“O dogma produtivista do alto conhecimento a qualquer preço, do consumo exagerado e da “rainha” economia não encontra mais eco entre os jovens que se interrogam sobre seu futuro, apontam a destruição ambiental, as humilhações escolares e as mortes por excesso de trabalho [karoshi]. Entretanto, quando a sociedade dominante não conhece outros deuses além do índice Nikkei e considera a abertura das lojas aos domingos um avanço social, em direção a que valores podem [os jovens] voltar-se?” (Etienne Barral)
"Por um tempo após o ataque com gás, quando eu estava dormindo no hospital, eu tinha pesadelos terríveis. Eu costumava ter sonhos nos quais eu era um pássaro voando no céu, mas depois eu era abatido. Uma flecha ou uma bala, eu não sei. Eu estava ferido, deitado no chão, moribundo esperando a morte - sonhos como esse. Inicialmente felizes, voando pelo céu, e então um pesadelo". Com essa implicante edificação onírica, o inconsciente da vítima Kenji Ohashi apresenta de modo consistente uma parábola da história japonesa do pós-guerra. Um falcão que alça vôos intensos e longínquos, e enfim tem suas asas perfuradas por um rajada. O corpo em queda livre, mas ainda consciente, se questiona de onde e porquê. Resta-lhe o chão empoeirado e asas danificadas. Na impossibilidade de domar as alturas novamente, o máximo que poderá fazer é buscar entender o que deu errado e tentar sobreviver no chão o máximo que der, uma vez que o céu já não lhe diz mais respeito. Uma perspectiva tão fatalista quanto atual.
Kenji foi uma das milhares de pessoas molestadas com gás venenoso no metrô de Tóquio em 1995. O inimaginável aconteceu. Um atentado terrorista aconteceu no local mais seguro do mundo, o Japão, a partir das pontas de guarda-chuvas dos membros de uma seita pretensamente budista, doutrina de onde menos se pode esperar um ato violento.
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Seguidores da seita japonesa Aum Shinrikyo (traduzido como Aum Verdade Suprema) conduziram ataques simultâneos em cinco carros de diferentes trens do metrô de Tóquio com sarin no dia 20 de março de 1995, resultando em 12 mortes e cerca de 5500 pessoas afetadas de alguma forma, sendo mais de 1300 com lesões permanentes. O mais grave acontecimento japonês desde a última grande guerra tinha um alvo definido, a estação de Kasumigaseki. Todos os cinco comboios se dirigiam à estação que dá para as ruas onde se concentram os Ministérios, o Palácio Imperial, o centro da Polícia Metropolitana de Tóquio e as sedes empresariais de Marunouchi. Um golpe perpetrado com armas de destruição em massa direcionado aos símbolos de poder do país. Um assalto emblemático e desastrado que mirou potentes holofotes na direção do que havia sido ignorado por décadas. O mal-estar existencial e a deriva moral da nação japonesa que eclodiu nos anos 80 e 90.
As imagens de corpos estrebuchando no chão e do Exército com máscaras futuristas desbravando as estações de metrô como astronautas explorando Marte foram tatuadas nos veículos midiáticos japoneses no ano de 1995, e a saturação do improvável assustou os nipônicos de modo irreversível. O gás levou consigo o que restava da auto-estima nacional e descosturou o matizado tapete persa que cobria todas as doenças sociais do país com a aparência da felicidade e da segurança. O gás, mais do que afetar diretamente milhares de inocentes, somou-se aos demais sintomas da anomia japonesa (
otaku,
hikikomori, ijime,
enjo kosai,
karoshi etc) e mostrou ao mundo que o Imperador estava nu, como Étienne Barral demonstrou de modo brilhante em seu livro Otaku - Os filhos do virtual.
Mais do que denunciar a agonia japonesa, o ataque ao metrô de Tóquio pode ser colocado, em escala global, ao lado de outras crises humanitárias como o Massacre na Praça da Paz Celestial na China, a questão iugoslava, o genocídio em Ruanda, o 11 de Setembro, entre outros exemplos. Tóquio, Sarajevo, Nova Iorque, Pequim, Caxemira, Kigali e outras cidades confirmaram, da pior forma possível, as palavras do historiador britânico Eric Hobsbawm no seu clássico A era dos extremos, "o velho século não acabou bem", a despeito do indiscutível progresso técnico e material verificados em vários pontos do planeta.
Nesse post eu pretendo trazer uma abordagem multifatorial do caso, com informações factuais e análises de especialistas, tudo costurado por inúmeros depoimentos, que às vezes se contradizem, de vítimas e membros da seita, a maioria retirada do livro de jornalismo investigativo Underground do consagrado romancista Haruki Murakami; além é claro, dos meus pitacos pessoais, como mero observador que tinha apenas 4 anos de idade quando o Japão sofreu essa fratura exposta. Minha intenção é criar, no aniversário do evento, um material virtual rápido e não-acadêmico que seja referência no assunto em língua portuguesa. Espero ser feliz nessa missão. (toda a tradução é minha, e não sou nenhum especialista em inglês ou espanhol, perdoe qualquer erro)
“Quando eu estava na América do Sul, eu fui convidado para o karaokê por alguém da embaixada japonesa na Colômbia. Então, quase voltamos no dia seguinte para o mesmo lugar, mas eu disse ‘Não, vamos tentar algum lugar novo’. E naquele mesmo dia, o lugar foi bombardeado. Eu me lembro de pensar quando eu voltei pra casa ‘Pelo menos, o Japão é um lugar seguro”. E no dia seguinte eu vou ao trabalho e o ataque com gás acontece. Que ironia.” Mitzuteru Izutsu (vítima)
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20 de março de 1995, uma ensolarada segunda-feira que procedeu e antecedeu feriados nacionais japoneses. Um dia rotineiro atrapalhando um fim de semana prolongado de primavera. Certamente ninguém gostaria de deixar suas camas e famílias para algo que não fosse assistir ao florescer das cerejeiras nesse dia preguiçoso, mas o senso de responsabilidade sempre fala mais alto no Japão, e alguns pagaram essa obediência com a vida.
Cinco membros da seita esquizofrênico-budista Aum Shinrikyo embarcaram em diferentes trens no horário de pico do período matutino. Munidos com pacotes recheados de sarin na forma líquida - e envelopados em jornal - os terroristas perfuraram seus respectivos invólucros com a ponta do guarda-chuva e deixaram o trem para pegar uma carona com os motoristas que os esperavam na saída de cada uma das estações violadas. Alguns vestiam máscaras para se proteger do vapor venenoso, situação que não causa estranhamento no Japão como causaria no Brasil. Conheço duas justificativas para o japonês usar máscaras no espaço público com tanta naturalidade. A Guerra Mundial devastou muitas florestas japonesas, e nos espaços desvirginados o governo local reflorestou com duas espécies de pinheiro (sugi e hinoki), dos quais o pólen causa alergia em 1/5 dos descendentes de Amaterasu, portanto, a máscara é uma proteção usual na primavera e não levanta suspeitas. Além disso, dizem que quando resfriados, os japoneses usam as máscaras para tentar diminuir possibilidade de transmitir a doença para outras pessoas, um ato sintonizado com a cultura coletivista japonesa de colocar o grupo acima do indivíduo (não sei se a máscara é capaz de deter o vírus influenza, nem se realmente acontece, só tenho certeza da primeira).
