remete diretamente ao diretor é a presença dos trens. Em todos os seus filmes as locomotivas, símbolos do progresso material, recortam as paisagens japonesas, denotando a transformação sem volta de um país.



Centralizador e detalhista, Ozu dava pouca liberdade de atuação para seus dirigidos, guiando-lhes passo a passo, pois todos os detalhes do roteiro estavam construídos e estruturados em sua mente. O camera man que mais trabalhou com Ozu explica para Wenders o zelo do japonês com cada detalhe do cenário, figurino e atuação, posicionando-os pessoalmente. Isso fica evidente quando assistimos seus filmes e prestamos atenção na linguagem deles. Cada cena é uma fotografia. Na contramão da evolução cinematográfica ocidental, Ozu se afastou do encadeamento das cenas de ação criado por Griffith nos Estados Unidos e consagrado pelos alemães do expressionismo nos anos 20.




O Japão seguiu seu rumo após Ozu. Modernizou-se, enriqueceu, conquistou o status de potência econômica, a frente de qualquer nação européia, e atingiu níveis de qualidade de vida inimagináveis em qualquer outro período de sua longa História. Dois símbolos cumprem o papel de destacar a ascensão japonesa. O Shinkansen (trem-bala) e a Torre de Tóquio (Tokyo Tower). Como destacou o engenheiro resposável pelo projeto da torre, Hisayoshi Maeda, "Já que vamos construí-la, que seja a mais alta do mundo!".  Essa declaração deixa claro o status quo japonês do pós-guerra. Crescimento, opulência, ao custo que for, rumo ao topo.



O cineasta alemão Wim Wenders, grande fã de Ozu, desembarcou no Japão na primeira metade dos anos 80, o auge absoluto do progresso econômico do país, num tempo onde a crise ainda se escondia dos economistas e o Japão pintava como a futura maior potência do mundo. Ele procurava a Tóquio de Ozu, suas crianças insubordinadas, suas paisagens de tirar o fôlego. Munido de sua câmera, gravou imagens desse Japão oitentista e registrou o país num filme-homenagem ao diretor japonês, chamado Tokyo Ga (1985). Mas não foi bem isso o que ele encontrou no Japão. Nas suas palavras:

"Quanto mais a realidade de Tóquio me parecia uma corrente de imagens impessoais, cruéis, ameaçadoras e, sim, quase desumanas, maiores e mais poderosas tornavam-se, na minha mente, as imagens do mundo amoroso e ordenado da cidade mítica de Tóquio que eu conhecia dos filmes de Yasujiro Ozu. Talvez isso fosse o que não existia mais: uma visão que alcançava a ordem num mundo sem ordem. Uma visão que ainda mostrava um mundo transparente. Talvez tal visão não seja mais possível hoje, nem mesmo se Ozu estivesse vivo. Talvez a frenética e crescente inflação de imagens já tenha destruído demais. Talvez imagens em harmonia com o mundo já estejam perdidas para sempre." 




Encarando um Japão sufocado por letreiros de néon, anúncios publicitários, Disneylândia e comida plástica (literalmente), Wenders auferiu algo que só poderia concluir sentido pessoalmente o país. Não apenas a Tóquio de Ozu não existia, mas aquela nova cidade também deixava evidente como os próprios nativos dela (ainda que paradoxalmente nela) se evadiam. Tanto em executivos jogando pachinko bovinamente após o expediente, quanto em jovens dançando Beach Boys e Rockabilly nas ruas como se tivessem sido retirados do filme Grease por uma garra daquele brinquedo nipônico onde se tenta, em vão, pegar uma pelúcia na porta da padaria. Todos devidamente embriagados, mas não necessariamente envolvidos. Tóquio se tornara uma cidade global, efervescente, inebriante, sedutora e abrangente, mas não sem abrir mão de algo. O também cineasta Werner Herzog, presente no observatório da Torre de Tóquio durante as filmagens de Tokyo Ga, dá seu depoimento:

"Isso é tão simplesmente poluição visual. Olhando daqui de cima, é um amontoado de construções. Quase não existem mais imagens possíveis, teríamos de fazer uma escavação arqueológica. É preciso rebuscar nessa paisagem violada para encontrar alguma coisa." 




Na minha opinião, essa imagem consolida o propósito do filme. Ela, talvez diga tudo o que tento dizer com o Otakismo em extensos textos.

"Foi só ao ver um rapaz no metrô, um menino que simplesmente não queria andar mais, que percebi porque as minhas imagens de Tóquio pareciam-me as de um sonâmbulo: Nenhuma outra cidade, junto com seu povo, parecia-me tão familiar e íntima muito antes de eu a conseguir visitar, graças aos filmes de Ozu. Eu queria redescobrir essa familiaridade (viajando para Tóquio), e era essa imagem que minhas imagens de Tóquio procuravam. Nesse rapazinho do metrô, eu reconheci muito das crianças rebeldes dos filmes de Ozu, ou talvez eu apenas as quisesse reconhecer. Talvez eu estivesse a procura de algo que não existia mais."

Infelizmente não tem o vídeo no Youtube, mas a sequência dessa cena é um garoto que se recusa a andar, jogando-se no chão de modo insistente. Se esquivando do caminho determinado pela sua mãe, o garoto foge do seu destino, exime-se da responsabilidade. Evidente que o garoto se prostrava por alguma outra razão, mas esteticamente, ele personaliza o que seria a juventude japonesa dali para frente. Cansaço, enfado, tédio e recusa de fazer o que, lhes dizem, deve ser feito. Wenders, por uma questão cronológica, não pôde analisar essa criança por outras vias, mas eu vejo nela uma travessa de otaku, um pouco de hikikomori e, infelizmente, uma pitada de Aum, Verdade Suprema, responsável por um atentado com gás venenoso no metrô de Tóquio. Assim como o alemão queria ver nela um herdeiro de Ozu, algo que restasse, que tivesse sobrevivido à enxurrada de néon.



Quando o índice Nikkei oblitera o Imperador, o Monte Fuji, a família, ou qualquer outra referência ou instituição possível, o país compra um problema. O adoecimento cultural do Japão era previsível, ainda que quase impossível de se enxergar enquanto a locomotiva do progresso econômico estava correndo a todo vapor. Bastou uma leve cutucada na bolha imobiliária japonesa para que o trem descarrilhasse e tudo que havia de mais podre por trás do crescimento japonês pudesse emergir, com sua torrente de água suja a emporcalhar a cidade, escancarando o preço pago pela riqueza.

Esse é o Japão do escritor e cineasta Ryu Murakami (não confundir com o escritor Haruki Murakami, nem com o artista plástico Takashi Murakami, é outro). O Japão da degeneração, da deterioração, do término do sonho, do mal-estar, do enjo-kosai. Haruki também é um escritor famoso por usar esse período como pano de fundo para seus livros, mas enquanto ele trata esse enjoo existencial dos japoneses de modo mais agridoce, Ryu mergulha no submundo e revolve todo o excremento deixado nos esgotos de Tóquio.



No seu filme Tóquio em decadência (Topazu, 1992), Murakami resolve usar o submundo da prostituição, mais precisamente do lado mais negro dentro dela, do sadomasoquismo à necrofilia, para escarnecer aquilo que Tóquio, e consequentemente todo o Japão, tinha se tornado. Uma cidade mastodôntica e impessoal, culturalmente degradada, onde o sexo, o consumo e a pseudo-espiritualidade eram os únicos caminhos para aguentar a vida dentro desse centro de desagregação social. A citada referência do Monte Fuji, dos tempos de Hokusai, em Murakami vira uma projeção para um maníaco e seu desejo de emular um estuprador que violentou uma moça nos pés da 'Morada dos Deuses' nos anos 50. Que paulada.

"Não tenha medo. A confiança é a chave para o sadomasoquismo. Confie em mim. Eu não vou te machucar. Qual é seu nome mesmo? Alguém tão pura e corajosa como você, Ai, é a única esperança para esse Japão podre. Eu adoro você." (Ai é a prostituta, que nesse momento estava amarrada e vendada, com as pernas abertas. Captou o cômico da pureza?)

Murakami, ao focar na vida sexual noturna de Tóquio, pretende afirmar que esses desvios de comportamentos não seriam outra coisa senão consequência dos excessos da modernidade japonesa. Quando uma prostituta questiona outra, mais experiente, sobre sua riqueza pessoal, ouve como resposta:
"Realmente não. É o Japão que é rico, mas é riqueza sem orgulho. Isso cria ansiedade, que leva os homens ao sadomasoquismo"



Diante desse vazio interno, o misticismo de botequim acaba sendo uma solução. Atendimento espiritual fast food nas ruas. Compre um anel rosa, frequente tal ambiente, e Deus lhe trará bons fluidos. O Japão ainda nos anos 80 estava tão cronicamente apartado de suas raízes, morais, espirituais, habituais, que a juventude apelou para essa espécie de religiosidade, responsável pela promessa de acalmar a alma sem maiores envolvimentos, apenas seguindo uma bula de quatro ou cinco passos. E uma assistente social de dia, prostituta de sadomasoquistas à noite, buscou paz de espírito assim...comprando um anel (topaz rosa, daí o nome oficial do filme), enquanto o outro anel, para usar de modo patético a metáfora, era fornecida para qualquer espécime de sádico. Se você tem mais de 20 anos, deve lembrar daquele brinquedo usualmente encontrado em shopping centers e parques de diversão nos anos 90, um mago eletrônico que lhe adivinhava o futuro, ou algo semelhante. Essa tralha foi concebida no Japão, mas lá, isso foi levado a sério. Ali, milhares de adolescentes buscaram estancar os buracos não preenchidos pelo materialismo moderno, comicamente, alimentando-o ainda mais com moedas.

Murakami também tem um livro, traduzido para o português, com o mesmo mote. Em Miso Soup, Kenji é  guia do turismo sexual de Tóquio. Um dos seus clientes é um serial killer ocidental responsável pelo assassinato brutal de prostitutas e estudantes adeptas do enjo kosai, os encontros remunerados (que você pode conhecer melhor clicando aqui). Frank, o serial killer, questiona Kenji:

"Quem é mais danoso à sociedade, eu ou esse mendigo? Um ser como eu é sem sombra de dúvidas nocivo, muito semelhante à um vírus. Embora os que causam doença sejam raros, existem incontáveis outros tipos de vírus cuja função é criar diversidade de vida, auxiliando mutações, por exemplo. Creio que não fosse pela existência dos vírus os seres humanos não teriam surgido no mundo. Alguns vírus se infiltram em nosso DNA e modificam as informações genéticas, e ninguém pode afirmar de forma categórica que o HIV, causador da AIDS, não as estaria alterando para informações necessárias à sobrevivência futura da espécie humana. Ao cometer crimes eu choco as pessoas deliberadamente, para levá-las a refletir, e por isso me acho importante neste mundo, ao contrário dele."


Eu mencionei quatro visões da cidade de Tóquio, não? Mas eu menti pra você. A quarta se desmembra em duas, 4A e 4B, e vou apresentá-la à você agora, como presente por ter chegado até aqui. Como última referência artística, quero citar um poema escrito por um menino de 15 anos. Yoshihiro Inoue:


"Somos verdadeiramente felizes
Neste mundo em que os adultos consideram
Que basta ter dinheiro
Para poder encontrar tudo o que quisermos.
Eu gostaria de fugir
Deste hediondo rebanho humano
Onde só há grana e vício
E tomar um trem à noite para ir para longe.
Apressados pelo tempo
Quando o dia, passado a correr, termina em toda parte,
Já é a manhã do dia seguinte.
Ao nascer do Sol,
o turbilhão humano implacável nos afoga.
Não consigo sair disso,
Se é esse o nosso futuro
Eu gostaria de fugir
Deste hediondo rebanho humano
E tomar um trem à noite para ir para longe."


Não sabe quem é o pequeno Inoue? Ele realmente fugiu do hediondo rebanho humano. Mas o encontraram nos anos 90. E o menino que escreveu esse poema foi preso, acusado de sequestro, homicídio e planejamento do atentado ao metrô de Tóquio em 1995. Um atentado terrorista? No Japão? perpetrado por japoneses? Mas o Japão não era o país mais seguro do mundo? Não viviam os japoneses numa perfeita atmosfera de progresso econômico, na condição de verdadeiras máquinas de felicidade, como diriam as palavras do Presidente Hoover, que achava lindo esse modelo de amaciar as massas ao mesmo tempo em que se multiplicava a economia, via consumo? Teriam os japoneses motivos para se rebelar?



Aguardem. No dia 20 de Março, publicarei um post destrinchando o atentando terrorista de 1995. Um atentando sem motivações separatistas, políticas ou religiosas, ainda que executava por uma seita budista. Um atentado existencial, um ataque à sociedade japonesa vindo de dentro, dos seus obedientes filhos. Ironicamente, em linhas de metrô. O trem, que de modo persistente costuravas as narrativas de Ozu. Que simbolizou o novo Japão com o trem bala, e depois serviu de metáfora para Hideaki Anno, em seu Love & Pop, condenar a vida predestinada do japonês, que nasce e necessariamente se adéqua, vivendo sua vida como trens andam em trilhos; o caminho não é desconhecido nem permite surpresas. O trem presente no poema do menino. O mesmo trem que ele preferiu usar não mais para denunciar um problema, mas para purgá-lo. Varrê-lo com gás. Violentar a cidade e o país para forçá-lo à auto-reflexão, justamente como o serial killer de Miso Soup. Esse é um recorte de Tóquio que começo hoje e termino dia 20 de Março, 9h da manhã, 17º aniversário desse evento macabro. Espero que tenham gostado. Ajudem com a divulgação. Comprem um anel de topaz.