“Quando você trabalha pelo tempo que trabalhei, você começa a ver todos os tipos de cenas. Eu estive até no terremoto de Kobe. Mas o ataque com gás em Tóquio foi diferente. Aquilo foi verdadeira e realmente o inferno.” Minoru Miyata (motorista da van da TV Tokyo, que serviu de ambulância paras algumas vítimas)
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Antes de prosseguir, é válido uma nota de rodapé para explicar o que é sarin e trazer ao plano dos pobres mortais que não estudam química a dimensão do ataque. O sarin, quando puro, é um composto extremamente volátil desenvolvido por químicos alemães no período nazista. Ao contrário do que se pode imaginar - e isso foi recorrente nas minhas pesquisas -, o sarin não foi desenvolvido como arma de guerra ou extermínio, pelo contrário, foi um dos subprodutos de pesquisas com fertilizantes que visavam aumentar a produção agrícola e resolver a problemática da fome mundial (omitir essa informação, dentre outras, e pintar o governo alemão apenas como artífices do apocalipse germanista é uma sinuosa tentativa de reescrever a história e nazificar padrões de comportamento da época compartilhados por comunistas, fascistas e capitalistas democráticos, mas isso é assunto para outro local - e que fique claro, não estou tentando limpar nazistas, e sim sujar os outros que aproveitaram a temporária demência alemã para passar um perfuminho na própria História e empurrar toda a sujeira do mundo para baixo do tapete ariano).
Deu errado como fertilizante, mas o resultado foi uma substância que evapora de modo inodoro e é até 26 vezes mais letal que o cianeto, bastando 10 milionésimos do peso de um homem para matá-lo. Os sinais mais claros de intoxicação são a cegueira (temporária ou permanente, o que varia com a quantidade inalada ou tocada), coriza, vomito, náusea, convulsões, diminuição da frequência cardíaca, dificuldade de respirar, dores de cabeça e contrações musculares. Como arma, antes da Aum, esse gás letal para o sistema nervoso só havia sido usado por Saddam Hussein contra os curdos - e não em trens subterrâneos. Mesmo os nazistas tendo essa arma em mãos, ela não foi usada na guerra. A experiência com o gás mostarda na primeira grande guerra foi tão desgraçadamente cruel que mesmo os exércitos de facínoras como Hitler, Stalin e Hideki Tojo não fizeram uso de guerra química nos campos de batalha, com exceção dos italianos na África em episódios menores (é verdade, eles exterminaram judeus com Zyklon B, mas isso já não era guerra, era estratégia de dizimação). É com esse brinquedinho que os filhos diletos da modernidade japonesa atacaram seu próprio seio.
“E eu continuei tendo esses sonhos. A imagens daqueles atendentes da estação, com colheres em sua bocas presa na minha cabeça (...) Eu não sei quantas vezes eu acordo no meio da noite. Assustada.” Kiyoka Izumi (vítima que trabalhara antes para a Japan Railways e percebeu que toda sua experiência não era útil em situações críticas)
Ikuo Hayashi (condenado à prisão perpétua por colaboração com a polícia na prisão do alto escalão da Aum, inclusive do líder Shoko Asahara), cardiologista graduado em Medicina pela Universidade de Keio (uma das melhores de Tóquio) perfurou apenas um dos seus dois invólucros no trem da linha Chiyoda, mas o conteúdo evaporou completamente, resultando em duas mortes e 231 pessoas seriamente feridas.
Yasuo Hayashi (condenado à morte), guaduado em Inteligência Artificial pela Universidade de Kogakuin, é apelidado de 'murder machine'. Sob suspeitas de ser um espião infiltrado, Hayashi foi o único que levou consigo três embalagens de sarin, como prova de lealdade, e perfurou todos, sendo o mais letal dos terroristas. Seu saldo no trem da linha Hibiya foi de 8 mortes e 275 pessoas gravemente lesadas.
Toru Toyoda (condenado à morte em 2009), graduado com honras em Física aplicada pela Universidade de Tóquio - uma das dez melhores do mundo -, era mestre e estava cursando o doutorado quando resolveu abandonar a vida civil para adentrar na seita. Ajudou na fabricação do sarin e sua resposta à sociedade que lhe considerava um filho bem sucedido, um pupilo da elite, foi uma morte e 532 com danos consideráveis na linha Marunouchi.
Masato Yokoyama (condenado à morte em 1999) foi o menos efetivo dos terroristas. Apesar das múltiplas tentativas, apenas um dos dois sacos de sarin foi perfurado, e com um único golpe eficaz. Para a sorte das pessoas do outro trem atacado na linha Hibiya, a formação em Física aplicada pela Universidade de Tokai não ensinou ao Yokoyama a arte da esgrima e sua agressão foi a única que não resultou em morte, ainda que cerca de 200 pessoas tenham sido afetadas.
Kenichi Hirose (condenação à morte confirmada em 2009), pós-graduado em Física pela excelente Universidade de Waseda na condição de melhor aluno da turma, derramou 900ml de sarin em outro carro da linha Marunouchi, retribuindo assim tudo o que o Japão tinha de melhor a oferecer com uma morte e 358 cidadãos gravemente injuriados.
"Logo após o ataque eu estava louco de raiva. Eu andava pelos corredores do hospital batendo nos pilares e nas paredes. No momento, eu ainda não sabia que tinha sido a Aum, mas quem quer que fosse, eu estava pronto para espancá-los. Eu nem percebi, mas alguns dias depois meu punho estava ferido. Eu perguntei à minha esposa 'Estranho, por que minha mão dói tanto?' E ela disse 'Você esteve socando as coisas, querido'." (Tatsuo Akashi, 37)
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Por alguma razão, o sarin usado pela Aum não estava suficientemente purificado, sendo assim menos efetivo em sua letalidade, e fedido - um aroma entre o doce e o apodrecido - o que fez com que algumas pessoas desconfiadas com o conteúdo fétido que vazava das bolsas perfuradas se afastassem do perigo. Um gás puro e inodoro certamente faria com que o número de mortes, e não de feridos, se contabilizasse aos milhares. Por outro lado, se o gás fosse imediatamente mortífero, todos perceberiam de cara a situação trágica e fugiriam, mas muitos continuaram respirando o sarin impuro por um longo tempo. Não achei informações se isso foi decorrência de incompetência dos técnicos da Aum ou proposital, para fazer do ataque um ato mais 'simbólico' que um extermínio massivo, ou mesmo para que seus homens conseguissem fugir a tempo sem sentir graves efeitos.
Ainda assim, foi o suficiente para transformar as três estações de metrô em pandemônios contidos. Algo definitivamente não estava bem, isso estava claro para os transeuntes e funcionários, mas não era uma situação de guerra, de pavor, histeria coletiva... pelo menos no início. Algumas pessoas caindo, espumando pela boca, todos tossindo, mas nada realmente catastrófico para tirar o japonês do seu peculiar estado de contenção. O que se mostrou problemático, pois enquanto as pessoas eram evacuadas sem pressa alguma das estações, estavam todas inalando doses de gás.
Todos mencionam a estranheza do principal efeito do sarin nos olhos. Nas entrevistas é unânime o enegrecimento da visão, como se alguém tivesse apagado as luzes. Por felicidade, o dia estava muito ensolarado naquela manhã, e essa disparidade entre a luminescência do Sol vista até então e o clima de cinema no metrô fez com que muitos percebessem, enfim, que algo estranho de fato tinha acontecido.
"Focar também é difícil. Se eu estou olhando para um lado, alguém me chama e eu viro de repente, isso me machuca como uma marreta. Isso acontece o tempo todo, uma dor aguda na parte de trás dos olhos. (...) Eu sei que eu não aparento estar sentindo dor constantemente, mas imagine usar um capacete de pedra, dia sim, dia não. Eu duvido que isso faça sentido para alguém. Eu me sinto muito isolado. Se eu tivesse perdido um braço, ou fosse reduzido a um estado vegetativo, as pessoas provavelmente poderiam compreender melhor. Se eu apenas tivesse morrido, quão mais fácil teria sido. Nada desse nonsense. Mas quando eu penso em minha família, eu tenho que continuar..." (Kenji Ohashi, 41, uma das vítimas permanentes do sarin)
O caos se instalou nos hospitais de Tóquio. Milhares de pessoas chegando com os mesmos sintomas de um problema desconhecido. Ausência de ambulâncias, morosidade da Polícia e das autoridades governamentais de Kasumigaseki. Pessoas babando no chão, repórteres circunscrevendo esse cenário dantesco e um diagnóstico tardio das causas do problema. De modo paradoxal, a própria Aum serviu como vacina para seu ataque, já que usou sarin em outro evento menor em 1994 e um hospital do Japão sabia exatamente quais eram os sintomas, e qual o tratamento adequado para cada nível de intoxicação. O médico que cuidou do incidente anterior mandou fax para todos os hospitais da cidade e impediu várias mortes, já que um parecer oficial saiu apenas no final da tarde.
Nos sobreviventes, sejam mais ou menos afetados, incluindo todos os seus parentes e amigos, ficaram sequelas. Não apenas na visão ou na capacidade de se concentrar (e há casos de pessoas que perderam a memória, a capacidade de falar e se locomover). A sequela que ficou está além disso. Por que uma seita budista faria isso com inocentes a caminho do trabalho? O Japão estava perplexo, mas foi necessário uma catástrofe social desse quilate para que o país parasse para pensar: Por que? Por que no Japão? Por que no Japão pelas mãos de japoneses aparentemente bem sucedidos? Onde foi que erramos? O que seguirá agora é o histórico da Aum Shinrikyo, a explicação do contexto que permitiu uma seita com fundamentos difusos ter tantos adeptos, para que no final eu possa apresentar interpretações holísticas do atentado e da crise nacional que encobre o Japão há pelo menos 30 anos, mas precisou de gás para sair das sombras. Vem comigo?
"Ninguém disse uma coisa, todos estavam tão quietos. Nenhuma reação, nenhuma comunicação. Eu vivi nos EUA por um ano, e acredite em mim, se a mesma coisa tivesse acontecido nos EUA teria havido uma "real scene" (?). Com todo mundo gritando 'o que está acontecendo aqui?' e se unindo para encontrar a causa. Mais tarde, a polícia me perguntou 'As pessoas não começaram a entrar em pânico?': 'Ninguém disse uma palavra'" (Ikuko Nakayama - 30's - válido lembrar que isso aconteceu em um único trem, nos demais houve sim uma movimentação generalizada para abrir janelas e se comunicar com funcionários)
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Shoko Asahara |
A seita Aum Shinrikyo foi fundada em 1984 pelo guru Shoko Asahara (preso em 82 por exercício ilegal da farmácia), ainda sob o nome de Assembléia da Montanha Divina Aum. Os fundamentos religiosos da Aum são mesclas de vertentes distintas de budismo (Theravada, Mahayana e Vajrayana), com traços de cristianismo (conceito de Armagedon), pseudo-ciência, taoísmo, yoga hindu e até profecias de Nostradamus, com pitadas estéticas da cultura otaku! Não precisa ser um grande teólogo para notar que a religiosidade da Aum era esquizofrênica e superficial, um caldeirão de recortes que não dialogam entre si, interpretados pela cabeça megalomaníaca do fundador Asahara.
Com essa promessa estilhaçada e absurda, no entanto, a seita começou a ganhar força no Japão, sobretudo após o encontro do guru com o Dalai Lama em 1987, que lhe pediu apoio para ajudar a difundir o budismo no país. De 36 membros para mais de 600 em um ano, e enfim, no seu auge, alcançar 10 mil fiéis nipônicos e quase 40 mil mundo afora, principalmente na Rússia, Alemanha e EUA. Mais de 1200 japoneses doaram absolutamente todas as suas posses materiais e força de trabalho à Aum, se retiraram da sociedade civil, em troca de abrigo nos domínios da seita. Um crescimento expressivo, mas pequeno perto de algumas das 180 mil seitas registradas no governo no início dos anos 90.
Um grande passo para o crescimento da Aum foi o Shukyo Hojin Ho, a lei japonesa que permite às entidades religiosas uma série de direitos, como isenção fiscal, direito à propriedade privada e proteção do Estado. A Aum começou a diversificar sua fonte de renda e não faturar apenas com o dinheiro de doações e cursos ministrados (que por si só já configuram um volume bem expressivo de dinheiro), e começou a aplicar esse montante em lojas, restaurantes, montagem de eletrônicos etc. Além disso, uma indenização concedida pelo governo, paga por tê-los forçado a mudar de uma cidade onde estavam instalados, possibilitou que o grupo de Asahara movimentasse dezenas de milhões de dólares.
“Se for verdade que a Aum instalou um formidável sistema de lavagem cerebral, melhor, isso é excelente. Que todos os novos adeptos sejam submetidos a uma lavagem cerebral e a um controle do pensamento. Hitler era um ditador político, Mao Tsé-Tung era um ditador do pensamento, então, eu sou o ditador da fé que os conduzirá, a todos, ao desprendimento último” (Shoko Asahara)
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Dalai Lama e Shoko Asahara |
Shoko escreveu vários livros interpretando textos budistas antigos como o Pali Canon, mesclando isso com suas experiência pessoais. Dizia poder levitar e ler a mente (apesar de não fazer uso desse poder para descobrir os espiões infiltrados, optando pelo pragmático detector de mentiras) e se auto-intitulava a encarnação de figuras como Shiva e Jesus Cristo. A Aum, cujos principais líderes haviam sido derrotados nas eleições legislativas de 1990 após campanha cara e macarrônica, se torna cada dia mais personalista e não é possível entender o grupo sem partir do princípio chamado culto à personalidade, onde membros vão até pagar caro para beber a água do banho de Asahara. O grupo se torna progressivamente mais agressivo com seus membros e com o mundo. Os rituais de iniciação passam a envolver LSD e choques elétricos na cabeça. Membros que tentavam abandonar a seita eram sequestrados e mantidos em cárcere privado. Estima-se que 46 membros morreram acidentalmente nos castigos impostos aos impuros questionadores, reféns do tangível e dos prazeres da carne.
Uma espécie de Estado é criado num vilarejo rural de Kamikuishiki, nos pés do Monte Fuji, para isolar de fato parte dos seus membros da sociedade civil. Os japoneses que fugiram do rico Japão para seguir os passos do guru ficaram encarregados de todas as funções internas do grupo, da construção de casas ao tratamento médico dos internos.