Fontes:
Tokyo Tower: O símbolo da ascensão japonesa - (por Cesar Hirasaki e Mariana Spagnuolo)
O anticinema de Yasujiro Ozu - Kiju Yoshida
Ozu - O Extraordinário Cineasta do Cotidiano, por André Parente e Lúcia Nagib

Aum Shinrikyo: A Verdade Suprema e o ataque terrorista com gás sarin no metrô de Tóquio em 1995

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“O dogma produtivista do alto conhecimento a qualquer preço, do consumo exagerado e da “rainha” economia não encontra mais eco entre os jovens que se interrogam sobre seu futuro, apontam a destruição ambiental, as humilhações escolares e as mortes por excesso de trabalho [karoshi]. Entretanto, quando a sociedade dominante não conhece outros deuses além do índice Nikkei e considera a abertura das lojas aos domingos um avanço social, em direção a que valores podem [os jovens] voltar-se?” (Etienne Barral)

"Por um tempo após o ataque com gás, quando eu estava dormindo no hospital, eu tinha pesadelos terríveis. Eu costumava ter sonhos nos quais eu era um pássaro voando no céu, mas depois eu era abatido. Uma flecha ou uma bala, eu não sei. Eu estava ferido, deitado no chão, moribundo esperando a morte - sonhos como esse. Inicialmente felizes, voando pelo céu, e então um pesadelo". Com essa implicante edificação onírica, o inconsciente da vítima Kenji Ohashi  apresenta de modo consistente uma parábola da história japonesa do pós-guerra. Um falcão que alça vôos intensos e longínquos, e enfim tem suas asas perfuradas por um rajada. O corpo em queda livre, mas ainda consciente, se questiona de onde e porquê. Resta-lhe o chão empoeirado  e asas danificadas. Na impossibilidade de domar as alturas novamente, o máximo que poderá fazer é buscar entender o que deu errado e tentar sobreviver no chão o máximo que der, uma vez que o céu já não lhe diz mais respeito. Uma perspectiva tão fatalista quanto atual.

Kenji foi uma das milhares de pessoas molestadas com gás venenoso no metrô de Tóquio em 1995. O inimaginável aconteceu. Um atentado terrorista aconteceu no local mais seguro do mundo, o Japão, a partir das pontas de guarda-chuvas dos membros de uma seita pretensamente budista, doutrina de onde menos se pode esperar um ato violento. 



Seguidores da seita japonesa Aum Shinrikyo (traduzido como Aum Verdade Suprema) conduziram ataques simultâneos em cinco carros de diferentes trens do metrô de Tóquio com sarin no dia 20 de março de 1995, resultando em 12 mortes e cerca de 5500 pessoas afetadas de alguma forma, sendo mais de 1300 com lesões permanentes. O mais grave acontecimento japonês desde a última grande guerra tinha um alvo definido, a estação de Kasumigaseki. Todos os cinco comboios se dirigiam à estação que dá para as ruas onde se concentram os Ministérios, o Palácio Imperial, o centro da Polícia Metropolitana de Tóquio e as sedes empresariais de Marunouchi. Um golpe perpetrado com armas de destruição em massa direcionado aos símbolos de poder do país. Um assalto emblemático e desastrado que mirou potentes holofotes na direção do que havia sido ignorado por décadas. O mal-estar existencial e a deriva moral da nação japonesa  que eclodiu nos anos 80 e 90.

As imagens de corpos estrebuchando no chão e do Exército com máscaras futuristas desbravando as estações de metrô como astronautas explorando Marte foram tatuadas nos veículos midiáticos japoneses no ano de 1995, e a saturação do improvável assustou os nipônicos de modo irreversível. O gás levou consigo o que restava da auto-estima nacional e descosturou o matizado tapete persa que cobria todas as doenças sociais do país com a aparência da felicidade e da segurança. O gás, mais do que afetar diretamente milhares de inocentes, somou-se aos demais sintomas da anomia japonesa (otaku, hikikomori, ijime, enjo kosai, karoshi etc) e mostrou ao mundo que o Imperador estava nu, como Étienne Barral demonstrou de modo brilhante em seu livro Otaku - Os filhos do virtual.

Mais do que denunciar a agonia japonesa, o ataque ao metrô de Tóquio pode ser colocado, em escala global, ao lado de outras crises humanitárias como o Massacre na Praça da Paz Celestial na China, a questão iugoslava, o genocídio em Ruanda, o 11 de Setembro, entre outros exemplos. Tóquio, Sarajevo, Nova Iorque, Pequim, Caxemira, Kigali e outras cidades confirmaram, da pior forma possível, as palavras do historiador britânico Eric Hobsbawm no seu clássico A era dos extremos, "o velho século não acabou bem", a despeito do indiscutível progresso técnico e material verificados em vários pontos do planeta.

Nesse post eu pretendo trazer uma abordagem multifatorial do caso, com informações factuais e análises de especialistas, tudo costurado por inúmeros depoimentos, que às vezes se contradizem, de vítimas e membros da seita, a maioria retirada do livro de jornalismo investigativo Underground do consagrado romancista Haruki Murakami; além é claro, dos meus pitacos pessoais, como mero observador que tinha apenas 4 anos de idade quando o Japão sofreu essa fratura exposta. Minha intenção é criar, no aniversário   do evento, um material virtual rápido e não-acadêmico que seja referência no assunto em língua portuguesa. Espero ser feliz nessa missão. (toda a tradução é minha, e não sou nenhum especialista em inglês ou espanhol, perdoe qualquer erro)

“Quando eu estava na América do Sul, eu fui convidado para o karaokê por alguém da embaixada japonesa na Colômbia. Então, quase voltamos no dia seguinte para o mesmo lugar, mas eu disse ‘Não, vamos tentar algum lugar novo’. E naquele mesmo dia, o lugar foi bombardeado. Eu me lembro de pensar quando eu voltei pra casa ‘Pelo menos, o Japão é um lugar seguro”. E no dia seguinte eu vou ao trabalho e o ataque com gás acontece. Que ironia.” Mitzuteru Izutsu (vítima)



20 de março de 1995, uma ensolarada segunda-feira que procedeu e antecedeu feriados nacionais japoneses. Um dia rotineiro atrapalhando um fim de semana prolongado de primavera. Certamente ninguém gostaria de deixar suas camas e famílias para algo que não fosse assistir ao florescer das cerejeiras nesse dia preguiçoso, mas o senso de responsabilidade sempre fala mais alto no Japão, e alguns pagaram essa obediência com a vida.

Cinco membros da seita esquizofrênico-budista Aum Shinrikyo embarcaram em diferentes trens no horário de pico do período matutino. Munidos com pacotes recheados de sarin na forma líquida - e envelopados em jornal - os terroristas perfuraram seus respectivos invólucros com a ponta do guarda-chuva e deixaram o trem para pegar uma carona com os motoristas que os esperavam na saída de cada uma das estações violadas. Alguns vestiam máscaras para se proteger do vapor venenoso, situação que não causa estranhamento no Japão como causaria no Brasil. Conheço duas justificativas para o japonês usar máscaras no espaço público com tanta naturalidade. A Guerra Mundial devastou muitas florestas japonesas, e nos espaços desvirginados o governo local reflorestou com duas espécies de pinheiro (sugi e hinoki), dos quais o pólen causa alergia em 1/5 dos descendentes de Amaterasu, portanto, a máscara é uma proteção usual na primavera e não levanta suspeitas. Além disso, dizem que quando resfriados, os japoneses usam as máscaras para tentar diminuir  possibilidade de transmitir a doença para outras pessoas, um ato sintonizado com a cultura coletivista japonesa de colocar o grupo acima do indivíduo (não sei se a máscara é capaz de deter o vírus influenza, nem se realmente acontece, só tenho certeza da primeira).

“Quando você trabalha pelo tempo que trabalhei, você começa a ver todos os tipos de cenas. Eu estive até no terremoto de Kobe. Mas o ataque com gás em Tóquio foi diferente. Aquilo foi verdadeira e realmente o inferno.” Minoru Miyata (motorista da van da TV Tokyo, que serviu de ambulância paras algumas vítimas)



Antes de prosseguir, é válido uma nota de rodapé para explicar o que é sarin e trazer ao plano dos pobres mortais que não estudam química a dimensão do ataque. O sarin, quando puro, é um composto extremamente volátil desenvolvido por químicos alemães no período nazista. Ao contrário do que se pode imaginar - e isso foi recorrente nas minhas pesquisas -, o sarin não foi desenvolvido como arma de guerra ou extermínio, pelo contrário, foi um dos subprodutos de pesquisas com fertilizantes que visavam aumentar a produção agrícola e resolver a problemática da fome mundial (omitir essa informação, dentre outras, e pintar o governo alemão apenas como artífices do apocalipse germanista é uma sinuosa tentativa de reescrever a história e nazificar padrões de comportamento da época compartilhados por comunistas, fascistas e capitalistas democráticos, mas isso é assunto para outro local - e que fique claro, não estou tentando limpar nazistas, e sim sujar os outros que aproveitaram a temporária demência alemã para passar um perfuminho na própria História e empurrar toda a sujeira do mundo para baixo do tapete ariano).

Deu errado como fertilizante, mas o resultado foi uma substância que evapora de modo inodoro e é até 26 vezes mais letal que o cianeto, bastando 10 milionésimos do peso de um homem para matá-lo. Os sinais mais claros de intoxicação são a cegueira (temporária ou permanente, o que varia com a quantidade inalada ou tocada), coriza, vomito, náusea, convulsões, diminuição da frequência cardíaca, dificuldade de respirar, dores de cabeça e contrações musculares. Como arma, antes da Aum, esse gás letal para o sistema nervoso só havia sido usado por Saddam Hussein contra os curdos - e não em trens subterrâneos. Mesmo os nazistas tendo essa arma em mãos, ela não foi usada na guerra. A experiência com o gás mostarda na primeira grande guerra foi tão desgraçadamente cruel que mesmo os exércitos de facínoras como Hitler, Stalin e Hideki Tojo não fizeram uso de guerra química nos campos de batalha, com exceção dos italianos na África em episódios menores (é verdade, eles exterminaram judeus com Zyklon B, mas isso já não era guerra, era estratégia de dizimação). É com esse brinquedinho que os filhos diletos da modernidade japonesa atacaram seu próprio seio.


“E eu continuei tendo esses sonhos. A imagens daqueles atendentes da estação, com colheres em sua bocas presa na minha cabeça (...) Eu não sei quantas vezes eu acordo no meio da noite. Assustada.” Kiyoka Izumi (vítima que trabalhara antes para a Japan Railways e percebeu que toda sua experiência não era útil em situações críticas)




Ikuo Hayashi (condenado à prisão perpétua por colaboração com a polícia na prisão do alto escalão da Aum, inclusive do líder Shoko Asahara), cardiologista graduado em Medicina pela Universidade de Keio (uma das melhores de Tóquio) perfurou apenas um dos seus dois invólucros no trem da linha Chiyoda, mas o conteúdo evaporou completamente, resultando em duas mortes e 231 pessoas seriamente feridas.

Yasuo Hayashi (condenado à morte), guaduado em Inteligência Artificial pela Universidade de Kogakuin, é apelidado de 'murder machine'. Sob suspeitas de ser um espião infiltrado, Hayashi foi o único que levou consigo três embalagens de sarin, como prova de lealdade, e perfurou todos, sendo o mais letal dos terroristas. Seu saldo no trem da linha Hibiya foi de 8 mortes e 275 pessoas gravemente lesadas.

Toru Toyoda (condenado à morte em 2009), graduado com honras em Física aplicada pela Universidade de Tóquio - uma das dez melhores do mundo -, era mestre e estava cursando o doutorado quando resolveu abandonar a vida civil para adentrar na seita. Ajudou na fabricação do sarin e sua resposta à sociedade que lhe considerava um filho bem sucedido, um pupilo da elite, foi uma morte e 532 com danos consideráveis na linha Marunouchi.

Masato Yokoyama (condenado à morte em 1999) foi o menos efetivo dos terroristas. Apesar das múltiplas tentativas, apenas um dos dois sacos de sarin foi perfurado, e com um único golpe eficaz. Para a sorte das pessoas do outro trem atacado na linha Hibiya, a formação em Física aplicada pela Universidade de Tokai não ensinou ao Yokoyama a arte da esgrima e sua agressão foi a única que não resultou em morte, ainda que cerca de 200 pessoas tenham sido afetadas.

Kenichi Hirose (condenação à morte confirmada em 2009), pós-graduado em Física pela excelente Universidade de Waseda na condição de melhor aluno da turma, derramou 900ml de sarin em outro carro da linha Marunouchi, retribuindo assim tudo o que o Japão tinha de melhor a oferecer com uma morte e 358 cidadãos gravemente injuriados.