"Atualmente, nós alcançamos uma grande riqueza material, mas perceba que isso não traz satisfação, por isso algumas pessoas empreendem uma busca pelo mundo interior. Entre as pessoas que passaram a época da fome se formou o seguinte esquema: viver significa trabalhar, e trabalhar significa uma vida rica. Sem dificuldades, a juventude leva uma vida rica desde a infância, e desde então toma consciência do sofrimento e da vaidade que se encontram nas sombras da riqueza, por isso é natural que a juventude comece a aspirar algo além desse mundo material, que esta sociedade materialista." (Shoko Asahara, que apesar do discurso anti-materialista e contrário os prazeres mundanos, andava de Rolls Royce, comia melões de 500 francos, não hesitava em fazer filhos e raramente comia a mesma comida ascética dos fiéis)
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A visão de mundo da seita também se modifica no decorrer do tempo, e o grupo, que inicialmente pretendia purificar o mundo para impedir a iminente catástrofe degenerativa da humanidade, passa a abraçar um crescente pessimismo na virada dos anos 80 para os 90. A derrota vergonhosa nas eleições, outra ferida narcísica marcando a pele de Asahara (que quase cego não pôde frequentar escolas normais e também foi rejeitado na Universidade de Tóquio), foi o fator pontual para essa mudança, a evidência definitiva de que o Japão não apenas não poderia, como não queria ser salvo da destruição. Shoko teve contato com as escrituras bíblicas e dela retirou o conceito de Armageddon, que mesclado com o conceito budista de Vajrayana porcamente interpretado e com as noções do deus Shiva do hinduísmo (aquele que traz a destruição para renovar o mundo), surgiu-lhe a convicção de que o mundo humano tinha chegado a tal ponto que restaurá-lo era uma impossibilidade. A partir das palavras de Nostradamus e sua previsão de fim do mundo no ano de 1999, Asahara se colocou na condição de artesão do apocalipse que varreria o homem vil da Terra e faria emergir uma nova humanidade sem vaidades do seio daqueles que têm fé, primeiramente todo o mundo budista, depois estritamente os membros da Aum. Na concretização desse objetivo, não bastava a violência interna contra as vozes dissidentes, era preciso combater também o mundo que supostamente conspirava contra o culto. Mesmo que as mãos puras dos seguidores se sujassem em sangue civil.
O primeiro caso de truculência que envolveu a Aum foi a morte do advogado Tsutumi Sakamoto e sua família em 1989. Ele encabeçava uma ação anti-Aum, contestando aos métodos usados pela seita para trazer seus membros para o isolamento. O envolvimento da seita nos assassinatos era provável, uma medalha do grupo foi achada na residência da família, e, se não provava a autoria do crime, demonstrava em qual direção as autoridades deveriam mirar seus esforços de investigação. O envolvimento de membros nessas mortes só foi provado em 1995, após as prisões em massa decorrentes do atentado no metrô, em outras palavras, a impunidade prevaleceu.
“Por muito tempo pensei que meu destino fosse salvar a sociedade. Mas há algum tempo começo a crer que talvez seja impossível salvar essa sociedade humana que transformou a si mesma em inferno” (Shoko Asahara)
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Um acontecimento muito maior que envolveu sarin antes do ataque no metrô foi o incidente na cidade de Matsumoto. Caminhões pulverizaram o gás em um complexo habitacional, matando 7 pessoas e ferindo outras 600, com 144 hospitalizados em estado grave. O alvo? Juízes prestes a tomar decisões no tribunal que desfavoreceriam os interesses da Aum. Deu certo, os juízes não puderam dar seu parecer no tribunal e o governo japonês imaginou inicialmente que se tratava de uma ação do Estado norte-coreano. Apesar das desconfianças crescentes em torno da seita, nada foi provado, ou melhor, devidamente investigado. Sobre essa omissão policial, Mitsuro Suganuma, então chefe dos serviços de inteligência do Japão, afirmou que por causa dos experimentos abusivos na Segunda Guerra, a religiosidade se tornou intocável no país, a policia se tornou permissiva demais com esses grupos para sequer permear a possibilidade de interferir no direito ao culto.
“Não é nem uma questão de tomar ou não o metrô, apenas sair para andar me assusta agora” (Tomoko Takatsuki)
De modo paralelo aos incidentes públicos de violência, a Aum começou a se armar. Organizou treinos militares na Rússia, China e Havaí. Mais do que isso, passou a comprar e fabricar armamentos pesados, preparando-se para a luta apocalíptica contra os impuros. Em sua sede foram encontrados maquinários para a montagem de fuzis AK-47, inúmeros compostos químicos e documentos acerca da produção de armas químicas, biológicas (anthrax) e mesmo da improvável compra de armas nucleares (mais delírio juvenil do grupo que possibilidade concreta, no caso). Nos seus laboratórios foram encontrados compostos e equipamentos suficientes para a produção de 70 toneladas de sarin, que conforme foi descoberto depois, seriam pulverizados sobre Tóquio em novembro de 1995 a partir de um helicóptero militar russo, já em posse da seita. Segundo os planos de Asahara, pelo menos, seria o gatilho para a derradeira Terceira Guerra Mundial.
"Na noite antes do ataque com gás, a família estava dizendo durante o jantar 'Meu Deus, como temos sorte. Todos juntos se divertindo...' Um modesto fragmento de felicidade. Destruído no dia seguinte por aqueles idiotas. Aqueles criminosos roubaram o pouco de alegria que tivemos" (Tatsuo Akashi, 37)
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Mais de 2500 policiais desbarataram o grupo nos dias seguintes ao atentado no metrô. Nos meses decorrentes, a polícia foi a campo mais de 500 vezes e executou 400 prisões só em 1995. Cinquenta crianças criadas longe da sociedade civil foram pegas em custódia pelo Estado, mas mesmo assim, a Aum não estava morta. Uma autoridade polícia sofreu quatro tiros no dia 30 de Março e sobreviveu por um milagre. Asahara foi preso em 16 de maio, no mesmo dia em que uma carta-bomba endereçada ao Governador de Tóquio explodiu no rosto de uma secretária. Nos quatro meses seguinte ainda houve quatro tentativas de ataques ao metrô, duas delas com Zyklon B (o gás usado pela Alemanha nos campos de extermínio), todos fracassados.
Se a compreensão da razão do ataque deve ser interpretada em termos simbólicos e morais, o mesmo não pode ser dito a respeito das motivações acerca da data escolhida para o ataque, muito mais objetivas e estratégicas para a manutenção da Aum enquanto grupo. Asahara previu o fim do mundo para 1999, seguindo Nostradamus, apenas acrescentando que o fim chegaria numa guerra nuclear decorrente do embate entre o imperialismo americano e a força das corporações japonesas (ele inclui até armas de plasma nos discursos, numa óbvia apropriação da cultura otaku que ele tão bem usou para atrair fiéis da primeira geração desse fenômeno).
"'Por quê?' era tudo o que eu conseguia pensar. Mesmo no caso do IRA, eu poderia pelo menos ver as coisas pela sua ótica e talvez começar a entender o que eles esperavam alcançar. Mas este ataque com gás foi simplesmente além de toda a compreensão." (Kozo Ishino, 39)
O líder antecipou suas previsões primeiro para 1997 e depois para 1995. Membros da Aum ligados às Forças Armadas e à Polícia avisaram Asahara que os aparelhos do Estado estavam olhando a Aum de perto, prestes a avançar contra seus QG's, onde encontrariam provas irrefutáveis de ações criminosas. O ataque foi, então, antecipado para anteceder uma potencial ação policial, bem como tentar desviar a atenção deles com um ataque ainda mais devastador que o bem sucedido atentado em Matsumoto. Somado a isso, Asahara, maltratado pela diabetes e quase cego, teria antecipado seu Armageddon pessoal para poder testemunhas ainda em vida sua vingança contra o adoecido Japão, que sempre lhe negou seus desejos.
O objetivo do atentado seria menos o de matar pessoas de modo aleatório e mais um modo de demonstrar (e não desmentir empiricamente) as profecias apocalípticas do guru. Asahara iniciaria a Terceira Guerra, e caberia aos iluminados da seita a missão de repovoar o planeta com valores mais elevados quando toda a sujeira do mundo fosse enterrada pelos destroços do hipotético conflito. A estação de Kasumigaseki é o único local realmente capaz de proteger as massas japonesas da radiação de um ataque atômico, e a Aum, ao simbolicamente desnudar o rei com um ataque caseiro, mostrou como a estação, o governo japonês (um Estado títere do governo americano) e o povo do Japão são frágeis e incapazes de defender a si mesmos do mundo moderno e das ameaças externas. Apesar de toda a crueldade e megalomania do plano, não dá para negar a genialidade criativa na escolha do alvo e das armas. Com a mesma cajadada, a Aum erodiu de vez a auto-estima nacional (já em baixa pelo abalo da Economia em 1990) e apontou suas armas para os centros de poder do país, usando os próprios filhos preparados por décadas por esse Estado para 'brilhar' como o Sol Nascente.
"Meu filho era um funcionário do banco brilhante e diligente, com um bom futuro pela frente. Mas eu nunca soube que tudo isso não era suficiente para ele e que ele estava procurando algo mais." (mãe de um jovem que preferiu abrir mão da desenvolvida vida civil japonesa para entrar na Aum)
“Eu não sou uma vítima do sarin, sou um sobrevivente” (Toshiaki Toyoda funcionário da linha Chiyoda)
Ficou claro que o Japão subestimou a Aum como os americanos subestimaram a Al Qaeda no mesmo período. Grupos com grandes recursos - financeiros, militares e humanos - e um alvo em comum. Mas diferente do grupo islâmico, cujas ações são fundamentadas teologicamente e instrumentalizadas por interesses internacionais, inclusive de governos soberanos que os financiaram e lhes deram cobertura, a seita japonesa não estava envolvida com o capital internacional, nem com os desejos de Estados inimigos do Japão. Até porque há uma diferença absoluta de intencionalidade. Enquanto a Al Qaeda luta contra o Ocidente em nome dos ditames islâmicos que representa, os japoneses da Aum Shinrikyo tentaram purgar a modernidade da qual fazem parte. Não tinham um alvo externo, o intuito era implodir o próprio prédio (ainda que acreditassem na própria salvação).
“Com a sociedade do jeito que está, todo mundo correndo apenas atrás de dinheiro, eu posso até entender como os jovens podem ser atraídos por algo mais espiritual como a religião” (Hideki Sono (vendedor de roupas de grife, 36)
De forma clara, a Verdade Suprema foi obra de um megalomaníaco carismático que conseguiu compreender o espírito nacional da sua época, entendeu os anseios da juventude oitentista, mas deu a ela um sentido de pertencimento com tons desastrosos. Você deve estar se perguntando como um grupo religioso com um fundamento religioso frágil como um castelo de cartas, e pitoresco como um bacanal romano, pôde ter conseguido angariar milhares de adeptos e movimentar milhões de dólares. Essa ainda é uma ferida aberta, mas vários pensadores, japoneses ou não, mostram que o feito é resultado cumulativo de décadas de excessos e cegueira no pós-guerra japonês. É preciso contextualizar o fato na desumanização resultante da mistura entre modernidade ocidental e cultura japonesa. Se a modernidade chegou no final do século XX angustiante mesmo para nós ocidentais que a martelamos mundo afora (o que se verifica facilmente pelo aumento absurdo na taxa de suicídios [inclusive infanto-juvenil], consumo de anti-depressivos, recrudescimento da toxicomania etc), quando ela se misturou com os princípios morais e habituais da nação japonesa, algo deu muito errado. O país sofreu um tilt.
"Sarin tem esse efeito: quando você cai no sono, de repente você acorda mais uma vez. Eu estava com medo do escuro. Eu tive que deixar as luzes acesas. Em algumas noites eu não dormi nada...." (Michael Kennedy, 63)
"Um monte de garotas da mesma idade que eu (15~16) tornaram-se retirantes e tivemos bons momentos juntas no dojo Segaya. Tínhamos muitas coisas em comum, afinal, elas também se juntaram a Aum porque o mundo lá fora parecia sem valor" Miyuki Kanda (jovem que já aos 15 anos não suportava o Japão que lhe fora oferecido e fugiu da sociedade civil, encontrando-se dentro da Aum)
Shoko Asahara não foi seguido apenas pelo seu carisma ou por uma máquina de lavagem cerebral, ainda que sem esses elementos a coisa não ganharia tamanha proporção. Ele estava inserido na onda de renascimento da espiritualidade japonesa característica dos anos 80 no arquipélago. Nessa época, mais de 650 mil japoneses, a maioria jovens, entraram em alguma atividade religiosa dessas mais de 180 mil seitas, e perto desses números, os 10 mil membros japoneses da Aum Shinrikyo são uma pequena fatia daquele bolo de aniversário da cidade de São Paulo, onde as pessoas mergulham com suas sacolas plásticas e tentam pegar para si a maior quantidade do pão-de-ló público. A sacola de Asahara nem era das maiores, e seu braço era curto comparado ao dos demais gurus que pipocavam no riquíssimo Japão...
Essas seitas eram procuradas por jovens conscientes do fato de que o mundo estava acelerado demais, irado e obcecado em demasia. E que algumas poucas pessoas estavam lucrando com o desconforto de milhões de japoneses! A juventude oitentista do Japão não queria apenas se livrar dos males terrenos, mas a elevação da alma. Crescidos num mar de materialismo e excesso nos estudos e no trabalho, estavam absolutamente apartados de uma vida interna, espiritual. Cansados de trabalhar por horas a fio em atividades sem sentido, eles passaram a questionar o imbricamento que levou o Japão ao topo do mundo ao mesmo tempo que jogou sua população no marasmo existencial. Prova inquestionável disso é o fato deles terem aberto mão de todas as suas (muitas) posses materiais e financeiras para se isolar do mundo, não fazer sexo, comer proteína de soja frita e tentar manter a cabeça fora da areia movediça. Nintendo e Matsushita já não eram mais capazes de servir como referência para essa parcela da população...
“Desde o término da guerra, a economia japonesa cresceu rapidamente até o ponto onde nós perdemos o senso de qualquer crise e as coisas materiais passaram a ser tudo o que importa. A ideia de que é errado prejudicar os outros desapareceu. Isso já foi dito antes, eu sei, mas isso [o atentado] realmente trouxe o assunto à tona para mim. O que acontece se você criar uma criança com essa mentalidade? Existe alguma desculpa para esse tipo de coisa?” (Mitsuo Arima, 41)
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Isso é o bastante para sustentar a humanidade? |
"A coisa mais importante para o Japão neste momento é buscar uma nova completude espiritual. Eu não vejo qualquer futuro para o Japão se nós cegamente persistirmos com as buscas materialistas de hoje." (Kozo Ishino, 39)
Metraux identifica quatro grupos básicos dentro da Aum. As pessoas comuns, jovens ordinários que não se destacaram nos estudos ou no trabalho (o que no Japão não necessariamente indica falta de comprometimento), tinham empregos medíocres ou estavam desempregados. Os estudante alienados, jovens recém formados ou que abandonaram a faculdade e se recusavam a trabalhar em corporações. Os velhos membros, formado principalmente por mulheres adultas, donas de casa ou viúvas, na busca pelo sentido da vida. E os acadêmicos, pessoas com ótima formação técnica, formados nas melhores universidades do país, e responsáveis pelo desenvolvimento das armas, animações e tudo de relevante que a seita produziu.
“Eu trabalhei em Tóquio durante 12 anos, eu sei tudo sobre suas formas peculiarmente assentadas. Em última análise, a partir de agora eu acho que o indivíduo na sociedade japonesa precisa se tornar muito mais forte. Mesmo a Aum, depois de reunir tantas mentes brilhantes, o que eles fizeram senão mergulhar direto no terrorismo de massa? Isso é justamente o quão fraco o indivíduo é.” (Mitsuo Arima, 41)
A Aum apelou principalmente para a juventude insatisfeita do país, uma nova geração denominada
shinjinrui. Eles são os japoneses que apareceram nos anos 70 e 80, tiveram pouco ou nenhum contato com os traumas e dificuldades do pós-guerra, ao contrário, nasceram e cresceram num Japão rico, próspero e seguro. São mais individualistas e menos conformistas que seus pais e, para eles, dedicação absoluta ao país e ao trabalho são conceitos datados. Os
shinjinrui viajaram para o exterior e tiveram contato com outras culturas, principalmente a americana, e desse contato concluíram que preferem levar uma vida mais humana. Foram diretamente influenciados pelo discurso apocalíptico e pessimista do pop japonês setentista e pelo
new age dos anos 80, que alimentou a busca por uma nova espiritualidade, uma movimentação desordenada e desorganizada, porém influente, pela pratica espiritual e busca pela conscientização. Dessa geração saiu o novo homem japonês que guiará o país no século XXI e alterará a competitividade da indústria japonesa no cenário internacional. Isso te faz lembrar dos
homens herbívoros?