"Logo após o ataque eu estava louco de raiva. Eu andava pelos corredores do hospital batendo nos pilares e nas paredes. No momento, eu ainda não sabia que tinha sido a Aum, mas quem quer que fosse, eu estava pronto para espancá-los. Eu nem percebi, mas alguns dias depois meu punho estava ferido. Eu perguntei à minha esposa 'Estranho, por que minha mão dói tanto?' E ela disse 'Você esteve socando as coisas, querido'." (Tatsuo Akashi, 37)



Por alguma razão, o sarin usado pela Aum não estava suficientemente purificado, sendo assim menos efetivo em sua letalidade, e fedido - um aroma entre o doce e o apodrecido - o que fez com que algumas pessoas desconfiadas com o conteúdo fétido que vazava das bolsas perfuradas se afastassem do perigo. Um gás puro e inodoro certamente faria com que o número de mortes, e não de feridos, se contabilizasse aos milhares. Por outro lado, se o gás fosse imediatamente mortífero, todos perceberiam de cara a situação trágica e fugiriam, mas muitos continuaram respirando o sarin impuro por um longo tempo. Não achei informações se isso foi decorrência de incompetência dos técnicos da Aum ou proposital, para fazer do ataque um ato mais 'simbólico' que um extermínio massivo, ou mesmo para que seus homens conseguissem fugir a tempo sem sentir graves efeitos.

Ainda assim, foi o suficiente para transformar as três estações de metrô em pandemônios contidos. Algo definitivamente não estava bem, isso estava claro para os transeuntes e funcionários, mas não era uma situação de guerra, de pavor, histeria coletiva... pelo menos no início. Algumas pessoas caindo, espumando pela boca, todos tossindo, mas nada realmente catastrófico para tirar o japonês do seu peculiar estado de contenção. O que se mostrou problemático, pois enquanto as pessoas eram evacuadas sem pressa alguma das estações, estavam todas inalando doses de gás.

Todos mencionam a estranheza do principal efeito do sarin nos olhos. Nas entrevistas é unânime o enegrecimento da visão, como se alguém tivesse apagado as luzes. Por felicidade, o dia estava muito ensolarado naquela manhã, e essa disparidade entre a luminescência do Sol vista até então e o clima de cinema no metrô fez com que muitos percebessem, enfim, que algo estranho de fato tinha acontecido.


"Focar também é difícil. Se eu estou olhando para um lado, alguém me chama e eu viro de repente, isso me machuca como uma marreta. Isso acontece o tempo todo, uma dor aguda na parte de trás dos olhos. (...) Eu sei que eu não aparento estar sentindo dor constantemente, mas imagine usar um capacete de pedra, dia sim, dia não. Eu duvido que isso faça sentido para alguém. Eu me sinto muito isolado. Se eu tivesse perdido um braço, ou fosse reduzido a um estado vegetativo, as pessoas provavelmente poderiam compreender melhor. Se eu apenas tivesse morrido, quão mais fácil teria sido. Nada desse nonsense. Mas quando eu penso em minha família, eu tenho que continuar..." (Kenji Ohashi, 41, uma das vítimas permanentes do sarin)



O caos se instalou nos hospitais de Tóquio. Milhares de pessoas chegando com os mesmos sintomas de um problema desconhecido. Ausência de ambulâncias, morosidade da Polícia e das autoridades governamentais de Kasumigaseki. Pessoas babando no chão, repórteres circunscrevendo esse cenário dantesco e um diagnóstico tardio das causas do problema. De modo paradoxal, a própria Aum serviu como vacina para seu ataque, já que usou sarin em outro evento menor em 1994 e um hospital do Japão sabia exatamente quais eram os sintomas, e qual o tratamento adequado para cada nível de intoxicação. O médico que cuidou do incidente anterior mandou fax para todos os hospitais da cidade e impediu várias mortes, já que um parecer oficial saiu apenas no final da tarde.

Nos sobreviventes, sejam mais ou menos afetados, incluindo todos os seus parentes e amigos, ficaram sequelas. Não apenas na visão ou na capacidade de se concentrar (e há casos de pessoas que perderam a memória, a capacidade de falar e se locomover). A sequela que ficou está além disso. Por que uma seita budista faria isso com inocentes a caminho do trabalho? O Japão estava perplexo, mas foi necessário uma catástrofe social desse quilate para que o país parasse para pensar: Por que? Por que no Japão? Por que no Japão pelas mãos de japoneses aparentemente bem sucedidos? Onde foi que erramos? O que seguirá agora é o histórico da Aum Shinrikyo, a explicação do contexto que permitiu uma seita com fundamentos difusos ter tantos adeptos, para que no final eu possa apresentar interpretações holísticas do atentado e da crise nacional que encobre o Japão há pelo menos 30 anos, mas precisou de gás para sair das sombras. Vem comigo?

"Ninguém disse uma coisa, todos estavam tão quietos. Nenhuma reação, nenhuma comunicação. Eu vivi nos EUA por um ano, e acredite em mim, se a mesma coisa tivesse acontecido nos EUA teria havido uma "real scene" (?). Com todo mundo gritando 'o que está acontecendo aqui?' e se unindo para encontrar a causa. Mais tarde, a polícia me perguntou 'As pessoas não começaram a entrar em pânico?':  'Ninguém disse uma palavra'" (Ikuko Nakayama - 30's - válido lembrar que isso aconteceu em um único trem, nos demais houve sim uma movimentação generalizada para abrir janelas e se comunicar com funcionários)
Shoko Asahara
A seita Aum Shinrikyo foi fundada em 1984 pelo guru Shoko Asahara (preso em 82 por exercício ilegal da farmácia), ainda sob o nome de Assembléia da Montanha Divina Aum. Os fundamentos religiosos da Aum são mesclas de vertentes distintas de budismo (Theravada, Mahayana e Vajrayana), com traços de cristianismo (conceito de Armagedon), pseudo-ciência, taoísmo, yoga hindu e até profecias de Nostradamus, com pitadas estéticas da cultura otaku! Não precisa ser um grande teólogo para notar que a religiosidade da Aum era esquizofrênica e superficial, um caldeirão de recortes que não dialogam entre si, interpretados pela cabeça megalomaníaca do fundador Asahara.

Com essa promessa estilhaçada e absurda, no entanto, a seita começou a ganhar força no Japão, sobretudo após o encontro do guru com o Dalai Lama em 1987, que lhe pediu apoio para ajudar a difundir o budismo no país. De 36 membros para mais de 600 em um ano, e enfim, no seu auge, alcançar 10 mil fiéis nipônicos e quase 40 mil mundo afora, principalmente na Rússia, Alemanha e EUA. Mais de 1200 japoneses doaram absolutamente todas as suas posses materiais e força de trabalho à Aum, se retiraram da sociedade civil, em troca de abrigo nos domínios da seita. Um crescimento expressivo, mas pequeno perto de algumas das 180 mil seitas registradas no governo no início dos anos 90.

Um grande passo para o crescimento da Aum foi o Shukyo Hojin Ho, a lei japonesa que permite às entidades religiosas uma série de direitos, como isenção fiscal, direito à propriedade privada e proteção do Estado. A Aum começou a diversificar sua fonte de renda e não faturar apenas com o dinheiro de doações e cursos ministrados (que por si só já configuram um volume bem expressivo de dinheiro), e começou a aplicar esse montante em lojas, restaurantes, montagem de eletrônicos etc. Além disso, uma indenização concedida pelo governo, paga por tê-los forçado a mudar de uma cidade onde estavam instalados, possibilitou que o grupo de Asahara movimentasse dezenas de milhões de dólares.

“Se for verdade que a Aum instalou um formidável sistema de lavagem cerebral, melhor, isso é excelente. Que todos os novos adeptos sejam submetidos a uma lavagem cerebral e a um controle do pensamento. Hitler era um ditador político, Mao Tsé-Tung era um ditador do pensamento, então, eu sou o ditador da fé que os conduzirá, a todos, ao desprendimento último” (Shoko Asahara)

Dalai Lama e Shoko Asahara

Shoko escreveu vários livros interpretando textos budistas antigos como o Pali Canon, mesclando isso com suas experiência pessoais. Dizia poder levitar e ler a mente (apesar de não fazer uso desse poder para descobrir os espiões infiltrados, optando pelo pragmático detector de mentiras) e se auto-intitulava a encarnação de figuras como Shiva e Jesus Cristo. A Aum, cujos principais líderes haviam sido derrotados nas eleições legislativas de 1990 após campanha cara e macarrônica, se torna cada dia mais personalista e não é possível entender o grupo sem partir do princípio chamado culto à personalidade, onde membros vão até pagar caro para beber a água do banho de Asahara. O grupo se torna progressivamente mais agressivo com seus membros e com o mundo. Os rituais de iniciação passam a envolver LSD e choques elétricos na cabeça. Membros que tentavam abandonar a seita eram sequestrados e mantidos em cárcere privado. Estima-se que 46 membros morreram acidentalmente nos castigos impostos aos impuros questionadores, reféns do tangível e dos prazeres da carne.

Uma espécie de Estado é criado num vilarejo rural de Kamikuishiki, nos pés do Monte Fuji, para isolar de fato parte dos seus membros da sociedade civil. Os japoneses que fugiram do rico Japão para seguir os passos do guru ficaram encarregados de todas as funções internas do grupo, da construção de casas ao tratamento médico dos internos. 

"Atualmente, nós alcançamos uma grande riqueza material, mas perceba que isso não traz satisfação, por isso algumas pessoas empreendem uma busca pelo mundo interior. Entre as pessoas que passaram a época da fome  se formou o seguinte esquema: viver significa trabalhar, e trabalhar significa uma vida rica. Sem dificuldades, a juventude leva uma vida rica desde a infância, e desde então toma consciência do sofrimento e da vaidade que se encontram nas sombras da riqueza, por isso é natural que a juventude comece a aspirar algo além desse mundo material, que esta sociedade materialista."  (Shoko Asahara, que apesar do discurso anti-materialista e contrário os prazeres mundanos, andava de Rolls Royce, comia melões de 500 francos, não hesitava em fazer filhos e raramente comia a mesma comida ascética dos fiéis)



A visão de mundo da seita também se modifica no decorrer do tempo, e o grupo, que inicialmente pretendia purificar o mundo para impedir a iminente catástrofe degenerativa da humanidade, passa a abraçar um crescente pessimismo na virada dos anos 80 para os 90. A derrota vergonhosa nas eleições, outra ferida narcísica marcando a pele de Asahara (que quase cego não pôde frequentar escolas normais e também foi rejeitado na Universidade de Tóquio), foi o fator pontual para essa mudança, a evidência definitiva de que o Japão não apenas não poderia, como não queria ser salvo da destruição. Shoko teve contato com as escrituras bíblicas e dela retirou o conceito de Armageddon, que mesclado com o conceito budista de Vajrayana porcamente interpretado e com as noções do deus Shiva do hinduísmo (aquele que traz a destruição para renovar o mundo), surgiu-lhe a convicção de que  o mundo humano tinha chegado a tal ponto que restaurá-lo era uma impossibilidade. A partir das palavras de Nostradamus e sua previsão de fim do mundo no ano de 1999, Asahara se colocou na condição de artesão do apocalipse que varreria o homem vil da Terra e faria emergir uma nova humanidade sem vaidades do seio daqueles que têm fé, primeiramente todo o mundo budista, depois estritamente os membros da Aum. Na concretização desse objetivo, não bastava a violência interna contra as vozes dissidentes, era preciso combater também o mundo que supostamente conspirava contra o culto. Mesmo que as mãos puras dos seguidores se sujassem em sangue civil.

O primeiro caso de truculência que envolveu a Aum foi a morte do advogado Tsutumi Sakamoto e sua família em 1989. Ele encabeçava uma ação anti-Aum, contestando aos métodos usados pela seita para trazer seus membros para o isolamento. O envolvimento da seita nos assassinatos era provável, uma medalha do grupo foi achada na residência da família, e, se não provava a autoria do crime, demonstrava em qual direção as autoridades deveriam mirar seus esforços de investigação. O envolvimento de membros nessas mortes só foi provado em 1995, após as prisões em massa decorrentes do atentado no metrô, em outras palavras, a impunidade prevaleceu.

“Por muito tempo pensei que meu destino fosse salvar a sociedade. Mas há algum tempo começo a crer que talvez seja impossível salvar essa sociedade humana que transformou a si mesma em inferno” (Shoko Asahara)


Um acontecimento muito maior que envolveu sarin antes do ataque no metrô foi o incidente na cidade de Matsumoto. Caminhões pulverizaram o gás em um complexo habitacional, matando 7 pessoas e ferindo outras 600, com 144 hospitalizados em estado grave. O alvo? Juízes prestes a tomar decisões no tribunal que desfavoreceriam os interesses da Aum. Deu certo, os juízes não puderam dar seu parecer no tribunal e o governo japonês imaginou inicialmente que se tratava de uma ação do Estado norte-coreano. Apesar das desconfianças crescentes em torno da seita, nada foi provado, ou melhor, devidamente investigado. Sobre essa omissão policial, Mitsuro Suganuma, então chefe dos serviços de inteligência do Japão, afirmou que por causa dos experimentos abusivos na Segunda Guerra, a religiosidade se tornou intocável no país, a policia se tornou permissiva demais com esses grupos para sequer permear a possibilidade de interferir no direito ao culto.