“As aspirações da juventude moderna, educada em um período de abundância do ponto de vista material, orientaram-se na seguinte direção: de que modo viver como indivíduo? Enquanto a sociedade adulta continua a contentar-se com a felicidade familiar e com a satisfação das suas necessidades materiais, a busca dos jovens por sua identidade e sua individualidade continuará a ser incompreendida. Tendo obtido na infância tudo o que seus pais sonharam, os jovens abriram-se a novas aspirações espirituais. E um dos meios de satisfazê-las é ultrapassar o invólucro carnal, a vida e a morte, e tornar-se puro de espírito.” (Yamazaki Tetsu, sociólogo)
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O pessimismo no pop japonês nasceu da insatisfação crescente ou a alimentou? Ou as duas coisas? |
“Eu já sabia que a sociedade tinha chegado a tal ponto que algo com Aum tinha que acontecer. Lidando com passageiros dia após dia, você vê o que vê. É uma questão de moral. Na estação você obtém um retrato muito preciso das pessoas em seu lado mais negativo.” (Toshiaki Toyoda, funcionário da linha Chiyoda)
O mais curioso do atentado ao metrô é o fato de que ele foi planejado, preparado e executado pela elite intelectual do Japão (eu não enfatizei as universidade e os cursos dos terroristas apenas para cansá-lo). Não por desiludidos sem eira nem beira, sem um lugar para cair morto. É gente com graduação na Universidade de Tóquio, cursando pós-doutorado! Pessoas que não fizeram questão de seguir seu maravilhoso caminho de elite para agredir a nação que os alçaram ao topo da pirâmide social. Etienne Barral, em seu indispensável livro Otaku, apresenta dois argumentos para isso.
“A seita Aum mantinha uma política ativa de recrutamento de adeptos no meio universitário. (...) É interessante observar em relação a isso que, nos anos 70 esses estudantes a quem se prometeu o mais belo futuro, a elite da nação, é que aderiram em massa às idéias da extrema esquerda e lutaram para mudar a sociedade. Vinte e cinco anos mais tarde, quando a grande maioria da população e particularmente a juventude é anestesiada pelas mídias, são as mesmas elites que, ao constatar a deriva moral e a ausência de ideal na sociedade contemporânea, voltam-se para as seitas na tentativa de encontram soluções para sua angústia diante do futuro. Nesse caso, o episódio Aum é apenas um movimento prenunciador de problemas ainda maiores” (Etinne Barral)
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Barral - comprem o livro dele, é imprescindível para quem quer entender a cultura otaku! |
O primeiro é que não é nada fácil ser adolescente numa sociedade igualitariamente próspera e tão bem orquestrada como a japonesa. Crescidos como bons meninos imersos no estudo, os japoneses seguram suas insatisfações e questionamentos até a idade adulta, tornando-se alvo fáceis para as promessas de seitas como a Aum, ao contrário da rebeldia ocidental, onde o indivíduo quando chega à idade adulta, se adéqua ao que a sociedade espera dele. O próprio Hideo Murai, o homem imediatamente abaixo de Asahara, superior que transmitiu as ordens do ataque aos cincos terroristas, assassinado após o atentado provavelmente por membros da própria Aum por saber demais, estava inserido na mesma lógica:
“Estou muito absorvido pelo trabalho, questiono-me sobre o sentido de tudo isso. Eu era encarregado da produção de peças para foguetes espaciais. Não me via passando toda a vida ali.” (Murai Hideo)
Esses jovens, paparicados como referência em suas Universidades, saiam de lá para o chão na fábrica do mundo corporativo, com algum trabalho monótono e décadas pela frente até conseguir subir no hierárquico sistema empresarial ou científico japonês. Asahara soube acariciar a auto-estima e o ego desses jovens tecnicamente brilhantes e deu-lhes cargos altos nos "Ministérios" da seita, equipamentos de primeira e liberdade criativa. Uma promessa muito mais sedutora, que a proposta pela sociedade civil, não?
"A maioria de nós riu com o cenário excêntrico e absurdo que Asahara forneceu e nós ridicularizamos os crentes que poderiam se atrair por algo tão lunático. Mas 'Nós' fomos capazes de oferecer a 'Eles' uma narrativa mais viável? Então, e quanto a você? Não temos confiado uma parte de nossa personalidade a algo maior como um Sistema ou Ordem? Se assim for, esse Sistema, em certo momento, não exigiu de nós algum tipo de insanidade? As narrativas que vocês possuem agora são de fato suas próprias narrativas? Seus sonhos são REALMENTE seus próprios sonhos? Eles não poderiam ser apenas a visão de alguém que poderia, cedo ou tarde, se tornar um pesadelo?" (Haruki Murakami)
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Barral, como bom francês que é, dá uma acentuada importância ao sistema educacional japonês pelos problemas que o país enfrentou nas últimas décadas. Focado essencialmente na memorização e especialização absoluta, o Japão está formando pessoas extremamente técnicas, excelentes em alguma função, produtivos para o industrializado Japão, mas sem capital intelectual o bastante para julgar a natureza de suas ações fora do seu restrito plano técnico. Acontece que no livro ele mirou a justificativa apenas para a meia dúzia de membros que partiram para a luta armada sem questionar a validade dos argumentos proferidos por Asahara. A Aum era formada por outros milhares de membros que não mataram, nem matariam, sequer uma barata. (isso é um fato, as sedes da Aum eram infestadas por baratas, já que os membros não matavam animais).
No livro Underground do Haruki Murakami o sistema educacional japonês não é demonstrado como algo que idiotiza os membros da Aum e os levam ao barbarismo, ao contrário, eles perceberam a fragilidade dele, e contra ele se rebelaram, usando-o como mais um argumento contra a falta de valores da vida social japonesa da época. No trecho a seguir, você perceberá que não se trata de um mero imbecil incapaz de desenvolver um raciocínio por si só:
"Para mim, estudar significa ganhar sabedoria, mas o trabalho escolar era apenas práticas de memorização, coisas como quantas ovelhas existem na Austrália ou algo assim. Você pode estudar aquilo pelo tempo que quiser, mas não há meios disso fazer de você um sábio. Houve um grande gap entre a imagem que eu tinha daquilo que um adulto deve ser e os adultos reais em torno de mim. Você envelhece, ganha conhecimento e experiência, mas por dentro você não cresceu nem um pouco como pessoa. Tire a aparência exterior e o conhecimento superficial, e o que resta não é mais do que uma criança. (...) Desde que eu tinha 12 anos, eu sempre abordei as coisas de uma maneira filosófica. Uma vez que eu começasse a pensar em algo, eu me fixava nisso por umas seis horas. Para mim, estudar algo é precisamente isso. A escola era apenas uma corrida para ganhar mais pontos." (Hiroyuki Kano, membo da Aum que não se desligou da seita, mas já não vive mais em comunidade com eles)
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“Nós recuperamos os sentidos. Agora nós finalmente voltamos ao normal.” (Hideki Sono, sobre o estouro da bolha - será?)