“Não é nem uma questão de tomar ou não o metrô, apenas sair para andar me assusta agora” (Tomoko Takatsuki)


De modo paralelo aos incidentes públicos de violência, a Aum começou a se armar. Organizou treinos militares na Rússia, China e Havaí. Mais do que isso, passou a comprar e fabricar armamentos pesados, preparando-se para a luta apocalíptica contra os impuros. Em sua sede foram encontrados maquinários para a montagem de fuzis AK-47, inúmeros compostos químicos e documentos acerca da produção de armas químicas, biológicas (anthrax) e mesmo da improvável compra de armas nucleares (mais delírio juvenil do grupo que possibilidade concreta, no caso). Nos seus laboratórios foram encontrados compostos e equipamentos suficientes para a produção de 70 toneladas de sarin, que conforme foi descoberto depois, seriam pulverizados sobre Tóquio em novembro de 1995 a partir de um helicóptero militar russo, já em posse da seita. Segundo os planos de Asahara, pelo menos, seria o gatilho para a derradeira Terceira Guerra Mundial.

"Na noite antes do ataque com gás, a família estava dizendo durante o jantar 'Meu Deus, como temos sorte. Todos juntos se divertindo...' Um modesto fragmento de felicidade. Destruído no dia seguinte por aqueles idiotas. Aqueles criminosos roubaram o pouco de alegria que tivemos" (Tatsuo Akashi, 37)


Mais de 2500 policiais desbarataram o grupo nos dias seguintes ao atentado no metrô. Nos meses decorrentes, a polícia foi a campo mais de 500 vezes e executou 400 prisões só em 1995. Cinquenta crianças criadas longe da sociedade civil foram pegas em custódia pelo Estado, mas mesmo assim, a Aum não estava morta. Uma autoridade polícia sofreu quatro tiros no dia 30 de Março e sobreviveu por um milagre. Asahara foi preso em 16 de maio, no mesmo dia em que uma carta-bomba endereçada ao Governador de Tóquio explodiu no rosto de uma secretária. Nos quatro meses seguinte ainda houve quatro tentativas de ataques ao metrô, duas delas com Zyklon B (o gás usado pela Alemanha nos campos de extermínio), todos fracassados.

Se a compreensão da razão do ataque deve ser interpretada em termos simbólicos e morais, o mesmo não pode ser dito a respeito das motivações acerca da data escolhida para o ataque, muito mais objetivas e estratégicas para a manutenção da Aum enquanto grupo. Asahara previu o fim do mundo para 1999, seguindo Nostradamus, apenas acrescentando que o fim chegaria numa guerra nuclear decorrente do embate entre o imperialismo americano e a força das corporações japonesas (ele inclui até armas de plasma nos discursos, numa óbvia apropriação da cultura otaku que ele tão bem usou para atrair fiéis da primeira geração desse fenômeno).

"'Por quê?' era tudo o que eu conseguia pensar. Mesmo no caso do IRA, eu poderia pelo menos ver as coisas pela sua ótica e talvez começar a entender o que eles esperavam alcançar. Mas este ataque com gás foi simplesmente além de toda a compreensão." (Kozo Ishino, 39)



O líder antecipou suas previsões primeiro para 1997 e depois para 1995. Membros da Aum ligados às Forças Armadas e à Polícia avisaram Asahara que os aparelhos do Estado estavam olhando a Aum de perto, prestes a avançar contra seus QG's, onde encontrariam provas irrefutáveis de ações criminosas. O ataque foi, então, antecipado para anteceder uma potencial ação policial, bem como tentar desviar a atenção deles com um ataque ainda mais devastador que o bem sucedido atentado em Matsumoto. Somado a isso, Asahara, maltratado pela diabetes e quase cego, teria antecipado seu Armageddon pessoal para poder testemunhas ainda em vida sua vingança contra o adoecido Japão, que sempre lhe negou seus desejos.

O objetivo do atentado seria menos o de matar pessoas de modo aleatório e mais um modo de demonstrar (e não desmentir empiricamente) as profecias apocalípticas do guru. Asahara iniciaria a Terceira Guerra, e caberia aos iluminados da seita a missão de repovoar o planeta com valores mais elevados quando toda a sujeira do mundo fosse enterrada pelos destroços do hipotético conflito. A estação de Kasumigaseki é o único local realmente capaz de proteger as massas japonesas da radiação de um ataque atômico, e a Aum, ao simbolicamente desnudar o rei com um ataque caseiro, mostrou como a estação, o governo japonês (um Estado títere do governo americano) e o povo do Japão são frágeis e incapazes de defender a si mesmos do mundo moderno e das ameaças externas. Apesar de toda a crueldade e megalomania do plano, não dá para negar a genialidade criativa na escolha do alvo e das armas. Com a mesma cajadada, a Aum erodiu de vez a auto-estima nacional (já em baixa pelo abalo da Economia em 1990) e apontou suas armas para os centros de poder do país, usando os próprios filhos preparados por décadas por esse Estado para 'brilhar' como o Sol Nascente.

"Meu filho era um funcionário do banco brilhante e diligente, com um bom futuro pela frente. Mas eu nunca soube que tudo isso não era suficiente para ele e que ele estava procurando algo mais." (mãe de um jovem que preferiu abrir mão da desenvolvida vida civil japonesa para entrar na Aum)



“Eu não sou uma vítima do sarin, sou um sobrevivente” (Toshiaki Toyoda funcionário da linha Chiyoda)

Ficou claro que o Japão subestimou a Aum como os americanos subestimaram a Al Qaeda no mesmo período. Grupos com grandes recursos - financeiros, militares e humanos - e um alvo em comum. Mas diferente do grupo islâmico, cujas ações são fundamentadas teologicamente e instrumentalizadas por interesses internacionais, inclusive de governos soberanos que os financiaram e lhes deram cobertura, a seita japonesa não estava envolvida com o capital internacional, nem com os desejos de Estados inimigos do Japão. Até porque há uma diferença absoluta de intencionalidade. Enquanto a Al Qaeda luta contra o Ocidente em nome dos ditames islâmicos que representa, os japoneses da Aum Shinrikyo tentaram purgar a modernidade da qual fazem parte. Não tinham um alvo externo, o intuito era implodir o próprio prédio (ainda que acreditassem na própria salvação).

“Com a sociedade do jeito que está, todo mundo correndo apenas atrás de dinheiro, eu posso até entender como os jovens podem ser atraídos por algo mais espiritual como a religião” (Hideki Sono (vendedor de roupas de grife, 36) 

De forma clara, a Verdade Suprema foi obra de um megalomaníaco carismático que conseguiu compreender o espírito nacional da sua época, entendeu os anseios da juventude oitentista, mas deu a ela um sentido de pertencimento com tons desastrosos. Você deve estar se perguntando como um grupo religioso com um fundamento religioso frágil como um castelo de cartas, e pitoresco como um bacanal romano, pôde ter conseguido angariar milhares de adeptos e movimentar milhões de dólares. Essa ainda é uma ferida aberta, mas vários pensadores, japoneses ou não, mostram que o feito é resultado cumulativo de décadas de excessos e cegueira no pós-guerra japonês. É preciso contextualizar o fato na desumanização resultante da mistura entre modernidade ocidental e cultura japonesa. Se a modernidade chegou no final do século XX angustiante mesmo para nós ocidentais que a martelamos mundo afora (o que se verifica facilmente pelo aumento absurdo na taxa de suicídios [inclusive infanto-juvenil], consumo de anti-depressivos, recrudescimento da toxicomania etc), quando ela se misturou com os princípios morais e habituais da nação japonesa, algo deu muito errado. O país sofreu um tilt.

"Sarin tem esse efeito: quando você cai no sono, de repente você acorda mais uma vez. Eu estava com medo do escuro. Eu tive que deixar as luzes acesas. Em algumas noites eu não dormi nada...." (Michael Kennedy, 63)


"Um monte de garotas da mesma idade que eu (15~16) tornaram-se retirantes e tivemos bons momentos juntas no dojo Segaya. Tínhamos muitas coisas em comum, afinal, elas também se juntaram a Aum porque o mundo lá fora parecia sem valor" Miyuki Kanda (jovem que já aos 15 anos não suportava o Japão que lhe fora oferecido e fugiu da sociedade civil, encontrando-se dentro da Aum)

Shoko Asahara não foi seguido apenas pelo seu carisma ou por uma máquina de lavagem cerebral, ainda que sem esses elementos a coisa não ganharia tamanha proporção. Ele estava inserido na onda de renascimento da espiritualidade japonesa característica dos anos 80 no arquipélago. Nessa época, mais de 650 mil japoneses, a maioria jovens, entraram em alguma atividade religiosa dessas mais de 180 mil seitas, e perto desses números, os 10 mil membros japoneses da Aum Shinrikyo são uma pequena fatia daquele bolo de aniversário da cidade de São Paulo, onde as pessoas mergulham com suas sacolas plásticas e tentam pegar para si a maior quantidade do pão-de-ló público. A sacola de Asahara nem era das maiores, e seu braço era curto comparado ao dos demais gurus que pipocavam no riquíssimo Japão...

Essas seitas eram procuradas por jovens conscientes do fato de que o mundo estava acelerado demais, irado e obcecado em demasia. E que algumas poucas pessoas estavam lucrando com o desconforto de milhões de japoneses! A juventude oitentista do Japão não queria apenas se livrar dos males terrenos, mas a elevação da alma. Crescidos num mar de materialismo e excesso nos estudos e no trabalho, estavam absolutamente apartados de uma vida interna, espiritual. Cansados de trabalhar por horas a fio em atividades sem sentido, eles passaram a questionar o imbricamento que levou o Japão ao topo do mundo ao mesmo tempo que jogou sua população no marasmo existencial. Prova inquestionável disso é o fato deles terem aberto mão de todas as suas (muitas) posses materiais e financeiras para se isolar do mundo, não fazer sexo, comer proteína de soja frita e tentar manter a cabeça fora da areia movediça. Nintendo e Matsushita já não eram mais capazes de servir como referência para essa parcela da população...


“Desde o término da guerra, a economia japonesa cresceu rapidamente até o ponto onde nós perdemos o senso de qualquer crise e as coisas materiais passaram a ser tudo o que importa. A ideia de que é errado prejudicar os outros desapareceu. Isso já foi dito antes, eu sei, mas isso [o atentado] realmente trouxe o assunto à tona para mim. O que acontece se você criar uma criança com essa mentalidade? Existe alguma desculpa para esse tipo de coisa?” (Mitsuo Arima, 41)

Isso é o bastante para sustentar a humanidade?

"A coisa mais importante para o Japão neste momento é buscar uma nova completude espiritual. Eu não vejo qualquer futuro para o Japão se nós cegamente persistirmos com as buscas materialistas de hoje." (Kozo Ishino, 39)


Metraux identifica quatro grupos básicos dentro da Aum. As pessoas comuns, jovens ordinários que não se destacaram nos estudos ou no trabalho (o que no Japão não necessariamente indica falta de comprometimento), tinham empregos medíocres ou estavam desempregados. Os estudante alienados, jovens recém formados ou que abandonaram a faculdade e se recusavam a trabalhar em corporações. Os velhos membros, formado principalmente por mulheres adultas, donas de casa ou viúvas, na busca pelo sentido da vida. E os acadêmicos, pessoas com ótima formação técnica, formados nas melhores universidades do país, e responsáveis pelo desenvolvimento das armas, animações e tudo de relevante que a seita produziu.

“Eu trabalhei em Tóquio durante 12 anos, eu sei tudo sobre suas formas peculiarmente assentadas.  Em última análise, a partir de agora eu acho que o indivíduo na sociedade japonesa precisa se tornar muito mais forte. Mesmo a Aum, depois de reunir tantas mentes brilhantes, o que eles fizeram senão mergulhar  direto no terrorismo de massa? Isso é justamente o quão fraco o indivíduo é.” (Mitsuo Arima, 41)


A Aum apelou principalmente para a juventude insatisfeita do país, uma nova geração denominada shinjinrui. Eles são os japoneses que apareceram nos anos 70 e 80, tiveram pouco ou nenhum contato com os traumas e dificuldades do pós-guerra, ao contrário, nasceram e cresceram num Japão rico, próspero e seguro.  São mais individualistas e menos conformistas que seus pais e, para eles, dedicação absoluta ao país e ao trabalho são conceitos datados. Os shinjinrui viajaram para o exterior e tiveram contato com outras culturas, principalmente a americana, e desse contato concluíram que preferem levar uma vida mais humana. Foram diretamente influenciados pelo discurso apocalíptico e pessimista do pop japonês setentista e pelo new age dos anos 80, que alimentou a busca por uma nova espiritualidade, uma movimentação desordenada e desorganizada, porém influente, pela pratica espiritual e busca pela conscientização. Dessa geração saiu o novo homem japonês que guiará o país no século XXI e alterará a competitividade da indústria japonesa no cenário internacional. Isso te faz lembrar dos homens herbívoros?

“As aspirações da juventude moderna, educada em um período de abundância do ponto de vista material, orientaram-se na seguinte direção: de que modo viver como indivíduo? Enquanto a sociedade adulta continua a contentar-se com a felicidade familiar e com a satisfação das suas necessidades materiais, a busca dos jovens por sua identidade e sua individualidade continuará a ser incompreendida. Tendo obtido na infância tudo o que seus pais sonharam, os jovens abriram-se a novas aspirações espirituais. E um dos meios de satisfazê-las é ultrapassar o invólucro carnal, a vida e a morte, e tornar-se puro de espírito.” (Yamazaki Tetsu, sociólogo)


O pessimismo no pop japonês nasceu da insatisfação crescente ou a alimentou? Ou as duas coisas?