Se um dos objetivos da Aum com o ataque foi violentar o país para forçá-lo a auto-reflexão, isso de fato aconteceu. Não apenas com os intelectuais que estudaram o caso, mas as próprias vítimas, ao invés de apenas demonizar o culto, o fizeram não sem mirar seu dedo indicador para o espelho. Alguns depoimentos a seguir mostram uma mistura de insensibilidade com solidariedade misturados no mesmo cenário confuso. E que você absorva essas opiniões com moderação, pois são memórias de vítimas que viveram uma faceta do caso. Memória não é registro, é mito. Uma das vítimas, por exemplo, alega que as pessoas o ignoravam enquanto ele passava mal, mas como poderiam adivinhar que o metrô havia sido envenenado? Não seria mais óbvio e natural deduzir que ele era apenas um bêbado que passara da conta, cambaleante pelas ruas? Também há casos de pessoas que nem estavam no metrô, perceberam a situação e entraram nas estações para ajudar os demais, intoxicando-se pela solidariedade. Outros passaram horas parando carros pedindo carona para o hospital, já que as ambulâncias não chegavam, e todos os motoristas desviaram seu destino para ajudar as vítimas.
“Aquela metade da rua estava absolutamente infernal. Mas no outro lado, pessoas estavam caminhando para o trabalho como sempre. Eu estava atendendo alguém e olhei para ver o olhar dos transeuntes em minha direção com uma expressão de “O que aconteceu aqui?”, mas ninguém veio. É como se nós fossemos um mundo à parte. Ninguém parou.” (Kiyoka Izumi - RP que trabalhou para a Japan Railways)
“Alguns guardas estavam de pé diante dos nossos olhos no portão do Ministério [do Comércio e da Indústria]. Aqui nós tínhamos três pessoas deitadas no chão, esperando desesperadamente por um ambulância que não chegou por um longo, longo tempo. Ainda assim, ninguém no Ministério pediu ajuda. Eles nem sequer chamaram um táxi.” (Kiyoka Izumi)
“Essa enfermeira saiu correndo para fora. E mesmo quando nós lhe dissemos “Eles foram vítimas de gás na estação Kasumigaseki”, ela apenas disse algo sobre a falta de médicos disponíveis. Abandonou-nos lá na calçada. Como ela pôde fazer isso, eu nunca saberei.” (Minoru Miyata)
“Foi só muito mais tarde que eu comecei a me perguntar como eu poderia ter sido tão insensível. Eu deveria ter ficado furioso, pronto para explodir (ao saber do atentado do qual foi vítima). Por exemplo, se alguém tivesse caído bem a minha frente, eu gosto de pensar que teria ajudado. Mas, e se eles caíssem a 50 metros? Será que eu sairia do meu caminho para ajudar? Eu me pergunto. Eu poderia tê-lo visto como problema de outro e seguir em frente. Se eu me envolvesse, eu me atrasaria para o trabalho...” (Mitsuo Arima, 41)
"As pessoas foram muito legais. Recebi cartas de pessoas que mal sabiam articular uma frase em inglês, mas eu entendi o que eles estavam dizendo e isso foi muito adorável por parte deles. (...) O ataque com gás não mudou minha opinião sobre o Japão, não há país no mundo tão seguro quanto o Japão." (Michael Kennedy, 63)
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É importante trazer ao assunto o papel da mídia no caso Aum, já que ela fez o papel de principal formador de opinião do povo japonês sobre o assunto. No caso Matsumoto, por exemplo, a mídia nipônica pegou uma suspeita da polícia e taxou Yoshiyuki Kouno como criminoso, que passou a receber ameaças de morte graças à sua sina midiática. O mais triste é que a mulher dele estava internada no hospital em estado vegetativo, enquanto ele era acusado de algo que não tinha feito. Apenas com as investigações pós-metrô ficou provado que Kouno era inocente, e as desculpas posteriores não eram o bastante para limpar a sujeirada feita.
"Eu li o que disseram sobre mim nos jornais, mas eles nunca escreveram o que realmente importa. Por alguma razão eu apareci na TV. Eu não quero mais estar na TV, nunca mais. Eles não dizem a verdade. Eu esperava por uma pequena verdade, mas as emissoras tem suas próprias agendas sobre o que transmitir. Eles nunca mostrar o que eu realmente quis dizer. Por exemplo, quando o advogado Sakamoto desapareceu, se a polícia de Kanagawa tivesse sido autorizada a investigar a fundo como deveriam, o ataque com gás nunca teria acontecido. Eles cortaram tudo isso. Quando eu perguntei a razão, eles disseram que estariam sob pressão dos anunciantes se eles transmitissem isso. E o mesmo vale para os jornais e revistas." Yoshiko Wada (esposa de Eiji Wada, vítima fatal)
A mídia é inclusive condenada por algumas pessoas que foram vítimas do ataque, mas a condenam mais pelo sensacionalismo do que tem raiva dos terroristas que poderiam tê-los matado. Tudo o que foi dito pela mídia, sobre choques elétricos ou lavagem cerebral, é verdade, realmente aconteceu, mas não significa que era um padrão. É verdade que algumas pessoas realmente não podiam contestas as palavras da Asahara, mas outras tantas não apenas o faziam como conseguiam fazê-lo mudar de ideia, sem sofrer pressões ou retaliações por isso. As entrevistas com ex-membros mostram como o tratamento oscilava de pessoa para pessoa. Alguns dão depoimentos sobre cárcere privado por contestar práticas da Aum, outros já falam de um Asahara bem mais compreensivo. Muito do que sabemos sobre a Aum veio dos tribunais, e não é possível saber até que ponto os membros atacaram o líder para pegar penas mais brandas, já que os julgamentos foram um show de mentiras e inconsistências:
"Se você acreditar nas reportagens da mídia, todos estavam sob estrito controle, como se eles estivessem vivendo na Coréia do Norte, mas na realidade as pessoas eram livres para fazer o que quizessem. E, claro, nós eramos livres para ir e vir. Nós não tinhamos os próprios carros, mas poderíamos alugar um sempre que quizéssemos." (Hiroyuki Kano)
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Haruki Murakami |
"Para eles [Mídia], o princípio moral, como participação no ataque com gás, era muito claro: 'bom' versus 'mal', 'sanidade' versus 'loucura', 'saúde' versus 'doença'. Foi um óbvio exercício de opostos. (...) A esmagadora maioria de japoneses foi classificada como 'direita', 'sã' e 'saudável'. Algo me diz que as coisas só vão piorar se não lavarmos isso de nosso metabolismo. É muito fácil dizer 'Aum é o mal'. Não estaria a verdadeira chave (ou parte dela) para o mistério a respeito do golpe sobre o Japão cometido por 'Eles' mais provavelmente escondida sobre o 'Nosso' território? 'Eles' [Aum] são o espelho de 'Nós' [japoneses]. Não chegaremos a lugar algum enquanto os japoneses continuarem a olhar o fenômeno Aum como algo completamente distante, uma presença alienígena vista por binóculos na costa distante." (Haruki Murakami)
O frenesi midiático foi tamanho, e a juventude japonesa estava tão inconsolavelmente confusa, que Etienne Barral cita o inacreditável fenômeno Aumer, jovens que se tornaram fanáticos pela Aum após o atentado. Eles passaram a colecionar artigos da seita (Aum goods) como camisetas e panfletos, ou mesmo as máscaras de carnaval usadas nas eleições legislativas de 1990, algo realmente raro e 'valioso'. No Comiket daquele ano rolou até fanzine yaoi tendo como temática os principais membros da Aum!!!