“Eu já sabia que a sociedade tinha chegado a tal ponto que algo com Aum tinha que acontecer. Lidando com passageiros dia após dia, você vê o que vê. É uma questão de moral. Na estação você obtém um retrato muito preciso das pessoas em seu lado mais negativo.” (Toshiaki Toyoda, funcionário da linha Chiyoda)

O mais curioso do atentado ao metrô é o fato de que ele foi planejado, preparado e executado pela elite intelectual do Japão (eu não enfatizei as universidade e os cursos dos terroristas apenas para cansá-lo). Não por desiludidos sem eira nem beira, sem um lugar para cair morto. É gente com graduação na Universidade de Tóquio, cursando pós-doutorado! Pessoas que não fizeram questão de seguir seu maravilhoso caminho de elite para agredir a nação que os alçaram ao topo da pirâmide social. Etienne Barral, em seu indispensável livro Otaku, apresenta dois  argumentos para isso.

“A seita Aum mantinha uma política ativa de recrutamento de adeptos no meio universitário. (...) É interessante observar em relação a isso que, nos anos 70 esses estudantes a quem se prometeu o mais belo futuro, a elite da nação, é que aderiram em massa às idéias da extrema esquerda e lutaram para mudar a sociedade. Vinte e cinco anos mais tarde, quando a grande maioria da população e particularmente a juventude é anestesiada pelas mídias, são as mesmas elites que, ao constatar a deriva moral e a ausência de ideal na sociedade contemporânea, voltam-se para as seitas na tentativa de encontram soluções para sua angústia diante do futuro. Nesse caso, o episódio Aum é apenas um movimento prenunciador de problemas ainda maiores” (Etinne Barral) 


Barral - comprem o livro dele, é imprescindível para quem quer entender a cultura otaku!


O primeiro é que não é nada fácil ser adolescente numa sociedade igualitariamente próspera e tão bem orquestrada como a japonesa. Crescidos como bons meninos imersos no estudo, os japoneses seguram suas insatisfações e questionamentos até a idade adulta, tornando-se alvo fáceis para as promessas de seitas como a Aum, ao contrário da rebeldia ocidental, onde o indivíduo quando chega à idade adulta, se adéqua ao que a sociedade espera dele. O próprio Hideo Murai, o homem imediatamente abaixo de Asahara, superior que transmitiu as ordens do ataque aos cincos terroristas, assassinado após o atentado provavelmente por membros da própria Aum por saber demais, estava inserido na mesma lógica:


“Estou muito absorvido pelo trabalho, questiono-me sobre o sentido de tudo isso. Eu era encarregado da produção de peças para foguetes espaciais. Não me via passando toda a vida ali.” (Murai Hideo)

Esses jovens, paparicados como referência em suas Universidades, saiam de lá para o chão na fábrica do mundo corporativo, com algum trabalho monótono e décadas pela frente até conseguir subir no hierárquico sistema empresarial ou científico japonês. Asahara soube acariciar a auto-estima e o ego desses jovens tecnicamente brilhantes e deu-lhes cargos altos nos "Ministérios" da seita, equipamentos de primeira e liberdade criativa. Uma promessa muito mais sedutora, que a proposta pela sociedade civil, não?

"A maioria de nós riu com o cenário excêntrico e absurdo que Asahara forneceu e nós ridicularizamos os crentes que poderiam se atrair por algo tão lunático. Mas 'Nós' fomos capazes de oferecer a 'Eles' uma narrativa mais viável? Então, e quanto a você? Não temos confiado uma parte de nossa personalidade a algo maior como um Sistema ou Ordem? Se assim for, esse Sistema, em certo momento, não exigiu de nós algum tipo de insanidade? As narrativas que vocês possuem agora são de fato suas próprias narrativas? Seus sonhos são REALMENTE seus próprios sonhos? Eles não poderiam ser apenas a visão de alguém que poderia, cedo ou tarde, se tornar um pesadelo?" (Haruki Murakami)





Barral, como bom francês que é, dá uma acentuada importância ao sistema educacional japonês pelos problemas que o país enfrentou nas últimas décadas. Focado essencialmente na memorização e especialização absoluta, o Japão está formando pessoas extremamente técnicas, excelentes em alguma função, produtivos para o industrializado Japão, mas sem capital intelectual o bastante para julgar a natureza de suas ações fora do seu restrito plano técnico. Acontece que no livro ele mirou a justificativa apenas para a meia dúzia de membros que partiram para a luta armada sem questionar a validade dos argumentos proferidos por Asahara. A Aum era formada por outros milhares de membros que não mataram, nem matariam, sequer uma barata. (isso é um fato, as sedes da Aum eram infestadas por baratas, já que os membros não matavam animais).

No livro Underground do Haruki Murakami o sistema educacional japonês não é demonstrado como algo que idiotiza os membros da Aum e os levam ao barbarismo, ao contrário, eles perceberam a fragilidade dele, e contra ele se rebelaram, usando-o como mais um argumento contra a falta de valores da vida social japonesa da época. No trecho a seguir, você perceberá que não se trata de um mero imbecil incapaz de desenvolver um raciocínio por si só:

"Para mim, estudar significa ganhar sabedoria, mas o trabalho escolar era apenas práticas de memorização, coisas como quantas ovelhas existem na Austrália ou algo assim. Você pode estudar aquilo pelo tempo que quiser, mas não há meios disso fazer de você um sábio. Houve um grande gap entre a imagem que eu tinha daquilo que um adulto deve ser e os adultos reais em torno de mim. Você envelhece, ganha conhecimento e experiência, mas por dentro você não cresceu nem um pouco como pessoa. Tire a aparência exterior e o conhecimento superficial, e o que resta não é mais do que uma criança. (...) Desde que eu tinha 12 anos, eu sempre abordei as coisas de uma maneira filosófica. Uma vez que eu começasse a pensar em algo, eu me fixava nisso por umas seis horas. Para mim, estudar algo é precisamente isso. A escola era apenas uma corrida para ganhar mais pontos." (Hiroyuki Kano, membo da Aum que não se desligou da seita, mas já não vive mais em comunidade com eles)


“Nós recuperamos os sentidos. Agora nós finalmente voltamos ao normal.” (Hideki Sono, sobre o estouro da bolha - será?)

Se um dos objetivos da Aum com o ataque foi violentar o país para forçá-lo a auto-reflexão, isso de fato aconteceu. Não apenas com os intelectuais que estudaram o caso, mas as próprias vítimas, ao invés de apenas demonizar o culto, o fizeram não sem mirar seu dedo indicador para o espelho. Alguns depoimentos a seguir mostram uma mistura de insensibilidade com solidariedade misturados no mesmo cenário confuso. E que você absorva essas opiniões com moderação, pois são memórias de vítimas que viveram uma faceta do caso. Memória não é registro, é mito. Uma das vítimas, por exemplo, alega que as pessoas o ignoravam enquanto ele passava mal, mas como poderiam adivinhar que o metrô havia sido envenenado? Não seria mais óbvio e natural deduzir que ele era apenas um bêbado que passara da conta, cambaleante pelas ruas? Também há casos de pessoas que nem estavam no metrô, perceberam a situação e entraram nas estações para ajudar os demais, intoxicando-se pela solidariedade. Outros passaram horas parando carros pedindo carona para o hospital, já que as ambulâncias não chegavam, e todos os motoristas desviaram seu destino para ajudar as vítimas.

“Aquela metade da rua estava absolutamente infernal. Mas no outro lado, pessoas estavam caminhando para o trabalho como sempre.  Eu estava atendendo alguém e olhei para ver o olhar dos transeuntes em minha direção com uma expressão de “O que aconteceu aqui?”, mas ninguém veio. É como se nós fossemos um mundo à parte. Ninguém parou.” (Kiyoka Izumi - RP que trabalhou para a Japan Railways)
 “Alguns guardas estavam de pé diante dos nossos olhos no portão do Ministério [do Comércio e da Indústria]. Aqui nós tínhamos três pessoas deitadas no chão, esperando desesperadamente por um ambulância que não chegou por um longo, longo tempo. Ainda assim, ninguém no Ministério pediu ajuda. Eles nem sequer chamaram um táxi.” (Kiyoka Izumi)
“Essa enfermeira saiu correndo para fora. E mesmo quando nós lhe dissemos “Eles foram vítimas de gás na estação Kasumigaseki”, ela apenas disse algo sobre a falta de médicos disponíveis. Abandonou-nos lá na calçada. Como ela pôde fazer isso, eu nunca saberei.” (Minoru Miyata) 
“Foi só muito mais tarde que eu comecei a me perguntar como eu poderia ter sido tão insensível. Eu deveria ter ficado furioso, pronto para explodir (ao saber do atentado do qual foi vítima). Por exemplo, se alguém tivesse caído bem a minha frente, eu gosto de pensar que teria ajudado. Mas, e se eles caíssem a 50 metros? Será que eu sairia do meu caminho para ajudar? Eu me pergunto. Eu poderia tê-lo visto como problema de outro e seguir em frente. Se eu me envolvesse, eu me atrasaria para o trabalho...”  (Mitsuo Arima, 41) 
"As pessoas foram muito legais. Recebi cartas de pessoas que mal sabiam articular uma frase em inglês, mas eu entendi o que eles estavam dizendo e isso foi muito adorável por parte deles. (...) O ataque com gás não mudou minha opinião sobre o Japão, não há país no mundo tão seguro quanto o Japão." (Michael Kennedy, 63)




É importante trazer ao assunto o papel da mídia no caso Aum, já que ela fez o papel de principal formador de opinião do povo japonês sobre o assunto. No caso Matsumoto, por exemplo, a mídia nipônica pegou uma suspeita da polícia e taxou Yoshiyuki Kouno como criminoso, que passou a receber ameaças de morte graças à sua sina midiática. O mais triste é que a mulher dele estava internada no hospital em estado vegetativo, enquanto ele era acusado de algo que não tinha feito. Apenas com as investigações pós-metrô ficou provado que Kouno era inocente, e as desculpas posteriores não eram o bastante para limpar a sujeirada feita.

"Eu li o que disseram sobre mim nos jornais, mas eles nunca escreveram o que realmente importa. Por alguma razão eu apareci na TV. Eu não quero mais estar na TV, nunca mais. Eles não dizem a verdade. Eu esperava por uma pequena verdade, mas as emissoras tem suas próprias agendas sobre o que transmitir. Eles nunca mostrar o que eu realmente quis dizer. Por exemplo, quando o advogado Sakamoto desapareceu, se a polícia de Kanagawa tivesse sido autorizada a investigar a fundo como deveriam, o ataque com gás nunca teria acontecido. Eles cortaram tudo isso. Quando eu perguntei a razão, eles disseram que estariam sob pressão dos anunciantes se eles transmitissem isso. E o mesmo vale para os jornais e revistas." Yoshiko Wada (esposa de Eiji Wada, vítima fatal)

A mídia é inclusive condenada por algumas pessoas que foram vítimas do ataque, mas a condenam mais pelo sensacionalismo do que tem raiva dos terroristas que poderiam tê-los matado. Tudo o que foi dito pela mídia, sobre choques elétricos ou lavagem cerebral, é verdade, realmente aconteceu, mas não significa que era um padrão. É verdade que algumas pessoas realmente não podiam contestas as palavras da Asahara, mas outras tantas não apenas o faziam como conseguiam fazê-lo mudar de ideia, sem sofrer pressões ou retaliações por isso. As entrevistas com ex-membros mostram como o tratamento oscilava de pessoa para pessoa. Alguns dão depoimentos sobre cárcere privado por contestar práticas da Aum, outros já falam de um Asahara bem mais compreensivo. Muito do que sabemos sobre a Aum veio dos tribunais, e não é possível saber até que ponto os membros atacaram o líder para pegar penas mais brandas, já que os julgamentos foram um show de mentiras e inconsistências:

"Se você acreditar nas reportagens da mídia,  todos estavam sob estrito controle, como se eles estivessem vivendo na Coréia do Norte, mas na realidade as pessoas eram livres para fazer o que quizessem. E, claro, nós eramos livres para ir e vir. Nós não tinhamos os próprios carros, mas poderíamos alugar um sempre que quizéssemos." (Hiroyuki Kano)

Haruki Murakami

"Para eles [Mídia], o princípio moral, como participação no ataque com gás, era muito claro: 'bom' versus 'mal', 'sanidade' versus 'loucura', 'saúde' versus 'doença'. Foi um óbvio exercício de opostos. (...) A esmagadora maioria de japoneses foi classificada como 'direita', 'sã' e 'saudável'. Algo me diz que as coisas só vão piorar se não lavarmos isso de nosso metabolismo. É muito fácil dizer 'Aum é o mal'. Não estaria a verdadeira chave (ou parte dela) para o mistério a respeito do golpe sobre o Japão cometido por 'Eles' mais provavelmente escondida sobre o 'Nosso' território? 'Eles' [Aum] são o espelho de 'Nós' [japoneses]. Não chegaremos a lugar algum enquanto os japoneses continuarem a olhar o fenômeno Aum como algo completamente distante, uma presença alienígena vista por binóculos na costa distante." (Haruki Murakami)


O frenesi midiático foi tamanho, e a juventude japonesa estava tão inconsolavelmente confusa, que Etienne Barral cita o inacreditável fenômeno Aumer, jovens que se tornaram fanáticos pela Aum após o atentado. Eles passaram a colecionar artigos da seita (Aum goods) como camisetas e panfletos, ou mesmo as máscaras de carnaval usadas nas eleições legislativas de 1990, algo realmente raro e 'valioso'. No Comiket daquele ano rolou até fanzine yaoi tendo como temática os principais membros da Aum!!!

Joyu Fumihiro, porta-voz do grupo, preso dias depois por cumplicidade, foi defendido por uma legião de meninas que o achavam "kawaii desu neee" e lhe direcionavam mensagens como "não se deixe intimidar!". Repito, FIZERAM YAOI DO CARA! Barral, em cima desse comportamento, brilhantemente conclui:

“Qual é, pois, essa época onde o Belo ganha do Justo? Afinal, não é o reflexo dos valores exacerbados pela sociedade de consumo e pelas mídias? Quando a sociedade civil se insurge contra [essas garotas Aumers], não tem afinal aquilo que merece?”

Fumihiro Joyu - o cara nem é bonito, pô
Shoko Asahara teve sua apelação contra a pena de morte rejeitada pela Suprema Corte do Japão em 2006, após receber sua condenação em 2004. Nos últimos 15 anos (até o início de 2012), os tribunais japoneses condenaram 189 membros da Aum, emitiram cinco penas de prisão perpétua e confirmaram 13 penas de morte. Segundo o G1 "por enquanto, nenhuma das execuções foi realizada porque a lei japonesa estabelece que todas as sentenças dos cúmplices do delito devem ser confirmadas antes de poder se aplicar a pena capital."... Asahara, hoje de cabelos curtos, passa o tempo que lhe resta de vida cozinhando na cadeia.

Com o ataque, milhares de pessoas deixaram a seita, mas 1186 (mais, segundo a polícia) seguem filiados à Aum, agora rebatizada como Aleph, a primeira letra do alfabeto hebraico, pois mantém a devoção aos ensinamentos de Asahara. E isso é algo importante de ser lembrado. Apesar da picaretice religiosa, os membros se sentiam, em geral, bem dentro da Aum. A maioria não compreende como algo que lhe fez tão bem pôde ter sido capaz de algo como os ataques com sarin.

Na verdade a seita se desmembrou em duas vertentes, Aleph e Hikari no Wa (círculo do arco-íris de luz) com 32 sedes espalhadas pelo Japão. Renegados num subúrbio de Tóquio, a liderança faz questão de informar que a Aleph é hoje um culto inofensivo, mas as autoridades japonesas os mantém sob forte vigilância de 50 oficiais. Se alguns não saem dos domínios da seita por convicção religiosa ou por continuar renegando a sociedade civil, outras não o fazem por impossibilidade de voltar a ela, já que carregam a estigma da Aum Shinrikyo e são socialmente boicotados por isso. Você pode ler mais sobre isso aqui. (inglês)




É pouco surpreendente, mas desde então outras 10 mil seitas religiosas surgiram no Japão, o que segundo as palavras de Nobutaka Inoue, pesquisador de estudos religiosos da Universidade de Kokugakuin, significa que as pessoas ainda estão procurando assisistência para sua saúde mental em tempos de constantes más notícias (só no ano passado, os desastres naturais e nucleares de Fukushima e a perda do posto de segunda economia do mundo para a China).

Percebi que o tema é quase desconhecido do público brasileiro e achei essencial não deixá-lo cair no esquecimento, tanto para que algo semelhante nunca mais aconteça, em lugar algum, como para não deixar as questões por eles levantadas voltem para baixo dos tapetes. O Brasil de hoje é muito semelhante com o Japão dos anos 60. Teremos pela frente dois eventos mundiais para mostrar ao mundo que o Brasil está chegando lá (como o Japão teve as Olimpíadas de Tóquio em 64 e a Expo de 70 em Osaka). O Japão conseguiu chegar num estágio de desenvolvimento mesmo inimaginável para o Brasil nos próximos 50 anos, e por isso pagou um preço muito caro. E é nesse lugar, que o Japão ocupou tão perfeitamente, que nós estamos lutando para chegar... É preciso ter o exemplo japonês em mente para não cair na besteira de cometer erros semelhantes, aproveitando que os asiáticos constantemente se colocam no papel de laboratórios para a humanidade.

Para o Japão, o atentando no metrô de Tóquio foi uma advertência e o fato pontual da virada histórica do país, o início de uma nova era, menos brilhante e pomposa. 1995 foi também o ano do terremoto de Kobe e do lançamento de Neon Genesis Evangelion, que não teve o apelo popular que conquistou com seu teor pessimista apenas por acaso. 



O já citado livro do Etienne Barral trata do assunto no capítulo chamado Otakaumismo, onde ele traça relações entre o atentado e a cultura otaku. Sabia que a Aum produziu animes e mangás de Asahara para  conquistar esse público? Não vou esmiuçar esse assunto aqui, apesar de mais pertinente do que qualquer outro para esse blog, como incentivo para que você compre ou alugue o livro.  Mas vou oferecer um aperitivo:

“A seita Aum é o reflexo da sociedade japonesa, na forma como sistematicamente preenche as faltas desses jovens, os quais, de maneira mais ou menos consciente, constatam as contradições do Japão dos anos 90. Nesse sentido, não é surpreendente que os otaku, eles também testemunhas e críticos da mediocridade existente, tenham se sentido à vontade junto com Asahara. Ainda mais que, expressamente ou não, o guru instilava fortes doses de cultura otaku em seus discursos”
“Como esperar diante de tal comportamento [negação dos crimes de guerra] que os jovens tenham fé em valores que os mais velhos transmitem? Como eles podem imaginar substituir e aprimorar a direção desse colosso com pés de barro? Em vez de seguir as massas embrutecidas pelas mídias e cegas pelas miragens da sociedade de consumo, os otaku mostram com desdém que o rei está nu, enquanto os adeptos da seita Aum tentam, desastrosamente, desestabilizar o sistema.”



Ele ainda conclui: Se essa é uma boa análise, aprisionar todos os adeptos da Aum e prender Asahara não resolverá o mal-estar que corrói a sociedade japonesa. Por enquanto, a sociedade civil tenta convencer-se de que a seita é uma verruga a ser cauterizada, que o mal desaparecerá por si, posto que é obra de um megalomaníaco paranoico, porém pode acontecer que a verruga se revele um câncer de pele estimulado pela grossa camada de maquiagem que cobriu a sociedade civil para mascaras 50 anos de sujeira.

A minha conclusão caminhará no sentido de mostrar que isso está acontecendo em proporções globais, não se restringindo à 'uniqueness' japonesa. A escritora alemã Juli Zeh em seu excelente A menina sem qualidades (em clara referência ao Homem sem qualidades de Musil) - que ainda estou lendo - fala da deriva moral presente também na Europa ocidental, onde os jovens que 'pensam saber tudo e professam não crer em nada' se proclamam filhos do niilismo, pertencentes a uma geração sem identidade e qualidades. No livro que também envolve crime e questionamentos morais, o juiz responsável pelo caso conclui a introdução dizendo algo que se encaixa perfeitamente no caso da Aum Shinrikyo: 

"Se isso tudo for apenas um jogo, nós estamos perdidos. Se não - mais do que nunca."

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FONTES:
Underground - The Tokyo Gas Attack and the Japanese Psyche (Haruki Murakami)
The Place That Was Promised (Haruki Murakami)
Otaku - Os filhos do virtual (Étienne Barral)
Armageddon in a Tokyo Subway - capítulo do "Terror in the mind of God: the global rise of religious violence" (Mark Juergensmeyer)
Aum Shinrikyo - Japan's Unholy Sect (Rei Kimura)
Hora Zero - Terror em Tóquio (Discovery Civilization)
A (Tatsuya Mori)
The "De-nationalization" of AUM Followers: Its Hidden Political Purpose (Masaaki Fukuda)
http://www.jref.com/japan/society/aum_shinrikyo.shtml
http://cns.miis.edu/reports/pdfs/aum_chrn.pdf
Asahara Shoko e Kitano Takeshi em algum programa da tv japonesa que não sei o nome

O fenômeno moe

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Sakura Kinomoto, o exemplo maior da estética moe

O conceito japonês moe é impossível de ser sintetizado em um parágrafo fechado e definitivo, pois sua definição, características e mesmo a origem do termo geram controvérsias. O moe (derivado de Moeru - pronúncia Moeei) trata de garotinhas jovens, vulneráveis e inocentes, provavelmente com um verniz de fetichização sexual, dentro da cultura pop japonesa.

A explicação mais aceita para o termo vem do kanji possuidor de significado semelhante ao nosso "germinar" ou "brotar". Há outras versões para a origem do termo, como os que defendem que ele vem de Hotaru Tomoe (Sailor Saturn) ou os que defendem que vem de Moe Sagisawa, jovem atriz da série Kyouryuu Wakusei (Dinosaur Planet), mas a versão mais aceita certamente é a primeira, que diz respeito a personagens pueris, que se apresentam assim pela personalidade, pela fala, ou através de ambos os fatores.

Sailor Saturno


 O fenômeno começou a ser discutido nesse board japonês como uma subcultura mas nos anos 2000 encontrou eco na cultura de massa, e hoje é tão presente que já há quem aponte o fenômeno como um dos responsáveis pela crise criativa no setor de animes e mangás.

A forma mais fácil de explicar o moe é apresentar a definição do senso comum para, a partir dela, mostrar diferentes pontos de vista e suas múltiplas faces. Como dito anteriormente, o moe é uma palavra que retrata menininhas inocentes e vulneráveis. Exato, a vulnerabilidade é fator chave para uma personagem ser moe, pois uma das mais fortes características do fenômeno é  ela ser capaz de despertar no leitor/espectador uma vontade intensa de abraçá-la, protegê-la e criá-la como uma irmãzinha mais nova. Há quem defenda que personagens kawaii, porém muito maduras e/ou independentes, não podem ser consideradas moe, o que torna a tarefa de rotulação quase impossível. Shinobu-Chan de Love Hina, por exemplo, tem todas  as características para se enquadrar no moe, mas mora sozinha numa pensão o que faz dela uma personagem independente. E aí, é ou não é moe? Alguns exemplos, no entanto, são bastante claros e ajudam, a partir da comparação, no processo de compreensão do termo. Nas séries mais conhecidas pelos brasileiros temos Sakura Kinomoto (Sakura Card Captors), Tsubame (Rurouni Kenshin) e Saya (Peacemaker Kurogane).

Shinobu Maehara é ou não moe? Depende do critério...

O moe cresceu assustadoramente na primeira década do atual século e já há quem diga que está morrendo, como Ken Akamatsu (criador de Love Hina e Negima). Outros afirmam que o moe está muito longe de morrer, apenas está passando por um processo de mudanças em suas características básicas. Séries recentes como Angel Beats!, Sora no Woto e o sucesso K-on! estão atraindo o público masculino com personagens infantilescas sem apelar para a exposição erotizada de suas personagens. Os estúdios, inclusive, estariam proibindo o uso do ecchi (fan service) na divulgação dessas séries. Para quem não sabe, fan service são elementos desnecessários ao andamento da série que são inseridos para atrair maior audiência, quase sempre de cunho erótico, como close em calcinhas para agradar ao vulcão hormonal dos jovens.

Essa discussão nos faz pensar no que realmente é, conceitualmente, o moe: atração sexual ou anseio de proteção? Podemos levar a questão ainda mais adiante, nos questionando se moe é um gênero ou um sentimento? Uma pessoa pode ler/assistir Sakura Card Captors sem despertar por Sakura, Tomoyo ou Rika os sentimentos moe, pode apenas gostar de aventura, do exuberante traço do estúdio CLAMP, do romance, dos tabus que a série aborda ou outros fatores diferentes do sentimento de proteção ou desejabilidade sexual. Definir uma série como moe  muitas vezes é complicado, pois ele se mostra mais como um sentimento pessoal do que um rótulo para toda e qualquer menininha que se encaixe em características pré-estabelecidas. Por exemplo, as pessoas defensoras da idéia do moe como um sentimento desvinculado diretamente do desejo sexual afirmam que uma pessoa pode ter sentimento moe até por personagens não-humanos, caso de algum Pokémon como Togepi.

Moe não-humano? sei não... 

Pontos de vista a parte, o fato é que a forma como o moe vem se expressando está sendo alterada. As histórias estão sendo criadas menos com o senso possessivo dos últimos anos e regressando aos passos iniciais, com um moe menos incisivo, mais encorajador e íntimo. Bom sinal? Nem tanto. Os produtores tem plena consciência que mesmo amenizando o ecchi como no caso de K-on!, o mercado japonês de doujinshis fará seu papel e venderá nos Comiket da vida uma infinidade de versões não-oficiais e erotizadas das personagens para a apreciação do público (e perpetuação da série). Apenas eliminam com isso a pressão da sociedade por fomentarem cenas que alimentam o imaginário dos lolicons, estes, legalizados no Japão. Lavam suas mãos e colocam a culpa de erotização das pobres personagens nos otaku, "esses jovens depravados e sem rumo", fazendo com que todos esqueçam que foram eles, os produtores, que sempre venderam uniformes de ginasiais e orelhinhas de gato como itens de idolatria sensual para esses adolescentes.