Joyu Fumihiro, porta-voz do grupo, preso dias depois por cumplicidade, foi defendido por uma legião de meninas que o achavam "kawaii desu neee" e lhe direcionavam mensagens como "não se deixe intimidar!". Repito, FIZERAM YAOI DO CARA! Barral, em cima desse comportamento, brilhantemente conclui:
“Qual é, pois, essa época onde o Belo ganha do Justo? Afinal, não é o reflexo dos valores exacerbados pela sociedade de consumo e pelas mídias? Quando a sociedade civil se insurge contra [essas garotas Aumers], não tem afinal aquilo que merece?”
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Fumihiro Joyu - o cara nem é bonito, pô |
Shoko Asahara teve sua apelação contra a pena de morte rejeitada pela Suprema Corte do Japão em 2006, após receber sua condenação em 2004. Nos últimos 15 anos (até o início de 2012), os tribunais japoneses condenaram 189 membros da Aum, emitiram cinco penas de prisão perpétua e confirmaram 13 penas de morte. Segundo o G1 "por enquanto, nenhuma das execuções foi realizada porque a lei japonesa estabelece que todas as sentenças dos cúmplices do delito devem ser confirmadas antes de poder se aplicar a pena capital."... Asahara, hoje de cabelos curtos, passa o tempo que lhe resta de vida cozinhando na cadeia.
Com o ataque, milhares de pessoas deixaram a seita, mas 1186 (mais, segundo a polícia) seguem filiados à Aum, agora rebatizada como Aleph, a primeira letra do alfabeto hebraico, pois mantém a devoção aos ensinamentos de Asahara. E isso é algo importante de ser lembrado. Apesar da picaretice religiosa, os membros se sentiam, em geral, bem dentro da Aum. A maioria não compreende como algo que lhe fez tão bem pôde ter sido capaz de algo como os ataques com sarin.
Na verdade a seita se desmembrou em duas vertentes, Aleph e Hikari no Wa (círculo do arco-íris de luz) com 32 sedes espalhadas pelo Japão. Renegados num subúrbio de Tóquio, a liderança faz questão de informar que a Aleph é hoje um culto inofensivo, mas as autoridades japonesas os mantém sob forte vigilância de 50 oficiais. Se alguns não saem dos domínios da seita por convicção religiosa ou por continuar renegando a sociedade civil, outras não o fazem por impossibilidade de voltar a ela, já que carregam a estigma da Aum Shinrikyo e são socialmente boicotados por isso. Você pode ler mais sobre isso
aqui. (inglês)
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É pouco surpreendente, mas desde então outras 10 mil seitas religiosas surgiram no Japão, o que segundo as palavras de Nobutaka Inoue, pesquisador de estudos religiosos da Universidade de Kokugakuin, significa que as pessoas ainda estão procurando assisistência para sua saúde mental em tempos de constantes más notícias (só no ano passado, os desastres naturais e nucleares de Fukushima e a perda do posto de segunda economia do mundo para a China).
Percebi que o tema é quase desconhecido do público brasileiro e achei essencial não deixá-lo cair no esquecimento, tanto para que algo semelhante nunca mais aconteça, em lugar algum, como para não deixar as questões por eles levantadas voltem para baixo dos tapetes. O Brasil de hoje é muito semelhante com o Japão dos anos 60. Teremos pela frente dois eventos mundiais para mostrar ao mundo que o Brasil está chegando lá (como o Japão teve as Olimpíadas de Tóquio em 64 e a Expo de 70 em Osaka). O Japão conseguiu chegar num estágio de desenvolvimento mesmo inimaginável para o Brasil nos próximos 50 anos, e por isso pagou um preço muito caro. E é nesse lugar, que o Japão ocupou tão perfeitamente, que nós estamos lutando para chegar... É preciso ter o exemplo japonês em mente para não cair na besteira de cometer erros semelhantes, aproveitando que os asiáticos constantemente se colocam no papel de laboratórios para a humanidade.
Para o Japão, o atentando no metrô de Tóquio foi uma advertência e o fato pontual da virada histórica do país, o início de uma nova era, menos brilhante e pomposa. 1995 foi também o ano do terremoto de Kobe e do lançamento de
Neon Genesis Evangelion, que não teve o apelo popular que conquistou com seu teor pessimista apenas por acaso.
O já citado livro do Etienne Barral trata do assunto no capítulo chamado Otakaumismo, onde ele traça relações entre o atentado e a cultura otaku. Sabia que a Aum produziu animes e mangás de Asahara para conquistar esse público? Não vou esmiuçar esse assunto aqui, apesar de mais pertinente do que qualquer outro para esse blog, como incentivo para que você compre ou alugue o livro. Mas vou oferecer um aperitivo:
“A seita Aum é o reflexo da sociedade japonesa, na forma como sistematicamente preenche as faltas desses jovens, os quais, de maneira mais ou menos consciente, constatam as contradições do Japão dos anos 90. Nesse sentido, não é surpreendente que os otaku, eles também testemunhas e críticos da mediocridade existente, tenham se sentido à vontade junto com Asahara. Ainda mais que, expressamente ou não, o guru instilava fortes doses de cultura otaku em seus discursos”
“Como esperar diante de tal comportamento [negação dos crimes de guerra] que os jovens tenham fé em valores que os mais velhos transmitem? Como eles podem imaginar substituir e aprimorar a direção desse colosso com pés de barro? Em vez de seguir as massas embrutecidas pelas mídias e cegas pelas miragens da sociedade de consumo, os otaku mostram com desdém que o rei está nu, enquanto os adeptos da seita Aum tentam, desastrosamente, desestabilizar o sistema.”
Ele ainda conclui: Se essa é uma boa análise, aprisionar todos os adeptos da Aum e prender Asahara não resolverá o mal-estar que corrói a sociedade japonesa. Por enquanto, a sociedade civil tenta convencer-se de que a seita é uma verruga a ser cauterizada, que o mal desaparecerá por si, posto que é obra de um megalomaníaco paranoico, porém pode acontecer que a verruga se revele um câncer de pele estimulado pela grossa camada de maquiagem que cobriu a sociedade civil para mascaras 50 anos de sujeira.
A minha conclusão caminhará no sentido de mostrar que isso está acontecendo em proporções globais, não se restringindo à 'uniqueness' japonesa. A escritora alemã Juli Zeh em seu excelente A menina sem qualidades (em clara referência ao Homem sem qualidades de Musil) - que ainda estou lendo - fala da deriva moral presente também na Europa ocidental, onde os jovens que 'pensam saber tudo e professam não crer em nada' se proclamam filhos do niilismo, pertencentes a uma geração sem identidade e qualidades. No livro que também envolve crime e questionamentos morais, o juiz responsável pelo caso conclui a introdução dizendo algo que se encaixa perfeitamente no caso da Aum Shinrikyo:
"Se isso tudo for apenas um jogo, nós estamos perdidos. Se não - mais do que nunca."
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FONTES:
Underground - The Tokyo Gas Attack and the Japanese Psyche (Haruki Murakami)
The Place That Was Promised (Haruki Murakami)
Otaku - Os filhos do virtual (Étienne Barral)
Armageddon in a Tokyo Subway - capítulo do "Terror in the mind of God: the global rise of religious violence" (Mark Juergensmeyer)
Aum Shinrikyo - Japan's Unholy Sect (Rei Kimura)
Hora Zero - Terror em Tóquio (Discovery Civilization)
A (Tatsuya Mori)
The "De-nationalization" of AUM Followers: Its Hidden Political Purpose (Masaaki Fukuda)
http://www.jref.com/japan/society/aum_shinrikyo.shtmlhttp://cns.miis.edu/reports/pdfs/aum_chrn.pdfAsahara Shoko e Kitano Takeshi em algum programa da tv japonesa que não sei o nome