Estou falando de forma tão natural sobre o assunto que parece algo corriqueiro ter atração sexual ou sentimento de guarda por menininhas bidimensionais. Quais foram os tortuosos caminhos que levaram parte da atual juventude japonesa a buscar refúgio afetivo nesses pequenos amontoados de pixels ou nanquim?

Esses são os otaku...isso é um problema sociológico do Japão...você é, no máximo, um fã de cultura pop que, como eu, emprega erroneamente o termo. 

Recorri ao trabalho acadêmico Exploring Virtual Potential in Post-Millenial Japan de Patrick Galbraith para conhecer a opinião de especialistas japoneses sobre o fenômeno. O trabalho é extenso e trago como amostra apenas a visão do filósofo Honda Touru, que está de acordo com o conteúdo já publicado nesse blog, acrescentando alguns toques pessoais para melhor contextualização.

De acordo com Honda, moe é um amor imaginário. A satisfação afetiva no atual Japão só pode ser encontrada pela maioria das pessoas no campo imaginário, pois o amor que está em voga no Japão hoje é um resultado da interação entre a cultura milenar japonesa e a monetarização do amor pelo capitalismo e pela mídia, o que torna o modo amoroso praticado hoje no Japão como algo acessível apenas para uma minoria com alta renda e aspectos físicos convencionados lá como belos. Lembremos, o amor romântico simplesmente não existia no Japão até o século XIX, ele foi totalmente importado do ocidente (o que existiam eram os casamentos de conveniência - omiai - ou os homems que entravam pela janela da garota/mulher). O amor típico japonês é o do respeito mútuo, não das emoções afloradas.

Portanto, o amor romântico aos moldes ocidentais foi vendido ao Japão da forma mais literal possível,  pela propaganda. Sempre que ele é mencionado nesses moldes, está atrelado a uma mensagem de consumo, onde o Valentine's Day é o exemplo mais claro. O dia dos namorados japonês, importado dos EUA, é celebrado no dia 14 de fevereiro, onde apenas a menina presenteia o menino e apenas com chocolates, situação que é retribuida no dia 14 do mês seguinte com o White Day, onde o homem presenteia a mulher com chocolates e outras coisas como lingeries. Claro que esse dia não simboliza nada e apenas foi implementado como uma ação de marketing das empresas de chocolate do arquipélago.

Exemplo de honmei choco, usado para declarar seu amor. Enquanto alguns voltam para casa com caminhões de chocolate, a maioria dos infelizes voltam de mãos vazias... 

...por isso Keitaro de Love Hina fraudava seu próprio chocolate todo ano para não ser considerado um fracassado 

Vejam a situação. O amor moderno japonês é alimentado por uma rede midiática e marqueteira que incentiva o abraço ao romantismo ocidental para alavancar o consumo, mas ao mesmo tempo, a sociedade japonesa nega veementemente a possibilidade de casamentos não convenientes, isto é, com pessoas sem um bom salário e um bom diploma e as vezes, sem apelo estético tolerável. No ocidente é mais aceitável ver alguém do alto se submeter a alguém sem origem (ou muito feio) por alguma afinidade subjetiva. No Japão não, pelo menos não como aqui.

Nas décadas de 70 e 80, no auge da prosperidade material e da apologia ao consumo, criou-se um entrelaçamento estreito entre amor romântico e dinheiro, desenvolvendo aquilo que os japoneses chamam de "love market", processo que vem alienando os japoneses do romance. Na intenção de fugir da capitalização do sentimento romântico e dar espaço ao amor "puro e verdadeiro" (ocidental por excelência), muitos jovens estão buscando refúgio no mundo bidimensional, que separou o desejo da realidade. A relação dos japoneses como personagens bidimensionais, bonecas ou coisas do gênero, nasce, dentre outros diversos fatores, de uma tentativa de encontrar um suposto amor verdadeiro num país de amor capitalista, onde o sentimento está abaixo da posição social, da conta bancária ou da beleza superficial. A situação é irônica, pois o refúgio deles é um universo extremamente lucrativo para empresas que buscam fugir da crise econômica vendendo artigos fetichistas para essa legião otaku, claro, por preços abusivos (notaram o travesseiro de abraçar tamanho real de personagens na foto dos otaku?).


Rei Ayanami - japoneses estão preferindo viver com bonecas vazias que sempre lhes sorriem a viver com pessoas reais com todas as suas idiossincrasias?
 
Os moe men, como são chamados pelos americanos, com tais atitudes, visam sobrepujar não apenas uma lógica de consumo que lhes desagradamcomo o próprio estereótipo da masculinidade japonesa. Esses homens buscam um equilíbrio entre a potência masculina e o desabrochar de emoções femininas, abrindo mão da performance convencionada da masculinidade. Essa atitude abarca não apenas o moe man, mas todos os homens herbívoros.

Androginia ainda mais em alta no Japão 

A relação com representações materiais ou imaginárias está substituindo a relação interpessoal. A recessão da economia piorou ainda mais a estratificação do romance e alienou mais o jovem japonês do trabalho, dos estudos e da família, situação que facilita o fato dos japoneses não estarem mais dispostos a pagar o preço de uma relação real, em nome de uma relação unilateral e imaginária, supostamente mais verdadeira e pura, e convenientemente menos trabalhosa. Esses caras simplesmente não querem mais o terror de se responsabilizar por qualquer coisa que seja. Se recusam a trabalhar em grandes empresas para evitar o stress e se contentam com bicos que são bem remunerados no Japão (enquanto a economia do país sofre com o ciclo vicioso no qual está encalhado faz duas décadas), se recusam a ir atrás de mulher porque é trabalhoso demais e a situação demanda convenções sociais que ele não quer partilhar com ninguém. A situação chegou a um ponto onde mesmo o sexo pago com uma pessoa real é evitado. Há japoneses que vão em bordéis de bonecas e pagam por uma noite, pois o mero contato carnal com uma pessoa real já seria intolerável, apesar de continuarem sexuados e heterossexuais. Como assim sentir o acanhamento dos primeiros momentos? Ser julgado por desempenho? Jamais.

Muito mais comuns são os eroges, jogos eletrônicos de simulação de encontros. Você mantém relações sociais com uma ou mais personagens a partir de escolhas dentro de opções pré-determinadas pelo jogo (por exemplo: A) Abraçá-la a força B) Pedir para abraçá-la C) Ir embora friamente). A variação de combinações é tamanha, que com o mesmo jogo é possível chegar a mais de uma centena de finais diferentes. A situação é desconfortável. O jogador é o único a tomar decisões, ele escolhe o destino de todos os atos do casal (as personagens reagem, mas um bom jogador sabe exatamente, pela experiência, conseguir o que quer) o que evidencia uma relação de amor unilateral. Ao mesmo tempo o jogador julga manter com sua personagem uma relação de amor puro e verdadeiro (enquanto faz de tudo para levar a personagem para a cama virtualmente). Há altas doses de pureza e perversão nessa situação.

Princess Maker, clássico da Gainax

Moe, portanto, é um resultado do estágio avançado do capitalismo japonês, onde os jovens se desconectam da realidade e encontram novos caminhos de construção e expressão da relação amorosa. Uma resultante da maturidade da sociedade japonesa, talvez madura até demais que já começa a cheirar mal e apresenta pontos de bolor.

A indústria japonesa, entretanto, abraça coisas como o moe com fervor. A crise econômica e a competição de novos meios (como a internet, os video-games etc) fez com que os produtores de mangás e animes entrassem em crise. A Shonen Jump, revista semanal de mangás, nos anos 80 chegou a ter tiragem média de 6,5 milhões de edições (situação que a coroou como a revista de maior tiragem no mundo, acima até da Times internacional)  e hoje não chega nem aos 3 milhões de edições. (a Veja, de maior tiragem no Brasil, chega a 1,2 milhões). O mercado como um todo está encolhendo e se tornando menos lucrativo (também pela pirataria, no caso dos animes). O setor está em crise. Como segurar a rentabilidade? Oferecendo séries e artefatos fetichizados para aqueles que gastarão o que for necessário para satisfazer seus vícios com seu alto poder de compra, os otaku. As séries, que antes tinham personagens moe apenas para alavancar mais o sucesso agora estão sendo criadas como objetos de exposição moe, onde a parte justifica o todo. Nenhuma história sustentando, apenas menininhas graciosas exibindo sua graciosidade em enredos insossos. O cenário está se mediocratizando e aquilo que falei acima sobre 'sentimento X gênero' se torna mais turvo a cada dia. O cenário está Superflat...e o moe é um dos alvos favoritos criticados desse movimento artistico. E um dos seus braços mais lucrativos. Qualquer dia falarei mais sobre o movimento...

15 minutes from Shiki Station do artista Mr. - Como sua própria página no movimento Superflat questiona: Crítica cultural ou exploração comercial de sua própria fascinação? Sua força está na fusão dos dois fatores. 

Rock progressivo japonês

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Kitagawa Utamaro (1880) (imagem: http://www.newworldencyclopedia.org/entry/Shamisen)

A música talvez seja um dos principais exemplos para a compreensão da já citada tradição do japonês de ser muito aberto às influências estrangeiras, sempre regurgitando posteriormente algo reconhecivelmente nipônico. Não tenho pretensões de me alongar na música tradicional e folclórica do Japão, muito influenciada pela tradição cultural chinesa. Meu objetivo é falar sobre um momento específico da música japonesa, o rock progressivo.

O problema já começa com a definição do que é o rock progressivo. Movimento musical surgido no fim dos anos 60 na Inglaterra, o progressivo foi um rótulo adotado para classificar as bandas de rock influenciadas pela música erudita e vanguardista. A definição é insuficiente, pois bandas sem veia erudita como o Rush frequentemente são classificadas como contribuidoras do progressivo, enquanto outras que tem influências vanguardistas, caso do Pink Floyd com a musique concrète francesa, não raro são excluídas do bolo.

In the Court of the Crimson King, o suposto album inaugural da música progressiva (imagem: http://becausemusicismylife.blogspot.com/2009/06/king-crimson-in-court-of-crimson-king.html)

O King Crimson é o dono do convencionado album pioneiro, o primeiro que pode ser afirmado por todos como legítimo rock progressivo por possuir todos os elementos que posteriormente classificariam o estilo. Obviamente ele não nasceu do nada, apenas foi a continuação do cenário musical, sobretudo o britânico, dos anos 60, onde é válido citar a psicodelia dos Beatles e o experimentalismo de Frank Zappa. Os precursores do estilo no entanto foram Moody Blues, Procol Harum, The Nice e Soft Machine (alguns incluem também o debut do Floyd). Na sequência vieram as tradicionais bandas britânicas que, juntas com o King Crimson, se tornariam símbolos da música  progressiva setentista: Genesis, Yes, ELP, Van der Graaf Generator entre outras.

No processo de rotulação, então, são levados em questão alguns quesitos geralmente presentes como composições geralmente longas e complexas, discos conceituais, virtuosismo entre outros. Claro, lembrando que não possuir alguma ou muitas dessas características não exclui, e possuir várias delas também não necessariamente inclui no hall. Gentle Giant é progressivo e não faz músicas longas, Dream Theather tem tudo isso e a maioria não considera como progressivo. Na verdade os críticos e as pessoas em geral foram convencionando bandas dentro de um rótulo que hoje é usado para encontrar bom material, logo, não há consenso. Muitos afirmam que progressivo não é um movimento, apenas uma forma de se fazer música.

Peter Gabriel, vocalista do Genesis, um dos ícones do prog (imagem: http://www.robbierocks.ch)

As pessoas que estavam por trás do início do prog foram os jovens britânicos da classe média, que possuiam bagagem cultural e estudavam música de modo fervoroso, seja sozinhos, seja em locais apropriados, como Rick Wakeman, tecladista do Yes, que estudou na Royal College of Music. Apenas para traçar um pararelo com o outro lado da juventude inglesa, o progressivo foi veementemente atacado pelo movimento punk no fim dos anos 70, onde os jovens filhos do proletariado inglês se revoltaram com a masturbação musical da classe média.

O Reino Unido não foi apenas epicentro como o maior pólo criativo do estilo. É fato que o prog se espraiou pela Europa principalmente, mas em geral os demais inovavam em cima do que os ingleses inventaram. A escola que ganhou notoriedade fora da Inglaterra foi a italiana. Como afirma Fernando Bueno em matéria do Consultoriadorock, o rock, até então fraco no país, foi aderido nos anos 70 como símbolo de protesto num período de efervescência política e social e encontrou terreno fértil na bota de histórica tradição musical. O rock se fundiu com elementos da música italiana folclórica, barroca e da ópera. Ainda na Europa, Alemanha e França possuem boa tradição também. Fora desse centro, ótimas bandas surgiram em países de menor tradição como o  holandês Focus e os americanos Dixie Dregs e Kansas. Além disso, muita coisa boa foi criada nos balcãs, na Argentina e...no Japão.

Disco do Premiata Forneria Marconi, a principal banda progressiva italiana (imagem: http://www.progarchives.com/album.asp?id=1985)

Os primeiros sinais do rock progressivo no Japão surgiram ainda nos anos 70 quando a tecnologia dos sintetizadores passou a ser produzida por empresas japonesas, caso da Yamaha. Nesse período surgiram os famosos tecladistas japoneses influenciados pelo Krautrock alemão, como Ryuichi Sakamoto (Yellow Magic Orchestra) e Kitaro (Far East Family Band). Paralelamente, o mercado japonês de colecionadores de vinil nos anos 70 gastava fortunas importando discos raros de bandas desconhecidas dentro do progressivo. Produtores japoneses viajavam o mundo atrás de bons músicos para negociar os direitos de reprodução no Japão. Após um tempo o ciclo se inverteu, e o mundo passou a correr atrás das edições japonesas, raras e conhecidas pela qualidade incomparável do vinil utilizado na fabricação dos discos.

O cenário fez com que o progressivo amadurecesse no Japão nos anos 80, curiosamente na época onde ele já estava em queda livre, talvez já desmaiado, nos países de origem. A casa-símbolo em Tóquio que dava espaço às bandas do gênero era a The Silver Elephant. As duas principais escolas que influenciaram o progressivo nipônico, e justamente por isso as enfatizei, foram a britânica e a italiana. As razões que justificam a primeira são intuitivas e não exigem maiores explicações, enquanto no caso da italiana, é o lirismo que encantou os japoneses.


Ryuichi Sakamoto, talvez o mais conhecido musico japonês no ocidente (imagem: http://www.philebrity.com)

Para confirmar o dito acima, citarei alguns exemplos onde os japoneses absorveram essas influências. O Mugen é o mais claro que eu conheço pois mistura ambas as referências, com o lirismo das bandas sinfônicas italianas e notável semelhança com o Genesis. Há casos onde a influência vira emulação, onde posso citar o Bi-Kyo-Ran, claramente influenciado pela guitarra de Robert Fripp do King Crimson (principalmente no disco Red), casando essa sonoridade britânica com a música folclórica japonesa. Não entenda, entretando, emulação como mera imitação, pois o som deles tem personalidade.

Outras bandas importantes foram: Ain Soph (inspirados em Camel), Shingetsu (inspirados no prog sinfônico italiano e Genesis), Gerard, Negasphere, Aquapolis, Far East Family Band, Picaresque of Bremen (influência de Jethro Tull), Ars Nova (influenciado por ELP, PFM e Wakeman), Bellaphon (Camel), Mr. Sirius (Canterbury japonês) e Fromage.

As barreiras para que mesmo os fãs do gênero tenham receios com o prog japonês são o idioma e a suposta falta de criatividade. O idioma é uma barreira compreensível, tem muita gente que não consegue ouvir algum derivado do rock que não seja em inglês ou em sua lingua materna, perdendo a oportunidade de apreciar a qualidade das bandas que fogem dos medalhões ingleses. Entendo a negação de um ou outro idioma por soar feio aos ouvidos, mas negar tudo o que não é inglês é impor cabrestos aos sistema auditivo. Felizmente não tive esse poblema com o rock japonês, até porque estou acostumado com a sonoridade via animes e filmes, além de gostar bastante do idioma. Sobre a falta de criatividade, os japoneses de fato não estão entre os mais inovadores, mas fazem um "mais do mesmo" espetacular. São muito competentes como músicos (só assim para aparecer em um mercado exigente como o deles) e não deixam de imprimir sua personalidade na música mesmo quando abertamente emulam alguma banda européia.

Bi Kyo Ran (1982) (imagem: http://www.progmaniac.com)

Para os interessados na iniciação, recomendo fortemente o disco do Bi Kyo Ran de 1982 (mesmo nome da banda). Aqui e aqui você encontra no Youtube as duas partes da Warning, minha favorita, onde se percebe com clareza a presença do estilo de Fripp. Já aqui está o link para a lindíssima instrumental chamada Cynthia. Adquira o disco, pois ele merece ser ouvido em boa qualidade.

Na contrução do texto extrai informações do artigo "A invasão japonesa", publicado na primeira edição do fanzine metamúsica; dos sites progarchives, proggnosis, Whiplash!, forummusica e Sinfonia Sideral.

Yukio Mishima e a crise de identidade japonesa no auge da prosperidade econômica

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"As mulheres: bolas de sabão; o dinheiro: bolas de sabão; o sucesso: bolas de sabão. Os reflexos sobre as bolas de sabão são o mundo em que vivemos." Yukio Mishima (Pavilhão Dourado)

O escritor e dramaturgo Yukio Mishima (Kimitake Hiraoka - 1925-1970) é decerto um dos personagens japoneses mais icônicos do século XX por escancarar de modo excêntrico as contradições de um país milenar que avançava na estrada do progresso sem vislumbrar, um pouco que seja, a vista pelo retrovisor, nem mesmo o velocímetro.

Mishima, educado como um samurai, viveu e morreu como um, tendo entrado na escola enquanto o Japão militarista 'entrava' na China. Sem a atenção do pai, que o queria formado em engenharia a despeito de seu talento pelas artes, e cuidando de uma avó doente e possessiva, Kimitake refugiava-se na literatura para aguentar a opressão do dia-a-dia, e justamente por isso criou seu nome artístico, na intenção de esconder do pai suas atividades. Influenciado por obras como o Hagakure do século XVII ("o ventre de onde nasceu minha escrita"), sua produção ganha destaque imediatamente após o cessar da segunda guerra mundial, onde descreve a situação política e social do país, ocupado pelas forças americanas, com esmero literário.

Yukio Mishima

Toda a sua obra é permeada por paradoxos. Beleza e morte, amor e rejeição, oriente e ocidente são alguns exemplos. Seu tema central era a dicotomia entre os valores tradicionais japoneses e a pobreza espiritual da vida contemporânea, que tornara o Japão moderno porém infértil. Homem híbrido, era o exemplo vivo do japonês no pós-guerra, que mesmo quando defende o retorno aos valores tradicionais, não o faz sem a onipresente influência ocidental. Mishima falava inglês fluentemente (até como forma de auxílio na tentativa de levar o prêmio Nobel), apreciava pensadores ocidentais como Oscar Wilde e mesmo seu estilo literário era temperado com pitadas de ocidente, caso de Mar Inquieto, onde muitos críticos vêem notória influência dos escritos gregos.

Criança anêmica, Mishima se sentia eternamente culpado por fingir uma tuberculose quando estava gripado, fato que fez o médico das forças armadas considerá-lo como inadequado ao exército, e que levou Yukio a se preparar para uma guerra que nunca veio, no papel de um legítimo samurai. Como homem, casou e virou pai de dois filhos para poder dar sequência à linhagem familiar apesar de homossexual. Como escritor, criticou o sedentarismo daqueles que viviam da pena, defendendo que palavras devem gerar ação. Como samurai, aperfeiçava corpo (mestre em kendô e karatê) e mente enquanto lutava para reunir seu povo e incitá-lo à rebelião contra o que estava sendo feito com o Japão.
"Japan will disappear, it will become inorganic, empty, neutral-tinted; it will grow wealthy and astute." Mishima
 Como afirma Jordi Mas, pesquisador de Ásia Oriental de Barcelona, ele "temia que o progresso econômico se conseguisse em detrimento da própria cultura", enquanto o japonês, recentemente humilhado na guerra, era amparado pelos americanos e se embriagava com trabalho e bem-estar material. Mishima reclama o direito do povo japonês desfrutar de soberania e justiça social, conservando as tradições, sem alienar a adaptação do país à técnica industrial.

Yukio Mishima

A cultura tradicional japonesa foi fortemente suprimida pela ocupação americana, que via nisso uma forma de jogar as últimas pás de terra nos valores nacionalistas e militar-expansionistas do Japão, assim como abrir espaço para valores pacifistas, liberais e progressistas (e ao American Way of Life, naturalmente). A censura americana, vinda da Seção de Informação e Educação Civil (ligada ao Comando Supremo de Forças Aliadas do general McArthur), reprimiu manifestações artísticas que remetiam ao passado feudal japonês, como o teatro Kabuki, além da proibição do ensino de artes marciais japonesas.

Enquanto muitos estavam ocupados demais assistindo aos filmes de Hollywood e desenhos de Hanna Barbera, alguns japoneses mostravam-se particularmente incomodados com a presença americana e sua censura. Entre os anos 50 e 70, houve um crescimento das manifestações culturais que remetiam ao nacionalismo de outrora. Nesse período se popularizaram os dramas de samurais produzidos pela Toei. Alguns exemplos de produção da época são o livro Requiem for Battleship Yamato de Mitsuru Yoshida e os filmes Os Sete Samurais de Akira Kurosawa e Japan's Longest Day de Kihachi Okamoto.

Kihachi Okamoto

Não foram apenas os artistas e intelectuais, mas o próprio governo japonês fez o possível para revitalizar a cultura tradicional do país, imprimindo a arquitetura nas obras públicas, investindo em preservação de pontos históricos, trazendo de novo à luz os teatros No e Kabuki, bem como a cultura samurai, até hoje presente nas escolas e universidades japonesas. Em 1966, publicou o Program of forming desirable image of Japanese, onde fixou características do "japonês ideal", bastante influenciado pelo Bushido, código de conduta dos samurais ("caminho do guerreiro"). Citarei o conteúdo do programa quando falar sobre o sistema educacional japonês.

Mishima, no entanto, foi mentor da mais simbólica tentativa de restituir aquele Japão que não existia mais. Em 25 de Novembro de 1970, acompanhado de 4 membros do Tatenokai (milícia de estudantes patrióticos que estudavam artes marciais sob a tutela de Mishima), todos vestidos com os uniformes do Exército Imperial, renderam o comandante Masuda do quartel general das forças de Auto-defesa de Tóquio (mataram oito soldados resistentes na invasão). Mishima, então, fez um discurso patriótico para cerca de dois mil soldados, convocando-os a lutar contra a constituição japonesa, escrita por americanos, e a favor da restituição do poder imperial. Diante da indiferença dos militares, Mishima cometeu o Seppuku (suicídio ritual dos samurais) após gritar 3x: "Longa vida ao Imperador!".

"Perfect purity is possible if you turn your life into a line of poetry written with a splash of blood." Mishima



Sua morte é considerada o protesto derradeiro contra a decadência da sociedade japonesa. É preciso entendê-lo para não cair no erro de acusá-lo de simples fanático. O membro Emílio da comunidade Literatura Japonesa no Orkut sintetizou isso corretamente: "Ao leitor desavisado, descontextualizado e globalizado o patriotismo soa anacrônico e panfletário. Mas vale lembrar que Mishima vivia no Japão militarmente ocupado pelos americanos.". Yukio teve sua cabeça moldada no auge do militarismo, não se deve esquecer.

Mishima dedicou sua vida à pátria e à nação. Lutou contra a materialização do espírito de um povo que deixou de ser soberano. Protestou "contra a inoperância, a apatia do amorfo Exército Japonês, que, como se sabe, não é mais que uma polícia, mais destinada a reprimir o povo, do que uma milícia capaz de salvaguardar a Nação.".

Discurso de Mishima

 O ato radical do escritor invocou uma estranha apreensão em alguns japoneses. Apesar da consciência do extremismo no ato de Mishima, esses japoneses pararam para pensar sobre aonde estavam indo ao se preocuparem em produzir tanta riqueza enquanto se sentiam tão vazios e culturalmente desconectados das tradições do país que construiram a visão de si mesmos. A maioria dos japoneses, no auge da apologia ao consumo, viram no ato apenas mais uma das excentricidades de Mishima e um péssimo exemplo. A recepção no ocidente, carente de ídolos românticos, foi muito mais forte, descobrindo a força da obra completa de Mishima antes do próprio Japão, que apenas o reconheceu devidamente após revisitar seu legado nos anos 80, tentando entender o que os gaijins viam de importante nele.

"A morte é uma espécie de castigo eterno, infligido à materializada sociedade ocidental que vive afastada da natureza. Para nós não o é, de modo absoluto, uma vez que nos consideramos parte integrada da natureza. Devido a isso, a morte, aos olhos do meu povo, é um prêmio, algo assim como a transformação, a liberdade da matéria. Morrer é partir, não desaparecer. Outrora, o mundo cristão, creio, tinha igual ou semelhante filosofia. E foi então que logrou consolidar-se. Pois bem: nós queremos recuperar plenamente esse estilo de vida e aplicá-lo a uma grande política nacional e popular. O contrário seria o mesmo que aceitar a hibernação indefinidamente da alma japonesa." Yukio Mishima
"Sempre ouça seu espírito. É melhor estar errado que simplesmente seguir o convencional. Se você está errado, não importa, você aprendeu algo e crescerá mais forte. Se você tiver razão, você deu outro passo para uma vida superior."  Trecho do Hagakure, obra que mais influenciou a escrita de Mishima

Ordeal by Roses, album de fotografias de Mishima


FONTES:
Forming nationalistic mentality of Japanese youth by Japanese ruling circles with use of bushido ideology (Andrei Vasil’evich Golomsha)
Mishima: O hara-kiri do silêncio - Política», n.º 26, pág. 12, 31.01.1971
YUKIO MISHIMA: A 20th Century Samurai
Mishima, el último samurai - Anna Zaera
No país do sol nascente - Giovanna Bartucci
Os samurais - History Channel
http://www.culturajaponesa.com.br/htm/cinemajapones.html

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